REFLEXÕES SÔBRE A VAIDADE DOS HOMENS
admiramos um ar, ou espírito invisível, cuja fôrça se
emprega na ruína de muitas coisas sólidas; os
terremotos já reduziram em montes as planícies, e
fizeram planícies dos montes, como se o mundo não
tivera o seu assento firme; as águas entre si se quebram
e despedaçam, e quanto mais horríveis, e agitadas,
tanto mais nos mostram em líquido teatro mil vistosas
aparências; o fogo ainda quando parece raio nos
diverte, e ainda quando abrasa alumia; a formosura até
se sabe introduzir na fealdade, no horror, no espanto.
Vemos a perfeição dos objetos, mas ignoramos (97) a
qualidade dêles, por isso os amamos, porque o amor quase
sempre foge, assim que conhece a natureza do que ama. Os
antigos pintaram ao amor cego, talvez para mostrar, que o
amor para ser confiante, é preciso que seja incapaz de ver, e
que a falta de luz lhe sirva de prisão. Muitas coisas estimamos
sòmente porque as não conhecemos, e outras porque as não
conhecemos, as não estimamos; tanto é certo que não há nada
certo no mundo; nos mesmos princípios se fundam muitas
coisas contrárias, e opostas entre si.
A primeira coisa, que a natureza nos ensina, é (98)
amar; e assim o primeiro afeto, que sabemos, é aquele mesmo
por onde a nossa existência começa • a ter princípio.
Novos no mundo porém não no amor, êsse se manifesta em
nós logo no berço; ali