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O ESTADO DE S. PAULO QUARTA-FEIRA, 8 DE ABRIL DE 2020 Especial H3
Roberto DaMatta
Sextou!
ALY SONG / REUTERSO que podemos aprender com brasileiros recém-saídos da quarentena na China
l]
N
um país cuja formação foi rea-
lizada numa mistura de aris-
tocratas portugueses, legiti-
mados por um príncipe regente
membro de uma família extensa ob-
viamente disfuncional, fugidos das
tropas de Napoleão e uma pobre eli-
te local fundada no trabalho escravo
africano, a expressão que intitula es-
sa melancólica crônica tem sido um
mantra. Um mantra persistente.
Eu a ouvi quando Vargas começa-
va a ser “democratizado” pelo am-
biente político moral de um após
guerra que apresentou ao mundo o
modelo americano. Uma agenda
ilustrada dramaticamente no cine-
ma de Capra, Stevens e Ford, da
música popular, e de um novo jorna-
lismo. No plano financeiro, em de-
monstrações concretas de ajuda
com o objetivo de reconstruir uma
Europa devastada por si mesma, li-
vrando-a – temporariamente – doseu “quanto pior, melhor”.
O símbolo dessa americanização foi
a Coca-Cola que, em 1946, meu pai me
deu para provar, dizendo: “Veja, meu
filho, essa última maluquice dos ame-
ricanos...”. Estávamos em Maceió e eu
me lembro dos comentários negati-
vos de papai sobre o ridículo que era o
jogo de tênis e o absurdo de, nos bailes
realizados numa base americana lo-
cal, um sujeito dançar com a mulher
do outro...
Ganhar uma guerra na Europa e no
Pacífico sem um autoritarismo e dan-
do continuidade a uma economia de
mercado livre tornou os Estados Uni-
dos o país que todos queriam conhe-
cer e, alguns anos mais tarde, engen-
drou o derrogatório “americanalha-
do” usado para gente que tinha sido
parcialmente educada na América, co-
mo foi o meu caso.
Na faculdade, no início dos anos 50,
aprendi que tudo se resumia a umaluta de classes – dominantes exploran-
do impiedosamente os dominados. O
ideal era a generosidade socialista fun-
dada na divisão. Inocente dos estilos
nacionais de interpretar o Brasil e de
governar por meio de profissionais
chamados de “políticos”, eu não con-
seguia relacionar essa luta com o mo-
do familiar com o qual os empregados
domésticos da nossa casa eram trata-
dos. Eram negros e pobres, mas nós os
chamávamos de “senhor” e “senho-
ra”. Os laços com seus patrões englo-
bavam o serviço que prestavam e,
mais que isso, todos acreditavam num
Deus católico das missas e em uma
ética emoldurada pela sua aceitação
passiva do seu destino e pela caridade- esse valor que bloqueava a impessoa-
lidade do “quanto pior, melhor!”.
“Politizado”, eu não via o Brasil co-
mo um navio no qual éramos todos
passageiros, mas como uma nau dividi-
da. A palavra de ordem era trocar os
oficiais pelos marinheiros.
Lutávamos por isso sem saber que,
quando os representantes dos desfa-
vorecidos trabalhadores foram elei-
tos, eles tinham como modelo de go-
vernar uma antiga matriz aristocráti-
ca baseada em privilégios, em eugenia
e em estadolatria, estadomania e esta-
dopatia. O mérito do liberalismo era
substituído por teias de relações que
buscavam emprego jamais trabalho
na máquina feita para impedir o servi-
ço braçal própria para os ex-escravos.
Ser funcionário público ainda é um
ideal gerador de todo tipo de perver-
são administrativa. O limite vai até o
sistema superior de ensino no qual to-
dos são funcionários públicos, um pa-
pel obviamente incompatível com o
de professor pesquisador dotado de
consciência profissional.
Em meio a essas enormes contradi-
ções até hoje não percebidas, foi que
ouvi a expressão “quanto pior, me-
lhor!” como uma senha para desejar
sempre pelo pior o que, felizmente,
poucos dos nossos mais sensíveis go-
vernantes jamais fizeram. Pois na luta
entre socialismo e capitalismo (ambosmal-entendidos, conforme vemos
claramente graças à globalização e
ao vírus coroado) e diante da cir-
cunstância de termos uma pletora
de comunistas ricos e célebres, mas
atormentados pela culpa, todos co-
metem o plausível: decidir não deci-
dir! Ficam como gatos em cima do
muro para “ver no que vai dar”.
Se o liberalismo em terras patriar-
cais implica um enorme ajuste e
muitos sacrifícios (um eufemismo
para as perdas das elites), mas não
podendo dispensar seus superprivi-
légios previstos em lei e, quando no
governo, protegidos de suas mais
vis falcatruas, só restava a contradi-
ção suicida do “quanto pior, me-
lhor!”. No fundo, o que esse mantra
demanda é não escamotear a crise
quando ela precisa ser debelada e
não inventar crises em cima de cri-
ses com o risco de assassinar o País.
É justo o que muitos desejam até
hoje sem – e eu deixo isso bem claro- achar que o presidente deve não
só ficar calado (porque em boca ca-
lada não entra mosca!), mas fechar
a boca dos seus filhos.
Danilo Casaletti
ESPECIAL PARA O ESTADO
Na segunda-feira, o governador
João Doria anunciou que a qua-
rentena no Estado de São Paulo
seria estendida até 22 de abril.
Por aqui, o processo, cujo objeti-
vo é diminuir a contaminação pe-
lo novo coronavírus, está apenas
começando. Brasileiros que vi-
vem na China, contudo, já passa-
ram por essa experiência. Agora,
tentam retomar a rotina de antes
do surto de covid-19. Mas até que
ponto isso é possível?
Quando desembarcou na cida-
de chinesa de Dalian, a cerca de
800 km de Pequim, em 20 de de-
zembro, o paulistano Anderson
Arcanjo, de 29 anos, dava início a
um sonho. Atleta e professor de
muay thai, ele deixou para trás
cinco anos de trabalho na Team
Nogueira, respeitada academia
de luta fundada por Rodrigo Mi-
notouro, para ter uma experiên-
cia internacional e tentar alcan-
çar certa independência finan-
ceira. Onze dias depois, autori-
dades chinesas revelaram ao
mundo que um tipo grave de
pneumonia havia sido detecta-
do em 41 pessoas.
Com a primeira morte no país
anunciada em 11 de janeiro, foi
questão de tempo para que os ca-
sos da doença aumentassem na
China e as autoridades locais de-
cretassem uma severa quarente-
na em diversas cidades, inclusive
em Dalian. O início do isolamen-
to coincidiu com as férias do Ano
Novo Chinês, em 25 de janeiro.
Depois dos festejos, a ordem era
clara: ficar em casa, evitando ao
máximo o contato social.
A professora de inglês Claudia
Castro, que, há cinco anos, mora
em Ningbo, a mais de mil quilô-
metros de Pequim, estava em Ba-
li, curtindo as férias com a famí-
lia, quando começou o isolamen-
to social. Ao perceber a gravida-
de da situação e com a escola
em que dava aulas fechada, ela
veio para o Brasil, ficar com pa-
rentes. Deu aulas online para
seus alunos chineses – até que a
escola avisou que as tratativas
para a volta às aulas estavam
adiantadas. Ela, então, retor-
nou, há quatro semanas, para a
China – ao chegar, ficou de qua-
rentena por 14 dias.
Ambos vivenciaram esse perío-
do de maneiras bem distintas. E,
mesmo com os momentos de
tensão, mantêm um olhar otimis-
ta, ainda que a vida não tenha vol-
tado 100% ao normal.
Durante os 50 dias que ficou
dentro do apartamento que divi-de com outro brasileiro, Arcan-
jo, que só podia sair de casa de
dois em dois dias para fazer com-
pras ou colocar o lixo na rua, viu
sintomas de sua ansiedade se
agravarem. Pensou em voltar pa-
ra o Brasil. Derrotou esses senti-
mentos fazendo uma lista com
afazeres básicos diários. Tinha
hora para tudo.Novo ‘normal’. Arcanjo já vol-
tou para a academia em que dá
aulas, mas só para treinar. Até os
sacos de treinamento foram tro-
cados. Os alunos ainda demora-
rão mais um tempo para retor-nar, até que tudo esteja mais se-
guro – o país teme uma segunda
onda do coronavírus, sobretudo
por conta de “casos importa-
dos”, trazidos por moradores
que agora retornam do exterior.
Ele conta a felicidade que sen-
tiu com o fim das restrições de
isolamento social: “Tive vonta-
de de sair correndo e dar umas
30 voltas na praça que tem aqui
perto de casa”, diz. O professor,
que pretende ficar na China por
mais três anos, afirma se sentir
seguro ao andar pela cidade, ir à
academia ou a uma lanchonete.
“A vida está 90% normal, eu di-ria. Podemos sair às ruas, as lojas
estão abertas”, conta. “A sensa-
ção é de liberdade.”
Claudia também começa a re-
tomar a rotina. Quando retor-
nou do Brasil para Ningbo com o
marido e as duas filhas, de 10 e
14 anos, a família enfrentou
uma quarentena rigorosa. Na
porta de seu apartamento, ha-
via um sensor que avisava as au-
toridades se ela saísse de casa.
No celular, precisou baixar um
QR Code que emitiria um alerta
vermelho caso ela tentasse en-
trar em algum estabelecimen-
to. Uma pessoa designada pelasautoridades locais fazia as com-
pras da casa. Médicos e poli-
ciais ligavam para saber como
estava a saúde da família. Eles
não ficaram doentes.
Na escola onde leciona, foi
chamada para participar de um
treinamento a fim de preparar a
volta às aulas, em 13 de abril.
“Treinamos sobre como receber
os alunos, medir a temperatura
deles e mantê-los a uma distân-
cia segura uns dos outros.”
Enquanto as aulas presenciais
não começam, Claudia e a famí-
lia já passeiam pela cidade. Mas
algumas coisas mudaram: o uso
de máscara nas ruas, por exem-
plo, ainda é obrigatório. O pas-
seio em um shopping agora tem
como adicional um funcionário
designado para medir a tempera-
tura de quem entra. E mesmo co-
mer no McDonald’s ganhou
uma nova conotação: com o lan-
che, vem um cartão informando
que a temperatura dos atenden-
tes que prepararam a refeição es-
tava abaixo de 37,5ºC.Diferentes reações. Anderson
e Claudia encararam o fim do iso-
lamento social de forma positi-
va, com ânimo para voltar às ativi-
dades cotidianas e planos para o
futuro. Mas nem todos podem
reagir assim, diz a psicóloga e te-
rapeuta familiar Helena Maria
Santos Parolari. “Eles fazem par-
te das pessoas que têm um perfil
mais alegre, resiliente”, analisa.
Segundo ela, pessoas mais angus-
tiadas ou dramáticas tendem a
perceber apenas o tema princi-
pal do momento, que é a doença
e as incertezas. Para a psicóloga,
essas pessoas vão reagir de uma
forma mais pessimista quando o
período de isolamento acabar.
Helena Maria acredita que
medidas governamentais so-
cioeducativas, que incluam cui-
dados com a saúde em geral, se-
rão importantes quando a qua-
rentena terminar. E não só do
ponto de vista sanitário, mas
também psicológico: isso faria,
segundo ela, as pessoas se senti-
rem mais seguras. Para ela, não
se deve ignorar os próprios sen-
timentos: buscar ajuda profis-
sional é importante, e há vários
grupos que oferecem suporte
online e gratuito.Mudanças. Claudia acredita
que, no Brasil, as coisas tam-
bém retomarão seu curso em
breve. “Vejo meus amigos afli-
tos no Brasil e o que posso dizer
é: vai passar, a vida vai voltar ao
normal.” Algumas atitudes, no
entanto, permanecem. “Não
tem como não conservar alguns
hábitos, porque o susto foi mui-
to grande”, diz Claudia. Segun-
do ela, a família sai menos de
casa e, quando sai, o álcool em
gel está sempre a postos. “A
mão a gente lava toda hora. Le-
gume a gente tira das embala-
gens, joga fora, lava tudo. É uma
lição que veio para ficar.”
Anderson sente o mesmo.
“Com certeza, vou conservar os
hábitos da quarentena”, diz.
“Vou continuar tirando os sapa-
tos, lavando as frutas, lavando
as mãos.” O conceito de norma-
lidade, de fato, mudou.ESCREVE ÀS QUARTAS-FEIRAS“Não tem como não
conservar alguns hábitos
porque o susto foi grande. A
mão a gente lava toda hora.
Legume a gente tira das
embalagens e lava tudo”
Claudia Castro
PROFESSORA BRASILEIRA, MORA COM A
FAMÍLIA EM NINGBO HÁ CINCO ANOSVida na
China.
Anderson
(à esq.) e
Claudia, com
a famílial Pós-isolamentoARQUIVO PESSOALAINDA QUE TARDIA
ARQUIVO PESSOALLIBERDADE
Retomada. Aos poucos, a vida volta ao normal nas cidades chinesas, mas o uso de máscaras nas ruas ainda é obrigatórioQuanto pior, melhor!