O Estado de São Paulo (2020-04-09)

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O ESTADO DE S. PAULO QUINTA-FEIRA, 9 DE ABRIL DE 2020 Especial H3


Aliás,


Antonio Gonçalves Filho


Em 1970, em plena era das via-
gens místicas para Katmandu e
da explosão da cultura hippie,
um livro publicado pela Civiliza-
ção Brasileira fez a juventude
brasileira redescobrir a obra do
alemão Hermann Hesse (1877-
1962), Nobel de literatura de
1946: Knulp. Tão simples como o
título era o protagonista do li-
vro, um andarilho em busca de
autoconhecimento que peram-
bula de cidade em cidade reen-
contrando velhos amigos, antes
de decidir voltar à cidade natal
numa jornada interior que é ao
mesmo tempo filosófica e reli-
giosa. Força de hábito: os pais de
Hesse foram missionários cris-
tãos na Índia. O filho encantou-
se pelos estudos eclesiásticos,
até ser seduzido pela literatura.
Muitos dos seus livros tratam
de homens que, como ele, se divi-
diram entre o risco da liberdade
e o conforto burguês, optando,
via de regra, pela estrada, pelo
desconhecido, de Knulp a De-
mian, passando pelo monge de
Narciso e Goldmund , que sai pelo
mundo e só retorna ao mosteiro
para reencontrar o antigo com-
panheiro quando está à beira da
morte. Knulp volta agora em ple-
na era do medo, da pandemia do
coronavírus, numa nova edição
da editora Todavia, após ficar
anos fora de catálogo. Se foi um
guia da contracultura há meio sé-
culo, hoje pode funcionar como
uma advertência sobre os ru-
mos do mundo contemporâneo,
em que o mercado dita as regras
e expurga os rebeldes que ou-
sam se contrapor a uma lógica
desumana.
Escrito em 1915, Knulp antece-
de em quatro anos um outro li-
vro mais conhecido de Hesse, o
já citado Demian (1919), tam-
bém obra de juventude do escri-
tor, que revela nítida influência
do pensamento de Nietzsche –
e, em igual proporção, da psica-
nálise, por refletir a imagem e os
problemas de seu autor, que to-
mava, então, consciência do pa-
pel que as instituições (o Esta-
do, a família) exercem sobre o
indivíduo, privando-o da liberda-
de. A diferença é que o protago-
nista Emil, filho de pais piedo-
sos, começa a defender, por de-
masiado crédito em Demian,
que somos todos caimitas, incli-
nados mais para o mal que para o
bem. Já o rebelde Knulp se esfor-
ça para não ser um fardo na vida
dos outros, e sim uma bênção.
Dividido em três partes, ou
episódios, Knulp é um livro que
começa justamente num lugar
onde a vida costuma terminar.
O andarilho sai do hospital e en-
contra casualmente um velho


amigo, Emilio Rothfuss, que lhe
oferece abrigo em sua casa. Lá,
Knulp, um homem atraente de
cabelos negros, é assediado pela
mulher de seu protetor, mas re-
pele seus avanços. Parece mais
interessado na empregada da vi-
zinha. Sai com ela numa noite,
dançam e, na manhã seguinte, o
arisco jovem parte novamente
sem rumo.
O segundo episódio é contado
em primeira pessoa por um su-
posto amigo de longas caminha-
das. Parece ser um alter ego de
Hesse, um ‘wanderer’, como di-
zem os alemães, que errou pelas
florestas da Alemanha com

Knulp em tempos passados. Co-
mo sempre, o narrador é igual-
mente abandonado pelo prota-
gonista, antecipando um recur-
so frequente da metaficção con-
temporânea – não sem razão
Hesse virou uma referência para
escritores da contracultura, qua-
se sempre autores que usavam
suas experiências pessoais em
obras literárias à maneira de Ke-
rouac ( On the Road ) ou John Fan-
te ( Pergunte ao Pó ).
Finalmente, no terceiro e der-
radeiro episódio, Knulp reen-
contra um amigo de infância a
quem ensinava Latim na escola,
agora um respeitado médico,

doutor Machold, que o leva para
casa, lhe dá abrigo e um capote
para se proteger do frio. Contra
a vontade de Knulp, o médico
busca um hospital para que o
amigo seja curado da tuberculo-
se. Veja como um século depois
o drama se repete – há quem de-
fenda a BCG (a vacina Bacillus
Calmette-Guerin, usada para
combater a tuberculose há 100
anos) contra o coronavírus.
Knulp desenvolve uma obses-
são pelo retorno ao lar e pede ao
amigo que use sua influência pa-
ra que esse hospital seja em sua
terra natal. O tísico expatriado,
o filho pródigo bíblico, quer nela

morrer. Antes, porém, topa com
outro conhecido, um britador
que o repreende por ter escolhi-
do o destino de um pobre diabo
quando poderia “ter sido coisa
melhor”. O homem, simples e ru-
de, Andres Schaibe, evoca o no-
me de Deus para tentar conven-
cer Knulp a seguir por outro ca-
minho. Este simplesmente esbo-
ça um inocente sorriso com indi-
ferença pagã, continuando sua
marcha sem rumo. “Para que fa-
zer-te diferente do que és?”, per-
gunta Deus ao filho pródigo na
floresta em que Knulp se refu-
gia. A vida que ele julgava estéril
e sem propósito ganha novo sig-

nificado com esse reencontro.
Ao virar andarilho em nome
do Pai, levando aos sedentários
uma certa nostalgia da liberdade
da vida nômade, tinha, enfim,
cumprido sua missão. Knulp
traz leveza a todos os que encon-
tra, desprezando o conforto ma-
terial, servindo como contrapon-
to à vida doméstica avessa à liber-
dade. No entanto, Knulp está
longe de ser classificado como
um personagem unidimensio-
nal, como observaram vários
críticos que refletiram sobre o
personagem. Nada é leve em sua
existência. Ele carrega o fardo
da responsabilidade com seus se-
melhantes.
No segundo episódio, por
exemplo, sem querer ofender o
outro andarilho que vaga com
ele pelas florestas, diz que nunca
se casou por não acreditar na ins-
tituição (Hesse foi por três ve-
zes casado, mas preferia ficar só
na natureza). Dois seres, justifi-
ca, podem até se encontrar, divi-
dir certa intimidade, mas suas al-
mas, compara Hesse, são como
flores de diferentes espécies que
podem até dividir o mesmo ter-
reno, mas preservando a autono-
mia de suas raízes. Só o vento é
livre e vai para onde quer. As flo-
res ficam presas ao chão. Assim
também são os seres.
Knulp é o vento, que sopra soli-
tário e desaparece na estrada.
Seu isolamento é próprio da na-
tureza daqueles seres inadapta-
dos, que foram feitos para viver à
margem da sociedade. É certo
que Hesse escreveu o livro em
meio a uma crise pessoal. Seu ca-
samento ruía. O escritor, na épo-
ca, era uma figura impopular na
Alemanha. Pacifista em meio a
uma guerra sangrenta, teve de se
isolar, trocar o centro urbano pe-
la solidão do campo, longe de
seus pares intelectuais. Em seu
confinamento encontrou uma
resposta que o guiaria para a arte
(ele era ótimo aquarelista, como
prova a ilustração desta página)
e o mundo literário.
Esse conflito se traduz de
modo mais claro na segunda
parte (ou episódio) do livro,
quando Knulp reencontra o ou-
tro andarilho. São duas expe-
riências nômades que não con-
vergem. Knulp tem a música e
a cultura como refúgio. Faz de-
las ferramentas para conquis-
tar os outros.
No episódio final, ainda que
um quarentão sem ilusões, ain-
da conserva um sorriso genero-
so diante de um mundo que se
esfacela no isolamento compul-
sório. Não deixe de ler Knulp. E,
naturalmente, as obras da matu-
ridade de Hermann Hesse, de O
Lobo da Estepe a O Jogo das Con-
tas de Vidro , passando por Sidar-
ta. É uma ótima companhia pa-
ra os tempos sombrios em que
se busca uma saída. Ou, ao me-
nos, um interlocutor.

EM ‘KNULP’, HESSE FALA


DE UM FILHO PRÓDIGO


BÍBLICO

Literatura*


Gilles Lapouge


Devo a este coronavírus um efei-
to inesperado: é uma felicidade,
quase uma festa, saber ler, sofre-
gamente. Desse modo, posso, à
minha maneira, esquecer dos
desconfortos da solidão obriga-
tória e me bronzear em uma
praia do Nordeste, participar da
epopeia guerreira de Bonaparte,
ou penetrar sorrateiramente
nas alcovas repletas de senhori-
tas e rendas do século 18.
No entanto, na minha infân-
cia, a coisa começou mal. Eu era
uma criança dócil, mas me sen-
tia pouco atraído pela leitura.
No colégio, tive de engolir como
um ganso uma literatura france-
sa ultrapassada. Fui obrigado a
decorar Racine e Corneille. Eu


achava que escreviam mal. Seus
tormentos me pareciam fúteis e
sua linguagem, pretensiosa.
O único que me agradava era
La Fontaine, porque eu gostava
das raposas que falavam com
corvos. Mas preferia desenhos
animados naqueles tempos dis-
tantes. Achava que Bibi Fricotin
se expressava melhor do que An-
drômaco. Minha mãe comprava
livros mais adequados à minha
idade, Jack London, Curwood,
ou mesmo Júlio Verne ou Ale-
xandre Dumas. Começava um
ou dois, ficava entediado, e me
refugiava em Bibi Fricotin. Ficou
decidido que, todo fim de tarde,
eu faria uma hora de leitura.
Mamãe instalava ao meu lado
um relógio despertador Jazz, cu-
jo toque estridente me libertava.
Não se poderia encontrar manei-
ra melhor de detestar os livros.
Mas um dispositivo suplemen-
tar transformou a penitência em
prazer. Na sala onde eu lia, havia
uma moça que passava a roupa.
Era uma mulher linda, jovem, co-
quete, sorridente e pouco inte-

ressada na leitura. Ela me vigia-
va com alegria. Eu colocava em-
baixo do livro que deveria ler um
Bibi Fricotin. Juliette passava rou-
pa assobiando umas árias espa-
nholas, porque Orã, onde morá-
vamos, era uma cidade muito es-
panhola. Trocávamos algumas
palavras, risadas, e ela voltava às
suas tarefas. Graças a Juliette, a
hora de leitura tornou-se delicio-
sa porque ela era realmente boni-
ta. Acho que ela acabou perce-
bendo o meu estratagema, meu
ardil, mas nunca me denunciou.
Eu me pergunto, aliás, se não ti-
nha me apaixonado um pouco.
Ou mesmo loucamente. Aconte-
ceu que, após algumas semanas,
deixei Bibi Fricotin para ler livros
de verdade. Mamãe ficou encan-

tada e felicitou Juliette. Foi as-
sim que o meu melhor professor
de leitura foi uma espanhola que
passava camisas em 1937, quan-
do eu tinha 14 anos.
Anos mais tarde, compreendi
que um livro é um milagre. Esta-
va passando as férias com um
tio, em sua casa no Var. Volta e
meia subia no sótão. Um dia, vi
um pequeno volume amarelo de
Arthur Rimbaud. Folheei o livro.
Fiquei perdido. Estava não sei
mais onde. Via letras que, diante
dos meus olhos, se arranjavam
fazendo um milagre. “A mim. A
história de uma das minhas lou-
curas. Há muito tempo me gaba-
va de possuir todas as paisagens
possíveis, e achava risíveis as ce-
lebridades, as pinturas e a poesia

moderna. Gostava de pinturas
idiotas, frontões de portas, enfei-
tes e de telas de saltimbancos,
tabuletas, miniaturas popula-
res, de literatura ultrapassada,
do latim da igreja, livros eróticos
sem ortografia, dos romances
das nossas bisavós, refrãos sim-
plórios, ritmos ingênuos...”
Tive de ler noites adentro,
sem compreender grande coisa,
mas cercado por paisagens, com
sois, luas, ruínas, escombros, a
música bruta de Rimbaud. Uma
formidável viagem, em rincões
longínquos, debaixo de chuvas,
pelas manhãs e nas noites. Mas o
que me fascinava antes de tudo
era que as 26 letras do alfabeto
que Rimbaud juntara pudessem
obter o resultado vertiginoso de

me doar o mundo.
Desde aquele dia, a escritura,
os livros, a impressão, me enre-
daram, me prenderam, me fecha-
ram, entregaram e despacharam
aos quatro cantos do mundo. Eu
não sabia quem era o inventor
do alfabeto, sem dúvida um ca-
meleiro fenício, mas o homem
era um gênio. Ele concebeu e
pôs à disposição de cada um
uma minúscula fábrica, capaz de
conter todos os pensamentos
que foram produzidos pelos ho-
mens de ontem e pelos homens
de amanhã. É destas reflexões
que data o meu amor imoderado
pela leitura, porque parece-me
compreender o ruído silencioso
das válvulas e das molas que me
transportam do outro lado do es-
pelho, junto dos matemáticos
do século 5 antes de Cristo, nas
trincheiras de 1914 ou nos esplen-
dores da Renascença, ou dos Az-
tecas, ou para uma cena familiar
entre um homem e uma mulher
do século 9. Em suma, uma pági-
na de escrita é um funâmbulo
que me envia ao fim de todas as
memórias arranjando letras.
Desde então, os meus encanta-
mentos jamais cessaram, nem a
lembrança dessa leitura de Rim-
baud. Sem esquecer de Juliette.
Ainda hoje, cada vez que fecho
um livro, ouço o eco do desperta-
dor Jazz que me diz que está na
hora de terminar minha leitura. /
TRADUÇÃO DE ANNA CAPOVILLA

COMO A LEITURA


VIROU PROTEÇÃO


NA QUARENTENA


HQ. ‘Bibi Fricotin’, a iniciação

LOUIS FORTON/LA SOCIÉTÉ PARISIENNE D' ÉDITION

KNULP
Autor:
Hermann
Hesse
Tradutora:
Julia Bussius
Ed.: Todavia
(112 págs., R$
40 papel, R$
32,50 ebook)

HERMANN HESSE-EDITIONSARCHIV

FRED STEIN

Fora de catálogo, livro escrito em 1915 pelo Nobel alemão


ganha nova edição em tempos de medo e insegurança


Poeta. DiCaprio viveu Rimbaud, primeira paixão, no cinema

Livros são uma poderosa


arma para esquecer os


desconfortos provocados


pela solidão obrigatória


pela qual passamos hoje


Paisagista. ‘Árvore, casa’, aquarela de 1922 pintada pelo escritor Hesse na Suíça, quando fazia se submeter à psicoterapia

Hesse: Um Nobel influente

TOP TAPE

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