Quintaesexta-feira,9e10deabrilde2020|Valor| 3
COLUNASOCIAL
A irrupção
comunitária
O governonemsabeonde
estãoe quemsãoosque
carecemdesocorro, que
agora setornaramobjeto
deinteressesóporquesão
ameaça aterradora ao
futurodocapitalismo
consumista.PorJoséde
SouzaMartins
Maisrápidasdo que outras
iniciativaspara contornarsocialmente
a disseminaçãoe os danosda covid-
têm sido as iniciativas comunitárias.
Comunidadeé um dos conceitos
científicosbanalizados nos últimos
anos,no Brasil.Mas, o fato de que
muitosgruposvicinaise empresas
estejamdandoàs suas ações
humanitáriaso nomede açõesde
comunidade, não deve ser
menosprezado.
Comunidadeesociedadesãodoisti-
posdeorganizaçãoedecondutaso-
ciais.Emmeadosdosanos1950,sobre-
tudoporinfluênciaamericana,houve
umatendêncianosentidodedepre-
ciaromodocomunitáriodevidaeva-
lorizaromodosocietário,odecorrente
daurbanização,daindividualização
dacondutaedasecularizaçãodascon-
cepçõessociais.Acomunitáriaseria
umtipoatrasadodesociabilidade.
Os estudos de comunidade, que os
antropólogos americanosrealizarame
difundiramna AméricaLatina, não
obstantea subjacente depreciação
ideológicado comunitário, possibili-
taramdescobertasimportantes sobre
a realidadesocial.
Ricasesignificativasconcepçõesco-
munitáriassobreareciprocidade,a
ajudamútua,oparentesco, oscritérios
dedistânciasocial,osaudáveleo
doentio,amedicinapopular,areligião
eamorteeatéodinheiroforamidenti-
ficadasedescritascientificamente.
Casodaconcepçãomoraldo“bem
limitado”,adequetudoexisteem
quantidadefinita,oquepedeparci-
mônianousoegasto.Daítécnicasde
economiapopular,dehonra,depu-
dor,deherança.Ummundosilencioso
eincongruentecomasfantasiasdaso-
ciedadequesedizcapitalista,masque,
paraospobres,éapenasdinheirista.
Os valorescomunitários, identifica-
dos equivocadamente comoelemen-
tos da culturarural,migrarampara as
cidades e em seus subterrâneosse re-
vigoraram. As eficazesreaçõescomu-
nitárias à pandemiaatual,na inven-
ção de redesde ajudamútuae de
apoio, são herançasde um enorme
patrimônio culturale moral,que
daí procede.Resistemà destrutiva
ignorânciadosensocomumpós-
moderno e consumista.
Aquitudotendeaserreduzidoao
anticomunitárioterounãoter.Disse-
minou-seorótulodeexclusãosocial
paraindicarquesóestãoincluídose
são“normais”osintegradosnasocie-
dadedeconsumo,dacompraedaven-
da.Tudotempreço,atéaalmaeasalva-
ção.Háreligiõesespecializadasnisso.
O governo, nascidodessamentali-
dade,nem sabe ondeestãoe quem
são os que carecemde socorro. Os que
agorase tornaram objeto de interesse
do Estadosó porque,pobrese esque-
cidos,são uma aterradoraameaçaao
futurodo capitalismoconsumistae à
sobrevivência dos que o representam
e dele se beneficiam.O vírussubversi-
vo tornou-osdemocraticamente
iguaisaos maisricosdo país.
Ovírusnãoreconhecealegitimida-
de das classificações, barreirassociais
e hierarquias fundadasem doutrinas
econômicas comoas da escolade Chi-
cago. As que formama mentedomi-
nantenummundosó para os próspe-
ros; não para o próximo. A mentalida-
de por trás dessainterpretação antis-
socialde economiatem comoreferên-
cia uma concepçãocoisificadorada
condiçãohumana.
Não reconheceas tradições que fa-
zem do homemum ser propriamente
humano. Nema contradiçãoque mo-
ve o capitalismo para cimae para o
abismoao mesmotempo. A bolsadiz
que tudovai bem e, de repente,o vírus
sem remédio diz que tudovai mal.
Não há economistaque cure isso.
JoaquimFalcão, em artigorecente,
foi incisivoem mostrarque o governo
de Jair Bolsonaro, no que respeitaà
pandemia,não tem a mínima ideiado
que é a populaçãoque perturba suas
certezasdescoladasda realidade e do
bomsenso. O autorchamou a atenção
para o carátercomunitário das rea-
ções que supremas melancólicas relu-
tânciasdo governo.
UmsociólogoalemãodoséculoXIX,
FerdinandTönnies(1855-1936),autor
deumlivroquetemjustamenteotítu-
lo“ComunidadeeSociedade”, muito
antesdeumacorrentedasociologia,
equivocadamente,polarizarosconcei-
toseosempobrecer,jáhaviasublinha-
doqueacomunidadeéosubstrato
persistentedasociabilidadehumanae
queosocietáriolheésobreposição
inautênticaefrágil.
Sãoasestruturassociaisprofundas
dacomunidadequeservemcomorefe-
rênciaregeneradoraeatéinovadora
desociabilidadeondeaanomiaeas
rupturascomprometemasaçõesauto-
protetivasdasociedade.Comoagora,
nocasodapandemia.
Sectário e desinformado, o governo
limitouos recursosde bolsasde estu-
do e pesquisapara as ciênciashuma-
nas. Justamenteas que podemrealizar
investigaçõescientíficassobreas si-
tuaçõessociaisem que a sociedadees-
pontaneamentee eficazmentecria,
em regime de urgência,a estratégia
socialde compreensão da doençae de
seu tratamento na perspectiva revolu-
cionáriada comunidade.■
CARVALL
JosédeSouzaMartinsé sociólogo.
ProfessorEmérito daFaculdadede
FilosofiadaUSP. PesquisadorEmérito do
CNPq. Membro daAcademiaPaulistade
Letras.Entre outroslivros,autorde
“MolequedeFábrica”(AteliêEditorial).