O Estado de São Paulo (2020-04-09)

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A8 Internacional QUINTA-FEIRA, 9 DE ABRIL DE 2020 O ESTADO DE S. PAULO


WASHINGTON


O coronavírus está infectando
e matando negros e latinos de
maneira desproporcional nos
EUA, segundo dados de vários
Estados e cidades. Para os pes-
quisadores, a causa é a desigual-
dade no acesso à saúde e a cuida-


dos médicos. “Este é um mo-
mento de apelo à ação”, disse
Lori Lightfoot, prefeita de Chi-
cago, onde os negros são mais
da metade dos que testaram po-
sitivo e 72% das mortes por co-
vid-19 – mesmo que sejam me-
nos de um terço da população.
“Esses números assustam”,
disse Lightfoot, que é a primei-
ra negra a ocupar o cargo. Em
Illinois, 43% das mortes e 28%
dos contaminados são negros –
grupo que representa apenas
15% da população. Uma despro-
porção semelhante se repete
nos Estados de Michigan, Loui-

siana, Carolina do Norte e Caro-
lina do Sul.
Para especialistas, as razões
são as desigualdades estrutu-
rais crônicas. Em tempos de
quarentena, a maioria dos ne-
gros não pode se dar o luxo de
trabalhar em casa. Isso os colo-
ca em alto risco de contrair a
doença.
Desigualdades também dei-
xam os negros com menos con-
dições de terem seguro-saúde e
mais propensos a terem doen-
ças preexistentes. Além disso,
há indícios de que os médicos
encaminhem para testes pou-

cos negros com sintomas da co-
vid-19.
Em Nova York, a maioria dos
mortos pelo coronavírus são la-
tinos, segundo dados divulga-
dos ontem pelo prefeito Bill de
Blasio. Um relatório preliminar
aponta que 34% dos 3,6 mil mor-
tes por covid-19 são hispânicos,
que constituem 29% da popula-
ção da maior cidade americana,
de 8,6 milhões de habitantes.
“É uma disparidade flagran-
te”, disse o prefeito democrata.
De Blasio citou o idioma como
um dos principais motivos pa-
ra a maior letalidade entre os
latinos e anunciou uma nova
campanha de informação so-
bre o coronavírus em 14 lín-
guas. / NYT e AFP

CARACAS


Carlos Blanco, aposentado de
81 anos, e sua mulher, Olga Ro-
dríguez, de 78 anos, são diabéti-
cos, mas não recebem remédios
há mais de um ano, em meio à
crise econômica na Venezuela
que esmagou sua aposentado-
ria de cerca de US$ 3 por mês
(R$ 15,40), o valor de um único
pão no país.
Agora, em meio à quarentena
nacional, determinada no dia 16
pelo presidente venezuelano,


Nicolás Maduro, para tentar
conter a expansão do coronaví-
rus, o casal enfrenta mais difi-
culdades para comprar os pou-
cos alimentos que consome. O
dia é longo, sem acesso a TV a
cabo ou internet funcionando.
“Temos uma sentença de euta-
násia para os idosos na Vene-
zuela”, disse Blanco, que mora
no quarto andar de um prédio
no bairro de Coche, oeste de
Caracas.
Se em outras partes do mun-
do a covid-19 atingiu fatalmen-
te a população de adultos acima
de 55 anos, na Venezuela a situa-
ção é mais do que preocupante
em razão da crise econômica. O
governo afirmou que, até o dia
5, foram relatados 159 casos de
covid-19 com 7 mortes. Segun-
do o Escritório das Nações Uni-

das para a Coordenação de Aju-
da Humanitária (Ocha), do to-
tal de casos, 22 são pessoas com
mais de 60 anos de idade. O nú-
mero oficial, no entanto, é alvo
de críticas de especialistas.

Declínio. Na Venezuela, a po-
pulação mais velha “vem arras-
tando um declínio progressivo
em suas condições de vida com
desnutrição, incapacidade de

pagar medicamentos, falta de
acesso à saúde, migração de fi-
lhos e família”, disse Luis Fran-
cisco Cabezas, diretor da ONG
Convite, que desde 2006 traba-
lha em defesa dos direitos hu-
manos e estuda as condições
dos idosos do país.
De acordo com um estudo di-
vulgado em novembro pela
Convite e pela ONG HelpAge,
que consultou 903 venezuela-
nos com mais de 55 anos em 3
dos 23 Estados, 77% deles disse-
ram não ter acesso a comida su-
ficiente. Um em cada 10 disse
que vai dormir com fome todas
as noites.
Embora não haja dados ofi-
ciais, a ONG Convite estima
que pelo menos 900 mil idosos
foram deixados sozinhos no
país em razão do êxodo de pelo
menos 4,8 milhões de venezue-
lanos que fugiram da crise nos
últimos anos.
Blanco conta que ele e sua mu-
lher comem uma arepa (massa
de pão feita à base de farinha de
milho) com café preto pelas ma-
nhãs, todos os dias, e arroz com
lentilhas no final da tarde. O
aposentado acrescentou que,

apesar de receberem ajuda de
um de seus cinco filhos, profes-
sor de uma escola particular de
Caracas, ela não é suficiente pa-
ra comer três vezes ao dia.
Outros estão em pior situa-
ção. Andrea Guerrero, de 80
anos, mora sozinha em uma
pensão, onde paga 50 mil bolíva-
res (R$ 0,31), por uma pequena
sala no bairro de La Cruz, em
Chacao, leste de Caracas. “En-
tão, todos nós vamos morrer?”,
questiona Andrea, ao ser infor-
mada da quarentena.
Bem lentamente, ela esvazia
seis porções de alimentos doa-
das em marmitas, que são distri-
buídas gratuitamente, uma vez
por semana, pela Prefeitura de
Chacao, a 80 idosos que estão
sozinhos em condições de po-
breza ou que foram abandono
por parentes.
Blanco e a sua mulher passam
o dia assistindo à televisão, sem
acesso ao serviço a cabo, por-
que não podem pagar. “É difícil,
estou muito ansioso. Tomo sol
na janela, ando dentro do apar-
tamento, mas muitas vezes me
desespero”, conta o aposenta-
do. / REUTERS

Marcelo Godoy


Gherardo Colombo, um dos
magistrados que foi símbolo
da luta anticorrupção na Itá-
lia, está de volta à ativa para
investigar um novo escânda-
lo na Lombardia: a omissão
criminosa que levou à morte


por covid-19 de dezenas de
idosos em casas de repouso
na região. Uma delas é o Pio
Albergo Trivulzio (PAT), em
Milão.
Trata-se da mesma institui-
ção cuja prisão de seu então pre-
sidente, Mario Chiesa, em 17 de
fevereiro de 1992, provocou o

início da apuração que aniqui-
lou cinco partidos políticos ita-
lianos e levou centenas de políti-
cos, assessores e empresários
para cadeia: “Tangentopoli” ou
Operação Mãos Limpas.
O novo escândalo que envol-
ve o Trivulzio começou com
uma ordem dada pela região

lombarda, epicentro da epide-
mia na Itália, no dia 8 de março.
Pacientes com covid-19 deviam
ser transferidos de hospitais pa-
ra asilos para liberar leitos para
novos infectados.
A decisão expôs ao contágio
idosos que estavam no Trivul-
zio, o maior instituto geriátrico
do país, e outras casas de repou-
so. Em março, 29 homens e mu-
lheres morreram com quadro
infeccioso pulmonar semelhan-
te ao da doença no PAT. “Por
enquanto, não posso me mani-
festar sobre o Trivulzio”, disse
ontem Colombo ao Estado.
Ele é um dos três integrantes
da comissão montada pelo go-
vernador da Lombardia, Atti-
lio Fontana, para investigar o
que se passou no asilo. O presi-
dente da comissão será Vitto-
rio Demichele. Giovanni Can-
zio, chefe do órgão regional an-
ticorrupção, e Colombo, indi-
cado pela cidade de Milão, com-
pletam o grupo.
Logo depois da ordem da re-
gião lombarda, o PAT acolheu

duas dezenas de pacientes e foi
transformado em “central única
da emergência regional”. Os fun-
cionários da instituição faziam a
triagem dos pacientes que “rece-
biam alta” dos hospitais.
Só em 13 março, a central anali-
sou 113 pacientes, dos quais 60
ainda estavam com carga viral.
Apesar disso, nenhum de seus
funcionários tinha máscaras ou
qualquer outro equipamento de
proteção. Não se sabe ainda
quantos dos idosos mortos em
março, de fato, foram contami-
nados pelo coronavírus, pois ne-
nhum fez o teste. Sabe-se, no en-

tanto, que o PAT registrou no pe-
ríodo três vezes mais mortos en-
tre os internos do que no mes-
mo período de 2019.

Balanço. Na Itália, o coronaví-
rus já infectou quase 140 mil pes-
soas e matou 17,6 mil (9,7 mil na
Lombardia), das quais 542 on-
tem. De acordo com o jornal La
Repubblica , além dos casos ocor-
ridos na sede do PAT, outros 31
idosos morreram no mesmo pe-
ríodo em duas outras estrutu-
ras da instituição geriátrica: a
Casa Princesa Yolanda e o Insti-
tuto Frísia di Merate, que tam-
bém viram seu total de mortos
triplicar durante a pandemia
em relação a 2019.
A partir de abril, a direção do
instituto admite ter registrado
27 mortes que, “presumivel-
mente, contraíram a covid-19”.
Ao todo, 37 pessoas morreram
ali na primeira semana de mar-
ço, mas dez óbitos tiveram cau-
sas que não podem ser relacio-
nadas ao novo vírus. “Misturar
tantos pacientes de estruturas
diversas com a epidemia já co-
meçada foi como colocar o ví-
rus em um liquidificador e, com
a tampa aberta, ligar o aparelho,
espalhando a doença por todo
lado”, disse um médico do PAT
ao jornal Corriere della Sera.
Ao todo, estima-se que a epi-
demia tenha matado cerca de
600 idosos nos asilos milane-
ses. É sobre esse cenário – de-
nunciado por funcionários da
instituição – que Colombo, de
73 anos, terá de trabalhar.
Ele era o mais famosos dos in-
tegrantes do pool da Procurado-
ria da República, em Milão, no
momento em que o empresário
Luca Magni entrou no gabinete
de Chiesa, no Trivulzio, há 31
anos. Chiesa era homem de con-
fiança de Bettino Craxi, líder so-
cialista e ex-premiê da Itália.
Magni levava uma microcâmera
e 7 milhões de liras, propina pa-
ra um contrato de limpeza. Chie-
sa foi preso. Era o começo da
Operação Mãos Limpas.
Em 2007, quando as investiga-
ções caminhavam para deixar
impunes centenas de crimino-
sos, Colombo, então ministro
da Suprema Corte da Itália, deci-
diu deixar a magistratura. Acre-
ditava que combateria melhor a
corrupção dedicando-se a ensi-
nar cidadania e ética a estudan-
tes em palestras pelo país.

PANDEMIA DO CORONAVÍRUS


Negros e latinos enfrentam taxas altas de infecção nos EUA


l Grupo de risco

Pelo menos 900 mil


foram deixados sozinhos


por parentes que fugiram


da crise; maioria diz não
ter comida suficiente


Pandemia opõe de


novo personagens


da Mãos Limpas


l Desaceleração

Viagem no tempo. Pio Albergo Trivulzio, em Milão, está no centro de novo escândalo que será investigado pelo ex-magistrado Gherardo Colombo


BEBETO MATTHEWS/AP

Pandemia. Negros e latinos nos EUA: minorias em risco

Desigualdade e idioma são


apontados como causas


para a maior incidência


nos dois grupos, afirmam


autoridades e especialistas


MANAURE QUINTERO/REUTERS–24/3/

77%
dos venezuelanos com
mais de 55 anos disseram, em
pesquisa de uma organização
não governamental,
que não têm comida suficiente e
1 em cada 10 afirmaram
ir dormir com fome

Idosos veem vírus


como ‘sentença de


morte’ na Venezuela


Ajuda. Andrea Guerrero recebe comida de voluntários

CLAUDIO FURLAN/AP

140 mil
pessoas foram infectadas pela
covid-19 na Itália, que registrou
17,7 mil mortes. No entanto, o
número de novos casos por dia,
3,8 mil, representa uma
desaceleração com relação ao
auge da pandemia

Ex-magistrado Gherardo Colombo investigará novamente asilo de


Milão, onde dezenas de idosos morreram desde o começo do surto


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