O Estado de São Paulo (2020-04-13)

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O ESTADO DE S. PAULO SEGUNDA-FEIRA, 13 DE ABRIL DE 2020 Internacional A


Sem testes, estamos em voo cego


l]
FAREED
ZAKARIA

THE WASHINGTON POST

Fernanda Simas


Desde que o coronavírus foi
considerado uma pandemia,
autoridades de saúde expres-
sam preocupação com a Áfri-
ca. O número oficial de casos
confirmados ainda é baixo, 10
mil, mas o Comitê Internacio-
nal da Cruz Vermelha
(CICV) faz um alerta: é preci-
so agir contra o tempo para
evitar uma catástrofe.

Nos 54 países do continente
vive um sétimo da população
mundial – muitos em guerra e
pobreza extrema. “Temos de
agir agora, informar sobre a
doença, como preveni-la, prepa-
rar clínicas e hospitais para
atendimento rápido e garantir
que as pessoas tenham acesso
ao básico: água e sabão. Se agir-
mos rápido, conseguiremos evi-
tar o pior”, afirma Crystal
Wells, porta-voz do CICV no
leste da África.
Até agora, a África do Sul tem
o maior número de contamina-
dos no continente, com mais de
1,7 mil casos e 9 mortes. No
país, profissionais de saúde
usam trajes de proteção e más-
caras ao testar a população, que
está confinada até dia 16 sob or-
dem do governo. O presidente,
Cyril Ramaphosa, lançou uma


campanha que mobilizou 10
mil médicos, enfermeiras e vo-
luntários para impedir a disse-
minação da doença.
Mas a preocupação dos agen-
tes comunitários está em ou-
tros países, principalmente pe-
la precariedade dos sistemas de
saúde. Os hospitais sofrem
com falta de camas e respirado-
res, há poucos médicos e servi-
ços como água corrente são ra-
ros em muitos lugares. Segun-
do o CICV, a situação é ainda
mais grave porque não houve re-
dução da violência em países
em guerra, o que tende a sobre-
carregar os centros de saúde.
“O surto está pressionando
sistemas sofisticados de saúde
na Europa e Ásia, com equipes
médicas sobrecarregadas lutan-
do para tratar seus pacientes, e
instalações de terapia intensiva
lotadas nos países ricos. Imagi-
ne o que acontecerá com os sis-
temas de saúde na África quan-
do o vírus chegar”, disse Win-
nie Byanyima, diretora do Pro-
grama Conjunto da ONU sobre
Aids (Unaids).
Wells relata uma preocupa-
ção especial com alguns países,
como o Sudão do Sul, que sofre
com a guerra há muitos anos,
tem comunidades devastadas,
hospitais lotados de feridos por

bala. “As pessoas lá morrem de
outras doenças, como malária,
que tem tratamento, porque
não há acesso a um sistema de
saúde adequado”, afirma.
O fato de os conflitos conti-
nuarem exige que as organiza-
ções humanitárias continuem
atuando. “As pessoas conti-
nuam contando com nossos sis-
temas para sobreviver, como a
distribuição de comida. O que
estamos fazendo é colocar as
pessoas na fila em uma distân-
cia adequada, pedindo que la-

vem as mãos sempre”, explica.
Em Burkina Fasso, país mais
afetado do oeste da África, o nú-
mero de deslocados pelos con-
flitos internos é o ponto mais
alarmante porque, segundo o
CICV, dificulta táticas de detec-
ção da covid-19 e a manutenção
do distanciamento social.
“A Somália também tem in-
fraestrutura precária. Apenas
50% da população vive em re-
giões urbanas com acesso a sis-
temas de saúde adequados”, dis-
se Wells. Segundo a agência
France Press, na Somália há me-
nos de um médico para cada 10
mil habitantes e muitos já estão
contaminados com a covid-19.
“No norte do Mali, mais de
90% das instalações de saúde fo-
ram destruídas pela guerra e as
que sobraram estão lotadas por
feridos”, afirmou Wells. O go-
verno do país impôs um toque
de recolher para tentar evitar a

propagação da doença.
O vírus, segundo o CICV, po-
de não ser controlado caso afe-
te os países e comunidades
mais frágeis da África. “Nosso
maior medo é que se ele conti-
nuar a se espalhar e chegar em
áreas que são muito pobres ou
enfrentam crises em razão da
violência, o controle da doença
será quase impossível e os siste-
mas de saúde vão colapsar.”
A Cruz Vermelha lançou um
apelo, no mês passado, pedindo
800 milhões de francos suíços
(US$ 823 milhões) para ajudar
as comunidades mais vulnerá-
veis do mundo. A verba será des-
tinada também para fornecer
mais suprimentos a estabeleci-
mentos de saúde, expandir pro-
gramas de saneamento e pre-
venção da covid-19.
Os governos africanos estão
impondo restrições de circula-
ção, medidas de confinamento,

fechamento de fronteiras, mas
o CICV pede que seja garantido
o acesso a água e sabão e haja
muita divulgação sobre a doen-
ça e a pandemia. “Notícias fal-
sas podem levar à morte. Preci-
samos informar sobre o que é o
coronavírus, o que faz e como
pode ser combatido para que as
famílias saibam como agir se al-
guém ficar doente.”
O CICV considera essencial
que os sistemas de saúde sejam
melhorados porque em alguns
locais as medidas impostas sob
orientação da Organização
Mundial da Saúde (OMS), co-
mo o distanciamento entre as
pessoas, não poderão ser cum-
pridas. “Como manter a distân-
cia aconselhada quando se vive
em um campo de refugiados e se
dorme em uma tenda com mais
10 pessoas da família? Por isso,
precisamos garantir as ques-
tões básicas”, afirma Wells.

ROMA


O desenvolvimento de um no-
vo teste nacional para verificar
a presença de anticorpos con-
tra o coronavírus é o primeiro
passo na estratégia italiana para
entrar na chamada fase 2 da epi-
demia, aquela que deverá assis-
tir ao começo da retomada eco-
nômica. O teste permitiria aos
italianos lançar uma espécie de
“carteira de imunidade”. Essa é
uma das hipóteses discutidas
no Parlamento.


O uso maciço dos exames,
aliado a manutenção de másca-
ras e da distância social seriam
as bases da reabertura. “É ilusó-
rio pensar em um mundo sem
pessoas contaminadas dentro
de um mês. As linhas sanitária
serão decididas pelo comitê
científico, que deve se guiar pe-
lo caminho dos testes”, afir-
mou o ministro dos Negócios
Regionais, Francesco Boccia ao
jornal Il Sole 24 Ore.
Lucca Zaia, governador da re-
gião do Vêneto, vizinha à Lom-
bardia, afirmou que os testes de
anticorpos é a última barreira
para a retomada. “Pense nos tra-
balhadores que poderão ter a
certificação, porque imuniza-
dos poderão sair de casa tran-
quilos.”
Para pôr em prática o plano, a

Policlínica San Matteo, de Pa-
via, desenvolveu o primeiro exa-
me de sangue italiano para veri-
ficar a presença de anticorpos
da covid-19. A empresa DiaSo-
rin anunciou ainda que deve ser
a segunda a desenvolver o teste,
que deve custar ¤ 5. O resultado
sai em uma hora. Os laborató-
rios afirmam que podem proces-
sar 500 mil deles por dia.
O teste, segundo os pesquisa-
dores, serve para mostrar
quem, depois do contato com o
coronavírus, desenvolveu anti-
corpos, estando imunizado. Ele
seria uma espécie de “carteira
de imunidade”. Para o presiden-
te do Conselho Superior Sanitá-
rio da Itália, Franco Locatelli,
também entrevistado pelo Il So-
le 24 Ore , graças ao teste será
possível ter um retrato fiel da

epidemia. Esses dados serão
usados para estabelecer “a reto-
mada da atividade produtiva
em algumas áreas”.

A Itália conta com quase 150
mil casos de covid-19 e quase 20
mil mortos. Na quinta-feira, o
primeiro-ministro da Itália, Giu-

seppe Conte, anunciou que o
país permanecerá em quarente-
na até 3 de maio. Mas devem rea-
brir, no dia 14, livrarias, lojas rou-
pas para bebês, fábricas de com-
putadores e obras hidráulicas.
Os negócios reabertos terão
der ser limpos duas vezes por
dia, manter o ambiente arejado
e dispor de sistemas para desin-
fetar as mãos ao lado de tecla-
dos, telas e caixas. O uso de más-
cara será obrigatório em luga-
res fechados e se deve usar lu-
vas descartáveis para compra e
venda de alimentos. O horário
de funcionamento será amplia-
do e nos mercados, será permiti-
da a entrada por vez de um clien-
te para cada 40 m² da loja.
Em 3 de maio, a ideia é primei-
ro acabar com a quarentena das
fábricas. “Devemos prestar mui-
ta atenção na fase 2. Se errar-
mos, teremos de recomeçar do
zero”, disse o chanceler, Luigi
di Maio à RAI.

A


lgo importante vem aconte-
cendo à medida que a crise do
coronavírus avança: as esti-
mativas de sua letalidade conti-
nuam caindo. Em 31 de março, a Ca-
sa Branca calculou que, mesmo com
as políticas de distanciamento so-
cial, entre 100 mil e 240 mil america-
nos morreriam de covid-19. An-
thony Fauci, diretor do Instituto Na-
cional de Alergia e Doenças Infeccio-
sas, indicou recentemente que as es-
timativas em breve serão revisadas
para baixo.
O modelo da Universidade de
Washington – citado pela Casa Bran-
ca – previu, em 26 de março, que, par-

tindo do pressuposto de que o distan-
ciamento social permaneceria em vi-
gor até 1.º de junho, as mortes nos EUA
nos próximos quatro meses ficariam
em torno de 81 mil. Em 8 de abril, o
modelo já havia feito mais de cinco revi-
sões até chegar ao número atual:
60.415. É uma estimativa parecida com
a quantidade de pessoas que morreram
de gripe na temporada 2019-2020.
Por que isso está acontecendo? Os
desenvolvedores dos modelos estão fa-
zendo o melhor possível com os dados
que conseguem obter, muitos dos
quais vieram, inicialmente, da China e
da Itália. Um grupo de estudiosos da
Universidade de Stanford acredita que
a razão pela qual as estimativas de mor-
tes tiveram de ser revisadas para baixo
é simples: como não fizemos testes ge-
neralizados desde o início, não percebe-
mos quantos casos leves ou assinto-
máticos haveriam.

Isso significa que o denominador –
aqueles que foram infectados – é maior
do que as estimativas iniciais aponta-
vam e a taxa de mortalidade da covid-
19, menor. Se duas em cada 100 pessoas
com o vírus morrem, a taxa de mortali-
dade é de 2%; se duas em cada mil mor-
rem, é de 0,2%. Em março, a Organiza-

ção Mundial da Saúde (OMS) anun-
ciou que 3,4% das pessoas com o vírus
haviam morrido. Seria uma taxa de mor-
talidade assustadoramente alta.
Uma semana depois, Fauci sugeriu
que a verdadeira taxa era de 1%, o que
ainda seria 10 vezes maior que a da gri-
pe comum. Desde então, descobrimos

que muitas pessoas, talvez até a metade
delas, não apresentam sintomas. Al-
guns estudos constataram que 75-80%
das pessoas infectadas podem ser assin-
tomáticas. Isso significa que a maioria
dos infectados não chega a procurar
atendimento e não é contabilizado.
John Ioannidis, de Stanford, epide-
miologista especializado em análise de
dados, acredita que superestimamos a
fatalidade da covid-19. “Quando você
está fazendo um modelo que envolve
crescimento exponencial e comete um
erro mínimo nos números de base, aca-
ba com um número final que pode ser
10, 30 e até 50 vezes maior”, ele me dis-
se. E também observou que testamos
uma população inteira em apenas três
casos: o navio Diamond Princess, a cida-
de italiana de Vo’ Euganeo e o condado
de San Miguel, no Colorado.
Em todos esses lugares, o número de
pessoas que foram realmente infecta-
das (muitas das quais sem sintomas)
indica uma taxa de mortalidade seme-
lhante à da gripe sazonal. “Dados da Is-
lândia e da Dinamarca, que fizeram a

melhor amostragem aleatória, tam-
bém apontam na mesma direção”,
disse Ioannidis. “Se eu tivesse de fa-
zer uma estimativa com base nos li-
mitados dados de testes que temos,
diria que a covid-19 resultará em me-
nos de 40 mil mortes nos EUA.”
Fechamos a economia com base
em modelos, compreensivelmente
preocupados com os piores cená-
rios. Mas os modelos são tão bons
quanto os dados que os modelam. E
a reabertura dependerá de testes em
massa. A Coreia do Sul conseguiu
combater o vírus sem isolamento
exatamente porque fez os testes
com perfeição. Agora, a tarefa mais
urgente é implementar testes, jun-
tar os melhores dados do mundo e
estabelecer políticas com base nis-
so. Caso contrário, continuaremos
em voo cego em uma crise que pode
durar mais do que o necessário. /
TRADUÇÃO DE RENATO PRELORENTZOU

]
É COLUNISTA

PANDEMIA DO CORONAVÍRUS


l Rapidez

Guerras e outras epidemias podem piorar


situação de sistemas de saúde já fragilizados


Itália planeja lançamento de ‘carteira de imunidade’


JEROME DELAY/AP

África corre


contra o


tempo para


conter vírus


“Temos de agir agora,
informar sobre a doença.
Se agirmos rápido,
conseguiremos evitar o
pior”
Crystal Wells
PORTA-VOZ DA CRUZ VERMELHA

Controle. Policial controla distância entre pessoas em fila de supermercado em Johannesburgo, na África do Sul

FILIPPO ATTILI/EFE–10/4/

Tentativa. Conte, premiê italiano: em busca da retomada

Empresas desenvolvem


testes rápidos ao custo


de ¤ 5; ideia é tirar os


trabalhadores que já têm
anticorpos do isolamento


Agora, a tarefa mais urgente é
realizar testes, juntar os
melhores dados do mundo e
adotar políticas com base nisso

Artigo

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