O Estado de São Paulo (2020-04-13)

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A6 SEGUNDA-FEIRA, 13 DE ABRIL DE 2020 O ESTADO DE S. PAULO


Internacional


Imigrantes brasileiros ilegais recebem


ajuda para enfrentar surto nos EUA


Solidariedade. Solange Paizante (com máscara rosa) distribui quentinhas e cestas básicas para imigrantes brasileiros em Newark, Estado de New Jersey

PANDEMIA DO CORONAVÍRUS


Beatriz Bulla
CORRESPONDENTE / WASHINGTON


O Domingo de Páscoa dos
americanos foi mais um dia
de calvário, com 30 mil novos
infectados e quase 2 mil mor-
tos em 24 horas. Se os hospi-
tais sobrecarregados aumen-
tam a angústia da população,
algumas comunidades são
obrigadas a apostar na sorte.
É o caso dos imigrantes ile-
gais, entre eles muitos brasi-
leiros, que vieram armados
de um sonho e estavam prepa-
rados para qualquer coisa,
menos para uma pandemia.

Larissa – a real identidade de
todos os ilegais foi preservada –
atravessou a fronteira do Méxi-
co com o marido e o filho de 6
anos em novembro. Pensava
que teria nos EUA uma vida me-
lhor do que a que levava em Mi-
nas Gerais, onde trabalhava em
uma plantação de café. Mas o
sonho ficou para trás.
Logo na entrada, o marido fi-
cou detido no centro de imigra-
ção e foi deportado há dez dias.
Sem falar inglês, sem documen-
tos, sem emprego, sem o mari-
do e com o filho, Larissa sabia
que seus dias não seriam fáceis
quando chegou a Newark, mas
não imaginava que estaria no
epicentro de uma pandemia.
“Viemos com a ideia de traba-
lhar e conseguir comprar uma
casa. Deu tudo errado. Eu só
choro”, afirma.
Newark fica no Estado de
New Jersey, a cerca de 15 minu-
tos do centro de Manhattan. Na
última semana, Nova York vi-
veu seus dias mais duros desde
que o Estado passou a concen-
trar mais de 40% dos casos de
coronavírus nos EUA – país que
tem hoje mais de meio milhão
de infectados e 22 mil mortos
por covid-19.
Para o imigrante ilegal, en-
frentar a crise é quase uma bata-
lha perdida, porque muitos não


têm plano de saúde, não falam
inglês, sobrevivem de trabalho
informal e, sem documentação
regularizada, não terão ajuda
do governo. Hoje, mais de 3 mi-
lhões de pessoas que vivem em
Nova York são estrangeiros –
38% dos moradores da cidade.
A estimativa é que 600 mil se-

jam imigrantes ilegais. No país
inteiro, cerca de 11 milhões vi-
vem ilegalmente, segundo o
Pew Research Center.
No caso dos brasileiros, uma
rede de apoio informal tem da-
do comida e apoio aos que preci-
sam de ajuda. “A maior parte
dos brasileiros da região não
tem documento e está emprega-
da no setor de serviços ou infor-
mal. É a comunidade que está
sofrendo mais. A maioria não
tem reserva financeira, ou tem
para só um mês”, afirma Alejan-
dra Merklen, do Grupo Mulhe-
res do Brasil NY.
Morando de favor na casa da
cunhada, Larissa é faxineira, ga-
nha de US$ 60 a US$ 80 por dia
de trabalho. Com a pandemia, o
trabalho diminuiu, mas não pa-

rou. Apesar das recomenda-
ções das autoridades, algumas
casas continuam a contratar
diaristas. E ela nunca nega servi-
ço. “Acho que os patrões não
me passariam a doença. Antes
de ir, a gente procura saber se
eles estão passando mal. Se esti-
vessem doentes, me avisa-
riam”, diz.
Cinco meses depois de che-
gar aos EUA, Larissa está de ma-
las prontas para voltar. Conse-
guiu pagar a passagem com doa-
ções e planeja partir nesta sema-
na. O Consulado do Brasil em
Nova York tem recebido pedi-
dos de ajuda para providenciar
documentação para brasileiros
que querem ser repatriados.
Solange Paizante é coordena-
dora de uma das associações da

região de Newark, a Mantena
Global Care, que tem ajudado
Larissa. Com apoio de Ruy de
Almeida, empresário do setor
imobiliário da região, a ONG
distribui cestas básicas para fa-
mílias de brasileiros sem docu-
mentos e marmitas para os que
não podem cozinhar.
“Muitos estão fragilizados.
Vieram pelo México. Pai, mãe,
crianças. Já chegaram com dívi-
das e no meio da pandemia.
Eles estão passando muita ne-
cessidade. Gastaram tudo para
vir para cá só com o sonho, co-
mo eu vim, como milhares vie-
ram”, conta Solange, que aguar-
da o fim do processo para obter
um green card. “Tem até brasi-
leiro da Pensilvânia que veio pa-
ra conseguir a cesta.”

Marta viajou de Belo Horizon-
te para os EUA há cinco anos.
Grávida de sete meses, diz que
seu maior medo sempre foi o de
se contaminar durante a gravi-
dez. Agora, ela se preocupa com
o marido, que ficou desemprega-
do com a paralisação do setor de
construção civil. Ela estava na
reta final para regularizar sua si-
tuação quando todo o atendi-
mento, inclusive de órgãos de
imigração, foi suspenso.
“Sem os documento, tenho
medo de pedir assistência finan-
ceira do governo e isso prejudi-
car meu processo nas cortes de
imigração”, diz Marta, em refe-
rência à ajuda de US$ 1,2 mil do
governo americano. “Acho que
teria direito. Mas, na dúvida,
prefiro não arriscar.”

Muitos partiram do Brasil em busca de trabalho e estavam preparados para qualquer coisa, menos para uma pandemia; sem direito a


benefícios e dependendo de empregos informais, alguns sequer conseguem se comunicar com médicos por não dominarem o inglês


WASHINGTON


Nicole Silva é americana e filha
de portugueses. Durante a facul-
dade de medicina, se envolveu
em projetos voluntários com
imigrantes brasileiros. Quando
a crise do coronavírus come-
çou, ela sabia exatamente do
que as pessoas precisavam: aju-
da em português para identifi-
car a gravidade dos sintomas.
“Aqui nos EUA não tem SUS, os
imigrantes sem documentos
não têm seguro de saúde. As pes-
soas têm medo de ir ao hospital,
de ligar para o médico sem falar
inglês. Estamos aqui para aju-
dá-las”, afirma Nicole.
Com mais quatro estudantes
de medicina e enfermagem, ela
passa por telefone orientações
básicas sobre procedimentos
em casos de suspeita de covid-



  1. Os pacientes são monitora-
    dos com ligações diárias. Se elas
    identificam que os sintomas es-
    tão se agravando, fazem a inter-
    mediação com um hospital e pe-
    dem a ambulância. O grupo co-
    meçou os atendimentos tele-


fônicos em 23 de março. Até
quinta-feira, já tinham 50 no-
mes na lista – pelo menos qua-
tro novos pacientes adiciona-
dos todos os dias.
A dificuldade de comunica-
ção nos hospitais não é exclusi-
va dos brasileiros. Um aplicati-
vo criado na época da crise da
Síria para ajudar refugiados
tem sido usado em Nova York
para que pacientes infectados
consigam ser tratados. O Tar-
jimly conecta voluntários dis-
postos a fazer uma tradução si-
multânea aos pacientes.
Andrea Eboli, também coor-

denadora do Grupo Mulheres
do Brasil NY, se inscreveu co-
mo voluntária no aplicativo,
que já tem 20 mil cadastrados
ao redor do mundo. “Sabemos
que a questão do imigrante não
saber a língua local é um proble-
ma grande”, afirma Andrea.
Na semana passada, seu tele-
fone tocou duas vezes. Na pri-
meira, uma brasileira precisava
fazer o cadastro de entrada no
hospital, mas não entendia a fi-
cha. Andrea conseguiu ajudar
com uma ligação por vídeo. Na
segunda, um paciente que fala-
va espanhol tentava dizer ao

médico o que estava sentindo e
pediu ajuda por mensagem de
texto. “É bem simples, bem rápi-
do. Tenho certeza que ajudei

pessoas. É uma revolução para
o atendimento do imigrante.”
Michelly Carvalho, é de Vila
Velha (ES) e mudou-se para os
EUA aos 18 anos para trabalhar
e fazer faculdade. Formada em
ciências biológicas e estudante
de enfermagem, ela faz parte do
grupo coordenado pela portu-
guesa Nicole para atender brasi-
leiros. Segundo Michelly, o pas-
so inicial foi passar aos brasilei-
ros as informações locais.
“Muitas pessoas na nossa co-
munidade não falam inglês e
acabavam pegando as informa-
ções do Brasil. Queríamos ter a
certeza de que todos aqui rece-
biam todas as informações pas-
sadas nos EUA, que são diferen-
tes. Quando o governador dá al-
guma ordem executiva, por
exemplo, traduzimos e posta-
mos no Instagram”, afirma.
Renato mora em Newark há
três anos. Carpinteiro, ele co-
meçou a se sentir mal quando
suspeitou estar contaminado
pelo coronavírus e procurou o
pastor da igreja que frequenta
para pedir ajuda. “Eu não falo
bem o inglês e acho que nada
substitui Deus. Ninguém me-
lhor do que meu pastor para me
orientar”, disse. Foi o pastor
que colocou Renato em contato
com o grupo de Nicole, que cha-
mou uma ambulância para le-
vá-lo ao hospital.

Agora, ele espera a fatura do
atendimento. “Eu ainda nem
olhei a caixinha dos correios.
Acho que a conta já está lá. Médi-
co aqui é muito caro. É diferen-
te do Brasil. No Brasil, você fica
doente e o SUS te atende. Aqui,
se você for para um hospital, po-
de esperar que conta chega.”
Curado da covid-19, Renato
acha que pode voltar à oficina
de carpintaria nesta semana,
apesar de os governos de New
Jersey e Nova York não darem
sinais de que a quarentena aca-
be nos próximos dias. Há 25
dias sem trabalhar, ele diz que
está sobrevivendo graças a uma
reserva financeira, que está
prestes a acabar.
Hoje, Renato se apega ao fato
de o governo de New Jersey ter
incluído no pacote emergencial
uma lei que impede o despejo
de quem não paga aluguel.
“Aqui, a lei funciona”, diz o bra-
sileiro, que está há três anos nos
EUA.
A fragilidade dos imigrantes
ilegais diante do Estado, no en-
tanto, faz com que organiza-
ções de apoio temam que, na
prática, os que estão no país de
forma irregular sofram amea-
ças de despejo – mesmo ao arre-
pio da legislação. “Muitas ve-
zes, o locador usa do fato de o
imigrante não ter documento
para coagi-lo. Ele tem tanto me-
do de ser denunciado que não
se apoia na lei”, afirma Alejan-
dra Merklen, do grupo Mulhe-
res do Brasil NY. /B.B.

l Em risco

l Socorro

Tradutores salvam pacientes usando telefone e aplicativo


“Muitos estão fragilizados.
Vieram pelo México. Pai,
mãe, crianças. Já chegaram
com dívidas e no meio da
pandemia. Eles estão
passando necessidade”
Solange Paizante
COORDENADORA DA ASSOCIAÇÃO
MANTENA GLOBAL CARE, DE NEWARK

NICOLE SILVA

Grupo de apoio a


brasileiros traduz


procedimentos e até


chama ambulância para


quem não fala inglês


“As pessoas têm medo de ir
ao hospital, de ligar para o
médico sem falar inglês.
Estamos aqui para
ajudá-las”
Nicole Silva
VOLUNTÁRIA AMERICANA,
FILHA DE PORTUGUESES, QUE
AJUDA BRASILEIROS

Ajuda. Nicole Silva (à esq. de óculos): atendimento telefônico para acompanhar brasileiros

ALEXANDRE BENONY
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