O Estado de São Paulo (2020-04-08)

(Antfer) #1

%HermesFileInfo:A-8:20200408:
H8 Especial QUARTA-FEIRA, 8 DE ABRIL DE 2020 O ESTADO DE S. PAULO


Leandro Karnal


PARA UM NEGÓCIO


CHAMADO FESTIVAL


l]


O maior empresário do setor de shows diz que não teme um


trauma pós-pandemia e que o Rock in Rio não será afetado


SAÍDAS


Julio Maria


A avó de Roberto Medina costu-
mava contar sobre a gripe espa-
nhola e todas as agonias que che-
garam a abater um quarto da po-
pulação mundial entre janeiro
de 1918 e dezembro de 1920, in-
fectando 500 milhões de pes-
soas e deixando um número esti-
mado de 100 milhões de mortos.
Ruy Castro lembra em seu recen-
te livro, Metrópole à Beira Mar ,
como o carnaval de 1919, quando
o Rio já se sentia seguro para rea-
brir as avenidas depois de ver ce-
nas de corpos pelas ruas sendo
recolhidos por caminhões de li-
xo, acabou se tornando a festa da
vida, o desbunde dos confina-
dos, a desforra dos sobreviven-


tes. Medina tem nas mãos a
maior concentração de pessoas
que o calendário musical priva-
do do País proporciona. O Rock
in Rio, criado em 1985 em meio à
epidemia de outro vírus de natu-
reza tão devastadora quanto o co-
ronavírus mas de outro concei-
to, o HIV, reúne a cada edição
bienal cerca de 700 mil pessoas
em sete dias de espetáculos.
Se as experiências de contato
humano não serão mais as mes-
mas, como afirma o biólogo guru
dos novos tempos, Átila Iamari-
no, festivais como o Rock in Rio
também não serão. Segundo al-
gumas previsões do comporta-
mento social pós-pandemia, as
pessoas levarão um tempo para
voltar a frequentar lugares com
grandes concentrações e, mes-
mo aquelas que forem a shows,
tomarão precauções, como o
uso de máscaras e distanciamen-

to físico, que podem aniquilar
parte da entrega em massa da
plateia que faz parte do show.
Medina diz que o tempo joga a
seu favor e que, em um certo sen-
tido, o confinamento também. A
próxima edição do Rock in Rio
no Brasil será em setembro de


  1. A de Lisboa, que seria no
    próximo mês de junho, foi trans-
    ferida também para 2021. Assim
    como o carnaval de 1919, 2021 po-
    de ser o ano de uma celebração
    especial da história do evento.
    “Eu estou neste momento em
    minha fazenda, em um lugar ma-
    ravilhoso, falando com você. E
    mesmo assim, sem poder sair da-
    qui, posso sentir como precisa-
    mos de liberdade”, diz Medina,
    que segue em sua linha de racio-
    cínio: “Quando eu fui sequestra-
    do (em 1990), voltei iluminado,
    eu estava vivo, queria fazer tudo
    acontecer.” Em sua opinião, ou-


tros eventos devem sofrer mais
com o trauma pós-pandemia, co-
mo o próximo réveillon e o carna-
val de 2021. “Até setembro, as pes-
soas vão estar mais preparadas.
Elas devem ter uma reação rápi-
da, terão uma necessidade de co-
memorar. A minha aposta é de
que essa sociedade vai estar com
desejo de ir para a rua.”
Um outro efeito poderia aju-
dar os eventos no País em meio à
reconstrução de 2021, algo pare-
cido com o que aconteceu com a
crise mundial de 2008. “O turis-
mo movimenta todos os anos
cerca de R$ 75 bilhões. Como as
pessoas estarão traumatizadas
com as viagens, e ainda não sabe-
remos como serão as viagens, há
uma expectativa de que cerca de
R$ 20 bilhões que iriam para o
turismo ficarão no Brasil.” As-
sim, os shows e o turismo in-
terno, casos do Rock in Rio,
podem entrar como o gasto
que elas fariam com a verba
que seria usada para as via-
gens ao exterior.
Medina diz que o grande pro-
blema é o fato de não termos
uma política pública definida pa-
ra o setor de turismo e entreteni-
mento no País. Ainda há
uma ideia no Brasil,
segundo diz, de
que “festa é gas-
to”. “Vemos
muitas vezes
notícias como
‘a prefeitura
do Rio gas-
tou tanto
com o show
de Zeca Pa-
godinho’.
Gastou

p... nenhuma. Isso não é gasto, é
investimento.” O pós-confina-
mento pode ser a chance para o
desbloqueio de uma máquina tra-
vada há anos, em suas considera-
ções. “A função do BNDES (Ban-
co Nacional de Desenvolvimen-
to Econômico e Social) seria a de
sustentar os empresários peque-
nos e médios, mas eles não conse-
guem vencer a burocracia para te-
rem acesso a linhas de crédito.”
Ele acredita que a saída passa
por uma política na qual o Esta-
do entraria para fazer a roda girar
e iria retirando sua participação
aos poucos. “Se o Estado não en-
trar, a roda não gira.” Medina la-
menta que ainda não haja enten-
dimento para se criar uma estru-
tura rentável. “Fazer cultura é al-
go muito barato.”

Seriado. A Conspiração Filmes
e a Globo estão produzindo
uma série com oito capítulos,
de 30 minutos cada, que vai nar-
rar a vida do empresário Rober-
to Medina. Desde a carreira co-
mo publicitário, passando por
um sequestro acompanhado pe-
la imprensa, em 1990, até as edi-
ções do Rock in Rio, que come-
çaram em 1985 com
shows históricos,
como o do
Queen e o pri-
meiro do Iron
Maiden na
América Lati-
na, o especial
está previsto
para estrear
no segun-
do semes-
tre de
2020.

“Eu estou neste momento
em minha fazenda, em um
lugar maravilhoso, falando
com você. E mesmo assim,
sem poder sair daqui, posso
sentir como precisamos de
liberdade.”

“Até setembro de 2021,
as pessoas vão estar mais
preparadas. Elas devem
ter uma reação rápida, terão
necessidade de comemorar
no Rock in Rio.”

Roberto Medina

l Frases

ESCREVE ÀS QUARTAS-FEIRAS E AOS DOMINGOS

T


odo manual profissional e to-
do curso de aperfeiçoamen-
to têm como bordão a criati-
vidade. O motivo é simples: as fun-
ções repetitivas e mecânicas estão,
cada vez mais, a cargo de algorit-
mos e robôs. O trabalho físico ten-
de a ser cada vez menos atrativo e
mais mal pago. A pressão aumen-
tou. Se alguém não tiver ideias, será
obrigado a trabalhar para quem
apresentá-las. O futuro demanda,
mais do que nunca, gente criativa.
Resta a dupla dúvida: o que é ser
criativo e se podemos aumentar a
capacidade de inventar?
Vamos pegar um exemplo de gê-
nio das novas ideias: William
Shakespeare. Ninguém duvida do ta-
lento do escritor inglês. Curiosida-
de: das 37 peças que restaram, 36 ti-
veram seu enredo copiado, isso mes-
mo, transcrito de alguma outra fon-
te. A propósito, a única peça não ex-
traída de outro autor pode ser As Ale-
gres Comadres de Windsor e, talvez,
apenas porque ainda não se encon-
trou quem a inventou antes do Bar-
do. Um dia surgirá um obscuro tex-
to que permitirá afirmar: 100% da

obra teatral do filho de Stratford tem
origem em terceiros. Então, tomando
o exemplo do autor inglês, criativida-
de não é a ideia extraordinária surgida
do nada (out of the blue, como se diria
na terra da rainha), porém uma capaci-
dade de recriar partes parcialmente
concebidas por outra pessoa.
O documentário A Mente Criativa
(Netflix) trata da habilidade humana
de dar respostas mais complexas do
que aquelas dos animais. Nosso córtex
pré-frontal permite um maior distan-
ciamento entre estímulo e resposta
(input e output). Assim, diante de per-
cepções variadas, somos reativos de
formas muito distintas. Há um drama
prático. Tendo em média só 1,5 kg, o
cérebro humano demanda 20% de to-
da a energia do corpo. Como máquina
eficaz, ele tende a repetir caminhos
para poupar força. O documentário
indica que, para sair da repetição e
entrar na zona criativa, devo forçar
essa “tendência” e buscar soluções e
caminhos menos fáceis.
A criatividade não é, de fato, um dom
natural que teria sido dado a alguns.
Ela implica alguns fatos como atenção,
estímulo, superação do medo de errar,

informações variadas, práticas e apren-
dizado, especialmente com equívocos
passados. Ela também não dispensa o
caminho técnico e o aprofundamento
na área de algum saber.
Leonardo da Vinci tentou misturar
antimônio em algumas tintas para ob-
ter mais brilho. Foi um desastre. Há
mais exemplos. A inovação que o mes-
tre fez na pintura da Última Ceia em
Milão (evitando a tradição usual do
afresco) condenou a obra a um desgas-
te precoce. Os erros de Leonardo fo-
ram um ônus que suas experimenta-
ções despertaram. O resultado da sua

coragem chama-se Leonardo da Vinci.
Algo bem além do comum e abaixo
do inviável parece ser uma boa fórmu-
la inicial. Ousadia sem insanidade, ca-
pacidade de quebrar barreiras pes-
soais, experimentação, busca de co-
nhecimentos novos em áreas distintas
e sólida formação: são ingredientes
que podem ajudar na constituição de
um caminho criativo.
A necessidade é a mãe da invenção.
Precisamos de um problema para ela-
borar uma resposta nova. Domínio in-

telectual é a capacidade de um amplo
repertório que eu identifico e reprodu-
zo. Inovar é a faculdade de dar uma
resposta além dos dados disponíveis
na erudição. Repertório é a capacidade
de identificar cada pedra (nome, ori-
gem geológica, fraturas e intrusões, pro-
priedades). Ela representa o saber acu-
mulado e organizado de milhares de
pessoas antes de mim. Erudição é fun-
damental, porém não pode ser confun-
dida com inteligência ou criatividade.
Criatividade demanda, além do mais,
reorganizar as pedras, dar sentido, re-
pensar a possibilidade e, tendo conheci-
do muitas respostas anteriores sobre o
uso das rochas, pensar em uma nova
resposta a partir das soluções dadas.
Nada é criado como absolutamente no-
vo e pouco pode ser transformado sem
saber o caminho feito até ali.
Um pequeno itinerário para estimu-
lar a sua criatividade, ou dos seus fi-
lhos/alunos, ou do seu ambiente de tra-
balho passaria por cinco conselhos ge-
rais que podem ser ampliados ao infini-
to. 1) Realizar atividades de uma forma
distinta do usual, buscando novas solu-
ções. 2) Desafiar-se com um conheci-
mento novo ou um setor do saber que
até então era evitado (música? mate-
mática? dança?). 3) Pensar as coisas tra-
dicionais combinadas em novas fun-
ções. 4) Aceitar o erro como o maior

professor possível. 5) Conhecer a
fundo alguns dados para pensar sua
estrutura. Superficialidade é inimi-
ga da criatividade.
Alguém poderá dizer: as ideias
são boas, mas eu preciso de um rotei-
ro mais pormenorizado com exem-
plos concretos para implementá-
las. Bem, é provável que você ainda
esteja carente de impulso criativo.
Permita-se pensar, reagrupar o que
sugeri, rejeitar alguns itens ou to-
dos e, acima de tudo, aplicar princí-
pios gerais a sua área específica. Bu-
las precisas com quantidades exa-
tas de componentes para remédios
previsíveis são coisas eficazes, ja-
mais criativas. Bons criadores com-
binam muito conhecimento sólido
com ousadia e rebeldia. Apenas a re-
cusa do mundo com birra autocen-
trada o torna um adolescente mal
resolvido. Criatividade rejeita au-
toridade dogmática, porém jamais
ignora o caminho que levou aquela
questão até o ponto e o impasse em
que ela se encontra. Conhecer o
“estado da arte” é saber muito so-
bre algo e, a partir disso, propor
soluções distintas. Trata-se da
clássica combinação de transpira-
ção com inspiração. É preciso ter
muita criatividade para o futuro, e
alguma esperança.

Caderno 2


Criar


Bons criadores combinam
muito conhecimento sólido
com ousadia e rebeldia

WILTON JUNIOR/ESTADÃO

FABIO MOTTA/ESTADÃO

O festival.
O show da banda
Scorpions, no ano
passado; abaixo,
Roberto Medina
Free download pdf