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O ESTADO DE S. PAULO QUINTA-FEIRA, 9 DE ABRIL DE 2020 Especial H5
Mario Vargas Llosa
ESCREVE ÀXXXXl]
casa
L
embro perfeitamente as dez
quadras que havia entre a casa
da família Llosa, na Rua Ladis-
lao Cabrera, e o colégio de La Salle.
Eu tinha 5 anos e, sem dúvida, estava
muito nervoso. Neste dia, meu pri-
meiro dia de aula, as percorri com mi-
nha mãe que, inclusive, me acompa-
nhou até a classe e me deixou nas
mãos do Irmão Justiniano. Este me
apresentou àqueles que seriam meus
amigos de Cochabamba desde então:
Artero, Román, Gumucio. Ballivián.
O mais querido de todos, Mario Za-
pata, o filho do fotógrafo que havia
documentado todos os casamentos
e primeiras comunhões da cidade,
seria morto com uma facada, anos
mais tarde, em uma picantería (on-
de servem comidas típicas) de Cala
Cala. Como era a criança mais pacífi-
ca do mundo, sempre pensei que
sua morte horrível foi para defender
a honra de uma jovem.
O Irmão Justiniano era um anjo
caído na Terra. Tinha cabelos bran-
cos e olhos doces e cativantes. Ele
nos pegava pela mão e com ele cantá-
vamos e dançávamos cantigas de ro-
da repetindo o abecedário e as conju-
gações e assim, brincando, seis me-
ses mais tarde, eu já sabia ler. O car-
teiro depositava toda semana na ca-
sa quatro revistas, três argentinas e
uma chilena: Leoplán , para o avô Pe-
dro, Para Ti , que a vovó, mamãe e a
tia Lala liam, e para mim Billiken e El
Peneca. Esperava estas revistas como
o maná do céu e as lia do princípio ao
fim, inclusive os anúncios.Mamãe tinha um professor de vio-
lão e era uma leitora empedernida. Ela
me emprestou El Árabe e El Hijo del
Árabe , mas me proibiu de ler Veinte Poe-
mas de Amor y Una Canción Desespera-
da , de Pablo Neruda, um livro azul
com letras amarelas que escondia no
seu criado-mudo e relia à noite: eu a
ouvia, entre um bocejo e outro. Evi-
dentemente, o li, escondido; continha
uns versos que, eu tinha certeza (“Mi
cuerpo de labriego salvaje te socava/ y
hace saltar el hijo del fondo de la tier-
ra”), eram pecado mortal.
Aprender a ler foi a coisa mais impor-
tante que me aconteceu na vida e, por
isso, sempre lembro com gratidão do
Irmão Justiniano e das cantigas de ro-
da entre as maletas cantando e dançan-
do enquanto memorizávamos as con-
jugações. Graças à leitura, este mundo
pequenino de Cochabamba se tornou
o universo. Graças aos signos que con-
vertia em palavras e em ideias, eu viaja-
va pelo planeta e podia, inclusive, re-
troceder no tempo e tornar-me um
mosqueteiro, cruzado, explorador, ou
viajar pelo espaço até o futuro em na-
ves silenciosas.
Mamãe diz que a primeira manifesta-
ção do que, com os anos, viria a ser uma
vocação literária, foi que, quando os fi-
nais dos contos e dos romances que lia
não me agradavam, com minha letra tor-
pe de então eu os mudava. Não recordo
disso, mas lembro das horas que passa-
va lendo todos os dias, depois de voltar
do colégio La Salle e tomar meu copo de
leite frio com canela, meu alimento pre-
ferido. O avô Pedro zombava de mim:“Para o poeta, a comida é prosa”. Mas eu
ainda não escrevia versos em Cocha-
bamba, isso viria logo depois, em Piura.
Agora que, por culpa do coronavírus e
do isolamento forçado a que somos
submetidos nós, madrilenhos, leio do
amanhecer até o anoitecer, dez horas
diárias em um estado de felicidade ab-
soluta (moderada pelo medo da pes-
te); aqueles dias de Cochabamba vol-
tam à minha memória com os fantas-
mas imprecisos das primeiras leituras
que o subconsciente me devolve: a or-
gulhosa Diana Mayo caindo exausta
nos braços do seu sequestrador, Ah-
med ben Hassan, nos desertos da Argé-
lia; o espadachim que nasceu em uma
cela de prisão e, como os gatos, via na
escuridão; o Judeu Errante e sua pere-
grinação incessante pelo mundo.Nós, as crianças de então – pelo me-
nos em Cochabamba –, não líamos as
revistas em quadrinhos, mas livros, e,
sem dúvida, por isso jamais me viciei
em Popeye, o marinheiro musculoso.
Mas em Tarzan e Jane, com os quais
voava, de uma árvore a outra, pelas
selvas da África.
Na biblioteca cheia de teias de aranha
da Universidade de San Marcos, li mi-
nha primeira obra-prima: o Tirant lo
Blanc (Tirante o Branco), na edição de
Martín de Riquer, de 1948. Antes, po-
rém, quando calouro do Leoncio Prado,
devorei a série dos mosqueteiros de Ale-
xandre Dumas, e sonhava com D’Artag-
nan todas as noites.
Nada me deu tanto prazer e felicida-
de quando os bons livros, nada me aju-dou tanto como eles a superar os mo-
mentos difíceis. Sem a literatura, eu me
teria suicidado no período atroz em que
soube que meu pai estava vivo, quando
me levou a viver com ele e me fez desco-
brir a solidão e o medo. William Faulk-
ner mudou a minha vida em plena ado-
lescência; eu o li com lápis e papel para
identificar as mudanças de narrador, os
saltos temporais, os redemoinhos des-
sa prosa que mesclava personagens,
tempos e lugares, e no romance apare-
cia de repente um reordenamento da
história melhor do que o cronológico.
Para ler Sartre, Camus, Merleau-
Ponty, Simone de Beauvoir e demais co-
laboradores da revista Les Temps Moder-
nes , aprendi francês e inglês para enten-
der Hemingway, dos Passos, Orwell e
Virginia Wolf, e decifrar o Ulisses de Joy-
ce (consegui na terceira vez). Em uma
cabana de Perros-Guirec, na Bretanha,
no verão de 1962, li o tomo de La Pléiade
dedicado a Tolstoi e desde então Guerra
e Paz me parece o ápice do romance,
com o Dom Quixote e Moby Dick.
Entre as obras do século 20, nada su-
perou, na minha opinião, A Condição Hu-
mana , de Malraux, com a exceção de A
Montanha Mágica , de Thomas Mann.
Em Paris, no primeiro dia em que che-
guei, em agosto de 1959, descobri Flau-
bert e passei a noite toda, no Wetter Ho-
tel, lendo Madame Bovary. Para mim, es-
te foi o mais frutífero dos descobrimen-
tos: graças a Flaubert, soube o escritor
que eu queria ser e o não queria ser.
As boas leituras não só produzem feli-
cidade, elas ensinam a falar bem, a pen-
sar com audácia, a fantasiar, e criam
cidadãos críticos, receoso das menti-
ras oficiais dessa arte suprema do men-
tir que é a política. A vida que não vive-
mos, podemos sonhá-la; ler os bons li-
vros é outra maneira de viver, mais li-vre, mais bela, mais autêntica. Esta
vida alternativa tem, além disso, a
sorte de estar fora do alcance das pra-
gas demoníacas que sempre apavo-
raram os seres humanos porque
viam nelas os demônios, que, dife-
rentemente dos inimigos de carne e
osso, eram difíceis de derrotar.
Um bom leitor é o cidadão ideal
de uma sociedade democrática:
nunca se conforma com aquilo que
tem, sempre aspira a mais ou a coi-
sas diferentes das que lhe são ofere-
cidas. Sem esses anticonformistas,
seria impossível o progresso verda-
deiro, o que, além de enriquecer a
vida material, aumenta a liberdade
e o leque de escolhas para adequar
a própria vida aos nossos sonhos,
desejos e ilusões.
Karl Popper tinha razão: nunca es-
tivemos melhor do que agora (nos
países livres, evidentemente). O co-
ronavírus ressuscitou a barbárie no
que acreditávamos ser a civilização
e a modernidade. Vimos coisas horrí-
veis em Madri, por exemplo, nas resi-
dências: idosos aparentemente
abandonados por cuidadores que
não tinham máscaras nem remédios
nem qualquer tipo de ajuda. Os mor-
tos convivendo com os vivos, dor-
mindo nas mesmas camas.
O horror sempre supera o horror,
não importa o tempo histórico.
Mesmo assim, com toda a ruína eco-
nômica e social que essa praga ines-
perada trará para o país, se, depois
de sobrevivermos a ela, houver na
Espanha mais um milhão de espa-
nhóis, ou pelo menos cem mil, ga-
nhos para a boa leitura graças à qua-
rentena forçada, os demônios da
peste terão realizado um bom traba-
lho. / TRADUÇÃO DE ANNA CAPOVILLAAna Lourenço
Desde que passamos a malhar
em casa em razão do isolamen-
to social, a primeira grande deci-
são – além de levantar do sofá –
é escolher um cômodo para se
exercitar. Claro que o ideal se-
ria transformar um quarto va-
zio em uma academia comple-
ta, mas nem sempre há espaço
suficiente para isso.
Determinar um local específi-
co é importante. “Isso ajuda a
criar uma rotina de exercícios,
assim como estabelecer um ho-
rário para a malhação. Deixar tu-
do à mão também ajuda a não
perder o incentivo”, diz a perso-
nal organizer Carol Rosa.
Pensar em nichos para guar-
dar os objetos é uma ótima saí-
da. Armários, estantes, cestos
multiúso, caixas ou mesmo ob-
jetos comuns da casa podem
servir como organizadores. No
caso do diretor de TI Antonio
Carlos Pereira, que está malhan-
do em sua varanda desde que a
academia do prédio foi fechada,
a solução foi utilizar uma mesa.
“Minha mulher pegou uma me-
sinha da varanda e transformou
em um espaço para colocar os
pesos e caneleiras; assim não
deixamos tudo espalhado.”
Carol sugere que se faça ao me-
nos duas divisões: uma para pe-
sos e outra para colchões e tape-
tes – os quais devem ser enrola-
dos. “A organização é importan-
te para a mente e para a rotina.
Além de conseguir encontrar fa-
cilmente os equipamentos, você
deixa a casa em harmonia.”
De acordo com o personal trai-
ner Vinicius Di Fiore, que vem
colocando à disposição, em seu
Instagram (@viniciusdifiore),
vídeos com treinos para fazer
em casa, um espaço de 2 a 3 m² é
suficiente para se exercitar.
“Treino em casa é adaptação.
Você não vai treinar como na
academia. Com isso em mente,
é importante afastar os móveis
e as decorações para que não
ocorra nenhuma lesão, assim
como ter cuidado ao praticar os
movimentos para que eles não
sejam mal executados”, ensina.
Mesmo as paredes podem aju-
dar nos exercícios. “Utilize o
que tem em casa. Se tiver uma
escada, por exemplo, pratique a
parte aeróbica lá”, sugere.
Espaço, organização e funcio-
nalidade são essenciais. “É im-
portante pensar em um layout
que seja prático e não tenha em-
pecilhos para quem treina, se-
não, as pessoas desistem de ma-
lhar”, diz a arquiteta Beatriz
Quinelato. Assim, pense nas ati-
vidades usualmente praticadas
e separe os equipamentos ne-
cessários. Dessa forma, fica
mais fácil organizar o local.Criatividade. A médio e longo
prazo, é possível pensar em
adaptações mais profissionais.
A arquiteta Suellen Figueiredo
encontrou uma solução criativa
para uma cliente que queria
manter a arrumação da casa sem
abrir mão do espaço para a estei-ra do marido: uma mesa oca.
“Eles tinham uma esteira que
desmonta e pode ser dobrada.
Antes, ela ficava em um canto da
sala, de pé, mas no dia a dia risca-
va a parede e deixava tudo mais
feio”, conta. “Foi aí que pensa-
mos em uma mesa de centro que
acomoda a esteira.” A mesa,
com rodinhas, consiste em duas
partes, de forma que sua abertu-
ra e seu fechamento são fáceis:
basta separá-los e a esteira apare-
ce. “O aparelho fica totalmente
no chão, sem perigos. A mesa é
como se fosse uma casca.”
Unir estética e funcionalida-
de é a combinação perfeita. Tan-
to que algumas empresas de gi-
nástica também estão pensan-
do no assunto. A Technogym,
por exemplo, criou a sua pró-
pria linha home. “Bicicletas es-
pelhadas, equipamentos com
madeiras. Pensamos em uma li-
nha para ser aliada à decora-
ção”, diz a gerente de marke-
ting e trade marketing da Tech-
nogym Brasil, Geisa Ribeiro.
Por serem leves e bonitos,
aparelhos de ginástica estetica-
mente pensados podem ser po-
sicionados em outros ambien-
tes da casa, sem ser o quarto dos
fundos. “As pessoas hoje têm
muito pouco tempo e, quando
elas estão em casa, não querem
se isolar da família”, diz Geisa.
Com tempo, se for criar um
espaço planejado, é preciso se
atentar para alguns detalhes im-
portantes. O engenheiro civil
João Nilo Rodrigues Júnior ex-
plica que, de acordo com a Nor-
ma Brasileira (NBR), um aparta-
mento deve ter no máximo 150
quilos por metro quadrado –
por isso, equipamentos pesa-
dos estão vetados. Um bom es-
pelho e o piso são importantes.
“O ideal é que seja um piso apro-
priado, antiderrapante. Nem la-
minado nem porcelanato”, su-
gere a arquiteta Beatriz.
Ao decorar a sala de ginástica,
certifique-se de não entupir o
ambiente com objetos. Crie um
local que dê energia, mas que pro-
mova o foco. Que tal pendurar
frases motivacionais pelo cômo-
do para incentivar a malhação?Graças à leitura, este mundo
pequenino de Cochabamba
se tornou o universoFIQUE ATENTOESPAÇO
PARA MALHAR
O Irmão Justiniano
l Pense em comunidade
Certifique-se de que seu exercí-
cio não vai atrapalhar o vizinho –
seja por música alta ou impactos
fortes no piso. “Uma coisa é ter
uma academia para os tempos
de agora; outra é criar uma aca-
demia para sempre”, explica a
arquiteta Beatriz Quinelato. Em
tempos de quarentena, prefira
fazer exercícios funcionais, queutilizam o peso do próprio corpo,
ou usar acessórios mais simples.l Improvise
Mexa-se sempre que possível:
aproveite os intervalos comer-
ciais para dar uma volta pela ca-
sa e se movimentar. Alimentos
como açúcar, café e arroz podem
ser usados como peso em certos
exercícios. Garrafas d’água aju-dam a substituir halteres.l Integre a família
Malhar em grupo é uma forma
de incentivo: um estimula o outro
a não furar a rotina de malhação.
Aulas de dança, exercícios ae-
róbicos e body combat são boas
opções para agregar mesmo
quem não é fã da malhação
tradicional.FOTOS LUIZ FRANCOÉ possível criar um cantinho fitness com poucas adaptações – ou pensar a longo prazo
Espaço. Retire objetos de decoração e afaste os móveis para evitar lesõesTECHNOGYMIntegrada. A arquiteta Suellen Figueiredo encontrou uma solução para a esteira dobrável ficar escondida na sala: uma mesa oca, criada sob medida para o ambiente
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