O Estado de São Paulo (2020-04-13)

(Antfer) #1

NA


Paladar


Na cozinha com as crianças PÁG. H3


Autores dão dicas de como usar dias de


isolamento para começar a escrever


Fernanda Boldrin


Foi o poema A Morte É que Está
Morta
, de autoria de Mario Quin-
tana, que levou o estudante de
engenharia Victor de Oliveira
Dias a começar a escrever em
meio à quarentena imposta pelo
novo coronavírus. O texto ser-
viu de inspiração para que ele se
reunisse virtualmente com um
amigo dos tempos de escola e
desse início a um projeto poéti-
co e audiovisual, com reflexões
sobre a morte, a ser tocado em
dupla no tempo de confinamen-
to. “Senti cansaço de ser passivo
com as artes, de apenas absor-
ver”, relata Victor.
O jovem continua com os
compromissos da faculdade,
mas diz que, em casa, sua agen-
da está mais flexível. Se por um
lado a quarentena adia vida e pla-
nos, outras atividades – que na
correria do dia a dia costumam
ficar para depois – ganham espa-
ço. É o caso da escrita, que tam-
bém passa a funcionar como me-
morial dos dias de confinamen-
to. Pensando nisso, o Estado ou-
viu escritores e suas dicas sobre
como começar a escrever neste
período.
“Se escrever é algo que você
quer fazer, mas, por alguma ra-
zão, sempre tem uma desculpa
para adiar, esta é uma oportuni-
dade”, diz a poeta e escritora An-
gélica Freitas. Autora dos títu-
los Rilke Shake e Um Útero É do
Tamanho de um Punho,
ela conta
que, embora confinada, man-


tém seu ritmo de escrita, e inven-
tou até uma forma de não per-
der a conexão com o mundo.
“Como eu não posso sair à rua
ver pessoas, tenho observado o
movimento da minha janela.
Tento imaginar para onde vai
quem passa por aqui.”
Para ela, ter um caderno por
perto e se comprometer a escre-
ver sempre no mesmo horário
são ótimos primeiros passos.
“Eu gosto de começar e termi-
nar o caderno; funciona como
um incentivo”, conta Angélica.
“Acordo, faço um café, volto pa-
ra a cama e escrevo. Acho esse
horário, quando você acabou de
sair de um sonho, muito propí-
cio para inventar coisas.”
Mais assertiva, a escritora e
crítica literária Noemi Jaffe afir-

ma que, “para escrever, é preci-
so escrever”. “Não espere uma
inspiração, porque ela só vem
quando a gente senta para escre-
ver. Não espere nada”, afirma
ela, que tem se dedicado a escre-
ver e publicar nas redes sociais
um diário da quarentena. Em
uma postagem feita no dia 2 de
abril, por exemplo, ela relata as
“paranoias” com a pandemia:
“Minhas discussões com o
João são quase sempre sobre ar-
rumação e higiene – eu mais de-
sencanada; ele mais atento.
Mas hoje era eu ‘paranoicando’
nas embalagens, com água sani-
tária, esponja e cansaço, e ele
‘não é pra tanto’”.
Na visão de Noemi, esse mo-
mento seria muito favorável pa-
ra a escrita, justamente por ser

um período de introspecção e so-
lidão. Mas, como o confinamen-
to é forçado e vivemos preocupa-
dos com o que pode acontecer,
fica mais difícil conseguir um in-
grediente que ela considera fun-
damental: a concentração.
Apesar disso, Noemi vê na es-
crita um gesto de transforma-
ção, uma maneira de, com o mal-
estar e a imprevisibilidade da si-
tuação, fazer palavras. “Quando
faço isso, me alivio”, conta ela,
que também aplica essa potên-
cia em sua vida íntima. “Faz pou-
co tempo que perdi minha mãe,
então, acabei escrevendo muito
sobre ela neste período.”
Para quem quer começar a es-
crever, ela sugere um mergulho
em assuntos desconhecidos. E,
em tempos de coronavírus e

ciência no noticiário, tema não
falta. “(Pesquise) sobre astrono-
mia, sobre alguma planta, sobre
cavernas francesas. Qualquer as-
sunto que você não domine na-
da, mas pesquise em detalhes,
vá entender a anatomia do be-
souro. Assim, você descobre as-
suntos que não têm nada a ver
com sua realidade, e isso é mui-
to inspirador.”
Na caixinha de ferramentas
de Noemi e de Angélica, estão
também os desafios verbais. Po-
de-se tentar, por exemplo, escre-
ver um texto sobre amor sem
usar a palavra “amor”, ou um tex-
to sem usar nenhuma vez a letra
“e”. Explorar uma história já co-
nhecida pela perspectiva de ou-
tra personagem ou, ainda, escre-
ver um poema para os cinco obje-
tos mais próximos de si.
Enquanto isso, Michel Laub,
autor de livros como O Tribunal
da Quinta-feira e A Maçã Envene-
nada , diz achar a quarentena
um período difícil de “se desli-
gar”. “Eu já estava escrevendo,
terminando um livro, então es-
tou aproveitando para tentar fa-
zer isso. Mas, como todo mun-
do, minha rotina mudou um
pouco, também porque estou
muito preocupado. É difícil pa-
rar para escrever como há dois
meses”, diz ele.

Angústias. Laub ainda reflete:
“Neste momento em especial,
essa é uma questão de classe

média. Quem tem tempo e con-
dições de sentar, ter um pouco
de paz e escrever é quem tem o
que comer, quem tem um teto
para dormir. Acho que o recor-
te social vai ficar mais agudo
neste momento, porque as pes-
soas estão preocupadas em so-
breviver.”
Em sua visão, soma-se a essa
preocupação a “angústia normal
de quem escreve no Brasil”, dian-
te da “irrelevância da ficção, da
arte” para boa parte da socieda-
de. “Já é um desafio em épocas
normais, porque o mundo hoje
presta pouca atenção nisso. E
agora tem também a angústia
material e de como será o mun-
do daqui para frente”, avalia.
Foi a angústia do confinamen-
to que impôs ao escritor Geova-
ni Martins uma mudança de rit-
mo. “Eu estou em quarentena
faz aproximadamente um mês,
e senti a dificuldade de produ-
zir crescer à medida que a qua-
rentena foi aumentando”, con-
ta ele. “Acho que tem a ver com
uma incapacidade de ignorar o
que está acontecendo lá fora. As
notícias e a preocupação vão
chegando.”
Para Martins, que usa o que
ouve nas ruas como material pa-
ra escrita, o isolamento social
também é uma barreira criati-
va. “O trabalho fica com mais
do que a solidão necessária –
você acaba ficando sem ter co-
mo trocar sentimento, como
trocar ideia.”
Segundo o escritor, a crise ins-
taurada abalou algo muito im-
portante para quem lida com a
criação, “o significado das coi-
sas”. “Se seu trabalho não faz sen-
tido, ele não anda. Então, acho
que é uma luta pelo significado –
por que contar histórias agora?”
A saída que ele encontrou foi
buscar um tema que tivesse a
ver com o momento atual. Mar-
tins passou a se dedicar a um
projeto mais curto, em forma
de roteiro teatral, que fala so-
bre uma família em quarente-
na. E sua dica é certeira: “O prin-
cipal é encontrar alguma coisa
que vai te mover neste momen-
to, que não tem sido normal na
vida de ninguém”.

QUARENTENA


INSPIRE-SE

EM BUSCA DE


PALAVRAS


PARCERIA

CURSOS ONLINE PARA APERFEIÇOAR A ESCRITA


FELIPE RAU/ESTADÃO

Michel. ‘É difícil parar para
escrever como há dois meses’

Noemi. ‘Não espere uma
inspiração. Não espere nada’

Júlia Corrêa


É possível aproveitar o tempo
em casa durante a quarentena
para investir em cursos varia-
dos que ajudam a aprimorar a
escrita. Veja algumas opções:


Escrevedeira
Entre os cursos online do cen-
tro cultural, há opções como Ar-


tes e Artimanhas da Crônica,
com o escritor Fabrício Corsa-
letti, nas segundas-feiras de 13
de abril a 4 de maio, das 19h30 às
21h30 (R$ 390). Outra opção é A
Escrita do Conto Contemporâ-
neo: Cenário, Trama, Persona-
gens, com Paulo Scott, nas quin-
tas-feiras entre 23 de abril e 18
de junho, das 19h30 às 21h30
(R$ 780). Mais informações es-

tão no link bit.ly/escrvr.

Casa do Saber
Até 18 de abril, a Casa do Saber
disponibiliza gratuitamente o
conteúdo de sua plataforma on
demand. Nela, é possível assistir
às aulas do curso Introdução à
Escrita Criativa, ministrado pe-
lo escritor Antônio Xerxe-
nesky, com lições sobre como

estruturar textos curtos e ficcio-
nais. Confira em bit.ly/escrcds.

Escreva seu Livro
Com 20 mil inscritos, o canal
Escreva seu Livro, no YouTube,
compartilha diversos vídeos
com lições que vão desde como
criar tensão narrativa em uma
história até como evitar clichês
na ficção. As dicas ainda envol-

vem temas ligados ao mercado
editorial. Acesse: bit.ly/cseuliv.

Ficçomos
A jovem Wlange Keindé coman-
da o canal do YouTube Ficço-
mos (bit.ly/canalfic). Em vídeos
descontraídos, ela dá dicas de co-
mo criar personagens, descri-
ções e diálogos, como escolher o
título ou fazer a capa de um livro.

Ela também faz resenhas de
obras sobre criação literária e
compartilha lições gramaticais.

Ficção em Tópicos
Como o nome indica, o blog Fic-
ções em Tópicos (bit.ly/ficto-
pic), de Diego Schutt, apresenta
conteúdos detalhados sobre a
criação literária. Entre as seções,
é possível aprender técnicas que
ajudam na fluência do texto – liga-
das, por exemplo, ao estilo, à ca-
racterização dos personagens e à
estrutura do enredo.

VICTOR DE OLIVEIRA

Victor. Reflexões no papel
durante a quarentena

l Concentração
Procure um ambiente onde você
possa ter um tempo sozinho.

l Rotina
Comprometa-se a escrever no
mesmo horário, ainda que por
um curto intervalo de tempo.

l Caderno
Tenha sempre um caderno por
perto. Além de ajudar a não per-
der ideias pelo caminho, come-
çar e terminar o caderno funcio-
nam como incentivos à escrita.

l Observação
Olhe com atenção as coisas acon-
tecendo ao seu redor, dentro ou
fora de casa. A poeta Angélica
Freitas vê o movimento da rua
pela janela, tentando imaginar
para onde vai quem passa por ali.

GEOVANI MARTINS

Angélica Freitas.
Observação dentro e
fora de casa é alimento
para a criação de histórias

Geovani. ‘Sinto a
dificuldade de produzir
crescer’

MICHEL LAUB

TABA BENEDICTO / ESTADÃO

%HermesFileInfo:H-1:20200413:H1 SEGUNDA-FEIRA, 13 DE ABRIL DE 2020 (^) O ESTADO DE S. PAULO

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