Quintaesexta-feira,9e10deabrilde2020| Valor| 33
É TUDO VERDADE
A praga que
escapou
das telas
Coma pandemia da
covid-19 tornou-se
pesadeloacordado,
concreto e cotidiano
aquilofartamente
contempladoantes
apenascomoenredos
que acompanhávamos
nas telas de cinemae de
TV. PorAmirLabaki
REPRODUÇÃO
“Vampiros de Almas”(1956) é relembrado por Pedro Almodóvar em texto recente
É comoviverdentrode um filmede
terror. O isolamentodomésticoe o
distanciamento social,provocadospe-
la crise sanitáriado novocoronavírus
e sua macabracontagemde vítimas
planetárias, disseminaramessa metá-
fora. Tornou-sepesadeloacordado,
concretoe cotidianoaquilofartamen-
te contempladoantesapenascomo
enredosque acompanhávamosnas te-
las de cinemae de TV.
Nãoqueoriscofosseinimaginável.
Em1998JaredDiamond,em“Armas,
GermeseAço”, escreviasobreos“muitos
agentespatogênicosquetentaramsaltar
dosanimaisparanós—eamaioriafra-
cassou”.Acovid-19soma-seagoratragi-
camenteàminoriaquevingou.
Asensaçãolargamentedifundidaéa
deestarvivendoumaformamaligna
dasíndromede“A RosaPúrpurado
Cairo” (1985),deWoodyAllen.Adife-
rençaéqueoqueosaidatelapara
adentraromundorealnãoéogalãde
umfilmedeaventuras(JeffDaniels),
masosagentesmalévolosdeumadas
necrotopiasfílmicas.
Comoarealidadeémaiorqueafic-
ção,combinam-senestatransiçãoele-
mentosdramáticosdeumasériedefil-
mesformandoummosaicotenebroso.
Algosimilarjáocorreranosataques
terroristasde11desetembrode2001,
quandoestratégiashomicidasdevi-
lõesdos“blockbusters”dosanos1980
e1990transferiram-sedocinemapara
ceifarvidassobaformadecamicases
empoderdeaviõesdecarreira.
Oacervofílmicoagoraextravasado
paranossocotidianositua-seprinci-
palmentenacinematecadeficção
científicadoaugedaGuerraFria,apar-
tirdefilmesetelessériesdosanos1950
e1960.Aameaçadaguerranuclearea
paranoiadainfiltraçãocomunistaca-
talisaramenredoscentradoseminimi-
gosinvisíveis,insidiosos,alienígenas—
exatamentecomoonovocoronavírus,
surgidonointeriordaChina,aindano-
minalmentecomunista.Assimsereju-
venesceuestaoutrametáfora.
Tudosepassacomoseastramasde
váriasdistopiassecombinassempara
somarimpactoaopulardastelasparaa
vida.Numtextoparaojornalon-line
espanholeldiario.es,ocineastaPedro
Almodóvarfoiumdosquemelhorarti-
culouporescritoessasensação,preci-
sandoasreferênciasfílmicas:
“A sérieamericanaB, filmesgeralmen-
teexcelentes(especialmenteaquelesba-
seadosnosromancesdeRichardMathe-
son,‘OIncrívelHomemqueEncolheu’,‘A
ÚltimaEsperançadaTerra’, ‘Alémda
Imaginação’),alémde‘ODiaemquea
TerraParou’, ‘ComasHorasContadas’,
‘PlanetaProibido’, ‘VampirosdeAlmas’”.
Umdosmaioresespecialistasmun-
diaisemdocumentários,oamericano
BillNichols,tambémsevoltouparao
cinemadeficçãocientíficadosanos
1950emduaspostagensnoFacebook.
Inicioutambémrecordando“Vampiros
deAlmas”,realizadooriginalmenteem
1956porDonSiegelapartirdeumro-
manceseriadodeJackFinneynarevista
“Collier’s”(erefilmadocomimpactosi-
milarporPhilipKaufmanem1978).
“Todomundoénormalnapequena
cidadedaCalifórniaaténãoser”, escre-
veuNichols.“Oscasulosincubamper-
todavítimae,quandocompletamo
processodeabsorçãodapersonalida-
dehumana,substituemapessoareal
porumduplo(geradopelo)casulo.”
Nossascaminhadasdiárias,manten-
doadistânciarecomendada,remetem,
nofilme,àquelesque“aindanãofo-
ramdominadospeloscasulos,ainda
veemseusamigosevizinhosaoseure-
dor,masagoraostemem”.Registrei
exatamenteessasensaçãoapósminha
primeirasaídadoconfinamentono
diaanterioràpostagemdeNichols.
Nãomenoscerteirafoialembrança
porelede“PânicodasRuas”(1950),de
EliaKazan.Trata-se,afinal,de“umfilme
de1950emqueumhomemcomuma
certaformadepragapodeseramorte
dacidadedeNovaYork”.Jáasimagens
dasmetrópolesdesertificadasportodo
ogloboremeteram-medeprontoàSan
Franciscoaniquiladapelaradioativida-
denuclearde“A HoraFinal”(1959),de
StanleyKramer,comosacounoarna
GloboNewsseucorrespondenteem
BuenosAires,ArielPalacios.
O“zeitgeist”daeradocoronavíruses-
táimpressomaisnestafilmotecaapoca-
lípticadoquenorecente“Contágio”
(2011),deStevenSoderbergh,quecom
arrepiantepresciênciapareceumdocu-
drama“avantlalettre”daatualcalami-
dade.“Co ntágio” estáparanossosdias
como“NovaYorkSitiada”(1999),dirigi-
doporEdwardZwickapartirdavidente
tramadeLawrenceWright,anteviuo11
deSetembro.QueWrightestejalançan-
doexatamenteagoraumnovoromance
sobreumaepidemiaglobaliniciadana
Ásia,“TheEndofOctober”, apenasreafir-
maseufarojornalístico.
AHistória,estupidamentepronuncia-
damortaem1989,voltouparavingar-se
nesteiníciodoséculoXXI.Eofezdidati-
camente,cavalgandoduasquestõescon-
sideradassuperadaspelahumanidade
contemporânea:oextremismoreligioso
easepidemias.Comoem“A HoraFinal”,
cadaumentoahojesuaversãode“Walt-
zingMathilda”eserve-semaisumadose,
enquantoaguardaachamadadefinitiva
pelaroletarussadacovid-19—atéquea
medicinanosapazigue.Aomenosatéa
próximapandemia.■
AmirLabaki é diretor-fundadordo
É Tudo Verdade —Festival Internacional
de Documentários.
E-mail:[email protected]
Sitedo festival:
http://www.etudoverdade.com.br