REFLEXÕES SÔBRE A VAIDADE DOS HOMENS 183
dos passos, das ações, do gesto, e revestindo os sem-
blantes de um aspecto alegre, ou triste, e de um ar de
soberania, de valor, e de justiça: vê as atrizes, que não
menos cuidadosas, ali mesmo se ajustam, e preparam; e
que algumas apesar do tempo, e a milagres do artifício,
cuidam que reparam em brevíssimos instantes, a ruína
que fizeram muitos anos, semelhantes às serpentes
quando se renovam, mas não tão felices; tôdas em um
espelho portátil estudam amor, desdém, severidade,
contentamentos, lágrimas; tudo aprendem no cristal,
mestre mudo, e fiel, e que mudamente ensina a
propriedade, o ar, a graça; mas que importa, o ar é vão,
a graça é enganosa, e a propriedade é falsa; o
representar é mentir; desde que a cena começa, até que
acaba, não se vê mais do que um fingimento de ações, e
de figuras; quem mais se distingue, é quem melhor
exprime o que não sente, e quem parece melhor o que
não é: a arte não está em imitar, mas em contrafazer : as
sombras substituem o lugar das coisas; e a relação da
história, fica sendo a história mesma: o mentir por
aquêle modo, é um meio fácil para imprimir fàcilmente
na memória os sucessos passados; é uma tradição, que
se comunica agradàvelmente, não só pelo que se ouve,
mas também pelo que se vê: alguma vez havia de ser
útil o engano; e com efeito daquela sorte vemos os
combates sem perigo; as virtudes vemos com gôsto; e
se vemos
ambém os vícios; é sem entrar nêles, para os abor-
recer, pela fealdade com que se mostram, e não para
os seguir. Em teatro maior, e em maior cena se passam,
e representam as vaidades do mundo, e entre elas a
vaidade das ciências; o homem não se entende a si, e
cuida que entende a fábrica dos céus; ignora a ordem da
sua própria composição, e crê que não ignora o de que
se compõe a terra;