O Estado de São Paulo (2020-04-08)

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O ESTADO DE S. PAULO QUARTA-FEIRA, 8 DE ABRIL DE 2020 Especial H7


Maureen Dowd / NYT


Nossas vidas agora dependem
de ficar em casa e não fazer na-
da. Enfrentamos tudo isso sem
um fim à vista e ficando cada vez
mais irritados. Então, eu pensei,
vou falar com o especialista
mundial na arte de fazer nada: o
homem infinitamente irritadi-
ço, cujo mantra sempre foi “Se
não vão lhe pagar para sair de
casa, qual a razão de fazê-lo?”.
Encontrei Larry David isola-
do em sua casa no bairro Pacific
Palisades, em Los Angeles. “Nin-
guém entra aqui”, disse o mais
famoso misantropo americano.
“Apenas por uma emergência
catastrófica de encanamento,
eu abriria a porta.” Perguntei o
que ele mais temia e ele respon-
deu: “Anarquia e uma emergên-
cia odontológica – e não neces-
sariamente nessa ordem”.
Há muito tempo, quando era
um mísero comediante de
stand-up em Nova York, ele às
vezes parava abruptamente sua
apresentação e dizia à plateia:
“Isso é o que acontece quando
você fica sem nada”. Então, ele
cocriou e criou dois dos melho-
res programas da história da
TV, Seinfeld e Curb Your Enthu-
siasm
, sobre ... nada.
E agora, neste período de pan-
demia, as sugestões de David pa-
ra atividades triviais estão dan-
do alívio a alguns de nós que es-
tão nostálgicos pelos dias em
que tínhamos energia mental
para nos concentrarmos em coi-
sas banais, quando nossas vidas
não estavam arruinadas e sobre-
carregadas.
“É um prazer escapista”, dis-
se Daniel D’Addario, principal
crítico de TV da Variety , que as-
sistiu a um episódio de Curb na
hora do almoço e outro antes de
dormir. Ele não acha que David
será um alvo da raiva que atinge
a classe em Hollywood, onde ce-
lebridades insensivelmente en-
cheram o Instagram com seus
vídeos cantando Imagine e com
fotos glamourosas de suas ca-
sas, iates e banhos de pétalas du-
rante a quarentena.
“Larry David está dizendo
que você pode ter o dinheiro
que quiser e não apenas ainda
ser infeliz, mas também ficar in-
satisfeito com as coisas mais in-
significantes – ciúme, inveja e
todos esses pecados veniais”,
disse D’Addario. “Isso é algo
que põe um sorriso no meu ros-
to, ao contrário das celebrida-
des que dizem para você ser fe-
liz e estão em seus condomí-
nios fechados, o que gera raiva.”
Perguntei a David, um crítico
social dos costumes de
Hollywood, por que todas essas
celebridades pareciam tão des-
providas de autoconsciência.
“Eu não sei; essa é a pergunta
que vale US$ 64 mil”, disse.
“Acho que o intuito deles é aju-
dar, suas intenções são boas, po-
rém eles não estão consideran-
do como isso pode ser recebi-
do.” Mas, acrescentou, “acredi-
to que é uma completa falta de
discernimento falar sobre seu
estilo de vida neste momento, é
loucura. É claro que outras pes-
soas vão reagir assim.”
David deu as caras apenas pa-
ra fazer um anúncio de serviço
público para o governador Ga-
vin Newsom, da Califórnia, pe-
dindo que as pessoas não fos-
sem “covidiotas”, ficassem em
casa e não prejudicassem “ido-
sos como eu”. Ele ficou um pou-
co envergonhado quando surgi-
ram as notícias de que ele havia
criado uma página no GoFund-
Me para os caddies de golfe em
seu amado Riviera Country
Club, vizinho à sua casa.


Golfe. Conversávamos pelo Fa-
ceTime – algo que David come-
çou a gostar de usar durante a
quarentena –, quando ele pe-
gou o iPad, andou pela casa e
me mostrou a vista para o cam-
po de golfe deserto da janela do
quarto.
David, lembrando um grou,
vestia um pulôver Zegna azul es-
curo, calça cor de ferrugem e
tênis e ostentava uma barba de-
salinhada. “Qualquer pelo fa-
cial é muito benéfico para o ca-
reca”, disse ele. “Realmente,
melhora a aparência do homem
careca.” Ele parecia cômodo
em uma poltrona azul no canto
de sua casa. Eu estava menos


confortável. “Só estou vendo
metade do seu rosto”, recla-
mou. “Você está ciente disso?”
Quando perguntei se estava
armazenando alguma coisa, ele
ficou indignado. “Não sou um
acumulador. Na verdade, em al-
guns meses, se eu entrar na casa
de alguém e der de cara com 50
rolos de papel higiênico em um
armário em algum lugar, termi-
narei a amizade. É o mesmo que
ser um ladrão de cavalos no Ve-
lho Oeste.”
“Eu nunca poderia ter vivido
no Velho Oeste”, acrescentou.
“Eu ficaria completamente pa-
ranoico com alguém roubando
meu cavalo. Sem cadeados. Vo-
cê os amarra a um poste! Como
você pode entrar em um bar e se
divertir sabendo que seu cavalo
pode ser levado a qualquer mo-
mento? Eu ficaria tão distraído.
Constantemente verificaria se
ele ainda estava lá.”
Jerry Seinfeld comentou que
David é a maior prova de que
“você é o que é”, dado o fato de
ele permanecer sendo um rabu-
gento mesmo quando ficou rico
e popular. No entanto, aos 72
anos, David parece mais confor-

tável em ser ele mesmo. Sua apa-
rência era tão sombria, que
Larry Charles, um dos escrito-
res originais de Seinfeld , disse
que, se ele pensasse que pode-
ria se safar, David teria pago al-
guém para matar os inimigos.
Agora, no entanto, ele está sa-
tisfeito isolado com a mais ve-
lha das duas filhas, Cazzie Da-
vid, 25 anos; um filhote de pas-
tor australiano chamado Ber-
nie (em homenagem a Sanders,
a quem David encarna com uma
aparência estranha no Saturday
Night Live ); um gato; e a namora-
da, Ashley Underwood, que tra-
balhou como produtora da sáti-
ra de Sacha Baron Cohen, Who
Is America?. Ashley é amiga de
Isla Fisher, esposa de Cohen,
que teve um papel hilário na re-

cente temporada de Curb , co-
mo uma leiloeira profissional
que manipula Larry para que
ele entregue a estola de visom
da mãe.
David conheceu Ashley na fes-
ta de aniversário de Cohen, em


  1. “Estávamos sentados um
    ao lado do outro, acho que já
    tinham isso em mente”, disse
    ele sobre o encontro arranjado
    dos dois. “Para a surpresa dela,
    saí antes da sobremesa. Eu esta-
    va indo tão bem conversando,
    que não quis arriscar ficar mui-
    to tempo e acabar com aquela
    boa impressão.”
    Ele e Cazzie David, que escre-
    ve colunas sarcásticas para o se-
    manário digital de Graydon Car-
    ter, o Air Mail , são germofóbi-
    cos desde sempre. “Sabe, é me-


lhor encerrarmos a comunica-
ção enquanto estamos neste
ponto. Isso sempre foi um pro-
blema e tanto.”
Agora que David não pode
sair para discutir com amigos,
vizinhos, estranhos e funcioná-
rios sobre coisas como se ele po-
de limpar os óculos na blusa de
uma mulher ou o formato regu-
lamentar de um taco, ele deve
brigar dentro da própria casa.
"Não há um momento no dia
em que não haja atrito entre pe-
lo menos dois de nós", disse ele.
"Então, quando isso é resolvi-
do, outros dois já estão seguran-
do a garganta um do outro, e é
sempre sobre pratos. "Você não
lavou a louça!" Ou "Você não
ajudou com a louça!" Acho que
isso é algo que está sendo grita-
do em todo o mundo agora.
“Outra questão é alguém co-
meçar a assistir a algum progra-
ma e não esperar pelo outro.
Um grande problema! Você
tem que pelo menos perguntar
aos demais se tudo bem fazer
isso. Ashley não pergunta. Ela
começa e é impossível acompa-
nhá-la. E eu acabo descobrindo
isso, pois entro na sala e ela ins-

tantaneamente desliga a TV.”
Cazzie David disse que o ver-
dadeiro Larry David não come-
ça brigas constantemente. Na
verdade, é justamente o opos-
to. “Isso é meio irônico, consi-
derando o personagem dele na
TV, mas ele não suporta ter ne-
nhuma animosidade com nin-
guém”, ela me disse.
Disse ainda que, se ela entra
em uma discussão com alguém
na casa, “ele não aguenta mais
do que um segundo, pois isso o
machuca. Lembro que, quando
minha irmã e eu estávamos cres-
cendo, brigávamos sussurran-
do porque, se ele nos ouvisse bri-
gar, ficaria muito chateado, co-
mo se fosse o fim do mundo
duas pessoas ficarem bravas
uma com a outra. E era meio
que um crime estressá-lo, por-
que ele é realmente muito gen-
til e bom, por isso sempre evita-
mos incomodá-lo a todo custo.”

Sem tolerância. Embora os tra-
balhos icônicos de Larry David
sejam sobre choramingar, ele
não tolera isso em casa. “Se al-
guém pode fazer você se sentir
idiota por reclamar, é ele”, disse
Cazzie David. “Se eu reclamar
um pouco sobre alguma coisa,
ele me perguntará: ‘Quantos
anos você tem?’, e vou dizer ‘25’,
e ele faz aquilo que todos os pais
e avós fazem e dirá: ‘Você quer
saber onde eu estava com 25
anos? Em uma estação de me-
trô vendendo revistas. Na reser-
va do exército.’ Ele não suporta
ouvir queixas de nenhum tipo,
especialmente agora, quando
muitos de nós têm a sorte de
estar cômodos em nossas ca-
sas.”
“Ele é super contra qualquer
autopiedade, acredita ser a coi-
sa mais nojenta do mundo. Por-
tanto, não era permitido se jo-
gar no chão para reclamar, nem
mesmo quando estávamos cres-
cendo. Aqui, você não tem per-
missão para se sentir mal consi-
go mesmo ou ficar deprimido.
Ele simplesmente não tem sim-
patia por isso. Então, se você es-
tá deprimido ou se sentindo
mal com alguma coisa, ele sim-
plesmente diz para você tomar
um banho. É como a cura dele
para o estresse mental. E, se não
der certo, ele simplesmente di-
rá: ‘Tome outro’.”
Ela também acha que seu pai
está “menos rabugento”. Larry
David se aventura em passeios
sozinho pelo bairro deserto.
“Atravesso a rua quando vejo al-
guém vindo como costumava fa-
zer quando eu era criança no
Brooklyn e as crianças italianas
me extorquiam dinheiro”, afir-
ma. “E, quando alguém atraves-
sa primeiro, sei que não devo le-
var para o lado pessoal, mas não
posso evitar. Como ousam?”
Então pergunto como ele es-
tá se saindo sem os restauran-
tes, que fornecem grande parte
da inspiração para seus episó-
dios. “A única coisa positiva dis-
so tudo para mim é a decisão do
almoço, que em tempos nor-
mais demora pelo menos 15 mi-
nutos”, comenta. “Agora não há
nada a fazer. É peru ou atum.
Não há mais nada na casa.”
Há outro ponto positivo, que
aponto para o antissocial Da-
vid: a vida social parou. “Devo
concordar sobre a falta de con-
vites, isso tem sido fantástico”,
ele comentou. “Sim, amo o fa-
to de não precisa inventar des-
culpas.” Em Curb , o persona-
gem homônimo de David –
uma versão extremamente de-
sagradável dele mesmo – está
constantemente mentindo pa-
ra evitar os lugares frequenta-
dos por todos. “Dizer ‘não’ é
uma habilidade por si só, por-
que os ‘nãos’ raramente são di-
retos”, disse ele. “Há muita re-
flexão colocada no ‘não’, e es-
ses e-mails ou mensagens em
que você está dizendo não le-
vam muito tempo e esforço pa-
ra acertar o tom correto.
David, que estrelou o filme
Tudo Pode Dar Certo (2009), de
Woody Allen, está lendo Apro-
pos of Nothing , as memórias do
hoje controverso cineasta. “É
um livro ótimo, fantástico, mui-
to engraçado”, comenta. “Você
se sente como se estivesse na
sala com ele e é difícil, depois de
terminado esse livro, pensar
que esse cara fez algo errado.” /
TRADUÇÃO DE ROMINA CÁCIA

LARRY DAVID,


UM MESTRE DA QUARENTENA


Comediante americano, um dos criadores da série ‘Seinfeld’ fala


sobre o isolamento – ele que sempre preferiu não sair de casa


l Vida caseira

JAKE MICHAELS/THE NEW YORK TIMES

“ (A autobiografia de Woody
Allen) é fantástica. Você se
sente como se estivesse na
sala com ele e é difícil,
depois de terminado esse
livro, pensar que esse cara
fez algo errado”

“Não sou um acumulador.
Em alguns meses, se eu
entrar na casa de alguém e
der de cara com 50 rolos de
papel higiênico em um
armário em algum lugar,
terminarei a amizade”

David. ‘O bom de não se ter restaurante aberto é que a escolha não demora mais: é peru ou atum. Não há mais nada em casa’

Personalidade*

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