Introdução à História da Filosofia 2 Marilena Chauí

(Zelinux#) #1

so, coloca na boca de Péricles quando este profere um discurso para engrandecer
a memória dos primeiros mortos atenienses.
Com Nicole Loraux fazemos algumas descobertas espantosas: descobrimos
que a "Oração fúnebre" de Péricles, esse monumento da democracia ateniense,
tido como discurso fundador para a democracia ocidental moderna, é um dis­
curso militar, patriótico e aristocrático; que o elogio da democracia que nela se
realiza é feito a partir dos valores da aristocracia e não dos critérios, práticas e
valores democráticos; que nela há uma distância insuperável entre o que é dito e
a democracia efetivamente praticada em Atenas porque desta última não possuí­
mos escritos; e, portanto, que a "Oração fúnebre" é parte da construção de um
imaginário político e que seu campo é a ideologia. 1
Fomos habituados a considerar certos discursos como expressão clara e
distinta para a compreensão da democracia ateniense, e mesmo a tomá-los como
discursos fundadores para a democracia ocidental. Dentre eles, a oração fúnebre
ateniense -epitáphios lógos -tem sido a preferencial "via transparente de aces­
so a um modelo transparente da pólis", escreve Nicole Loraux. Ora, o epitáphios
lógos é mesmo "uma invenção bem ateniense, mas de qual Atenas e invenção do
quê?", indaga a helenista.
A oração fúnebre é a "intersecção do militar com o político" interagindo no
espaço e no tempo cívicos: o epitáphios lógos fala da guerra. É uma instituição
social ateniense em que, ao honrar seus guerreiros mortos em combate, Atenas
é posta como origem da lei (o nómos) e como causa final da morte dos atenien­
ses (que desejam morrer por ela). Trata-se de um tipo de discurso que não se
deixa apanhar pela divisão aristotélica dos três gêneros retóricos, não sendo dis­
curso epidítico, judiciário nem deliberativo.2 Modelo de discurso ligado à tradi­
ção da paideia
cívica e a um modo de pensar a história, é um gênero político que
procura vencer a tensão entre lógos e erga, a palavra e os feitos, um discurso oficial
sobre a pólis, portanto, com intenção normativa e, desta maneira, um lógos que
se apresenta como um ergón, isto é, como um fazer e como um feito.
Homilia educativa que ergue uma palavra de honra e glória aos mortos e
aos vivos, a oração fúnebre é a fala agonística e aristocrática de uma pólis impe­
rialista que silencia suas lutas internas para oferecer-se una e indivisa perante
aqueles que devem aceitar sua hegemonia, isto é, como indica esta palavra, a
superioridade de um igual sobre seus iguais. O epitáphios é uma "palavra sem
contrapartida" ou discurso da hegemonia no qual os outros surgem como alia-


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