Introdução à História da Filosofia 2 Marilena Chauí

(Zelinux#) #1
praticar violência a outrem. [ ... ] Os que pretendem que se deva prestar auxilio aos
concidadãos, mas negá-lo aos estrangeiros, destroem a sociedade comum do gênero
humano, sem a qual são suprimidas radicalmente a beneficência, a liberalidade, a
generosidade, a justiça. São ímpios os que assim pensam, pois os deuses imortais
instituíram entre os homens a sociedade que eles destroem. [ ... ] Não estão isentos de
crimes contra a justiça, pois esta é, por si mesma, a rainha de todas as virtudes (Sobre
os deveres, I1I, 26-8).

Definidos o honesto e o útil com suas respectivas obrigações (ou deveres),
Cícero pode definir a virtude:

A virtude consiste principalmente em três coisas: a primeira, em conhecer a nature­
za das coisas, suas relações e propriedades, suas causas e seus efeitos; a segunda, em
refrear os movimentos desordenados do ânimo, que os gregos chamam páthe, sub­
metendo à razão as paixões, que eles chamam de hormas; a terceira, o uso moderado
e sábio daqueles com quem estamos associados, de maneira que por sua indústria
tenhamos cumprido e preenchido tudo quanto necessita nossa natureza, rechaçan­
do por meio deles qualquer dano que nos traga e também tomando satisfação e
castigando a quem o intente, mas com a pena que permitem as leis da justiça e da
humanitas (Sobre os deveres, 11, 5).

A virtude é, assim, conhecer a natureza das coisas e a urdidura causal da na­
tureza, dominar as paixões e instituir a convivência com os outros segundo a jus­
tiça e a humanitas. As duas primeiras componentes da virtude são estoicas, mas a
terceira inclui a política, tal como Cícero a concebe e fo rmula no Sobre a república
e no Sobre as leis. Ora, vimos que as definições do honesto e do útil deságuam na
ideia de humanitas, cujo pressuposto é a presença em todos os homens das semen­
tes inatas de virtude. Dessa maneira, podemos perceber por que, além da moral
perfeita do sábio, que preenche plenamente os três constituintes da virtude, é
possível a moral média do homem de bem ou do homem bom, que depende de
apenas dois constituintes: o domínio racional sobre as paixões e a prática da justi­
ça e da humanitas. Isso explica o lugar privilegiado ocupado pela amizade na moral
ciceroniana. De fa to, a tradição estoica, que enfatizara a autarquia e impassibilida­
de do sábio perfeito, colocara a amizade apenas entre as coisas úteis preferíveis,
mas Cícero a eleva à condição de virtude.


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