Introdução à História da Filosofia 2 Marilena Chauí

(Zelinux#) #1
Por que a alma adoece? Se a natureza nos gerasse de tal modo que pudésse­
mos intuí-Ia e percebê-la diretamente e ser por ela guiados, não ficaríamos doentes
nem precisaríamos de medicina. Entretanto, ela nos deu apenas sementes de vir­
tude, frágeis centelhas que os maus costumes e as opiniões logo apagam, impe­
dindo que brilhe a luz natural (naturae lumen): das amas de leite aos pais e irmãos,
destes aos preceptores e aos poetas, nossa alma vai sendo marcada por opiniões
pervertidas, até que o populacho nos fa ça confundir a glória com a vanglória, a
fa ma com a popularidade, a simulação da honestidade com a virtude. Numa pala­
vra, a luz natural é ofuscada pela paixão. Eis o portal dos vícios pelos quais a alma
é perturbada e que levam não poucos à loucura.
Os gregos denominam pathe todos os movimentos desordenados da alma,
isto é, não submetidos à razão, e os chamam de doença. Corretamente, diz Cíce­
ro, nós os chamaremos de perturbationes, agitação violenta, turbatio, e, como
doenças da alma, nós as chamaremos de insania, ausência de sanitas, saúde. Aque­
le que não é perturbado por nenhum movimento desordenado ou doentio é sá­
bio; ao contrário, chamaremos insanos os que são arrastados pelo movimento
desenfreado das perturbações. A essa definição médica da doença da alma Cícero
acrescenta outra, jurídica, fundada na definição romana do sujeito de direitos ou
daquele que é senhor de seu próprio direito -sui juris. Com agudeza, prossegue
ele, nossos antepassados consideraram enferma a alma carente da luz natural que
chamamos de mens, a mente, julgaram a insania perda do poder sobre si mesmo e
a ela deram os nomes de dementia -perda momentânea da razão - e amentia


  • perda total da razão. Por isso, distinguiram entre a stultitia e o furor: a primeira
    é a inconstância mental; o segundo, a desintegração da fa culdade racional. Juridi­
    camente, a estultice é uma incapacidade parcial para alguns direitos e deveres; o
    fu ror, a completa incapacidade. Psicologicamente, estulto é o que sofre um dese­
    quilíbrio em suas fa culdades mentais, é o tolo; fu rioso, o mentalmente cego, o
    louco propriamente dito.
    Duas são as mais graves doenças da alma porque causam dementia e stulti­
    tia, amentia e furor: a aegritudo, a aflição ou angústia crônica, e a cupiditas, o
    desejo. A primeira é a dor ou o sofrimento que devora e dilacera a alma; a se­
    gunda, o apetite imoderado, a tendência natural à auto conservação que perdeu
    a medida. O que as causa? A perturbação da alma é ou um movimento estra­
    nho à razão, ou afastado da razão ou insubmisso à razão. Por isso sua causa é a
    opinião equivocada sobre o bom e o mau. Dessa maneira, estão indicados o

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