Introdução à História da Filosofia 2 Marilena Chauí

(Zelinux#) #1
A divinização de Epicuro, o primeiro que ousou colocar-se contra a religião
e abrir as portas da natureza, tem como efeito três desdivinizações: a dos corpos
celestes como divindades e por isso eternos, a da Te rra como morada dos deuses
e por isso indestrutível, e a do mundo como obra da divindade e por isso subsis­
tente por toda eternidade. Epicuro é divino porque nos ensinou que o mundo não
o é, e não fo i fe ito pelos deuses para o bem do homem.

Mesmo que ignorasse quais são os elementos das coisas, ousaria, no entanto, só pelo
estudo das leis do céu, afirmar e mostrar, até por outras razões ainda, que de ne­
nhum modo a natureza fo i preparada para nós por vontade dos deuses, tão grandes
são seus defeitos (Da natureza, v, 193).

Sabemos, pelos cantos I e lI, que o mundo teve um começo: a livre declina­
ção dos átomos, que, depois de muitos encontros frustrados e efêmeros, conse­
guiram uma ordem e disposição consistentes e duradouras. Sabemos também
que, sendo um composto, o mundo perecerá, como sem cessar perecem todos
os corpos que o habitam. Os cantos v e VI constituem não apenas uma cosmolo­
gia -fisica, astronomia, geografia, biologia, metereologia, geologia -que,
por meio da explicação atomística, expõe a gênese, disposição, ordem, função e
relação de todos os corpos do universo, mas também uma história. Lucrécio
narra como se fo rmaram as primeiras comunidades humanas, nascidas da ami­
zade ou da decisão dos humanos de não prejudicarem uns aos outros, assegu­
rando a conservação de suas progenituras. Mas a amizade se tornou inimizade
porque a vida em comum despertou terríveis paixões -inveja, ambição, sober­
ba, cólera, desejo de poder e riqueza -, devastando a terra com guerras sangui­
nolentas. Exangue e quase desfalecido, o gênero humano descobriu, então, as
leis e o direito, passando à vida política e aos tratados de paz. Porém, ao se tor­
narem capazes de distinguir entre a justiça e a injustiça e de confiar nas leis para
a punição dos crimes, os homens se deram conta de crimes que permanecem
ocultos e sem punição e se puseram a ouvir aqueles que, falando durante o
sono, os denunciavam. A invisibilidade dos crimes e sua visibilidade pela voz do
sonhador os levaram a acreditar que poderes invisíveis e sobrenaturais fa lavam
pela boca do sonhador; passaram a temê-los e a tentar aplacá-los com homena­
gens, preces e sacrificios. Nascia a religião. Depois, vendo a regularidade dos
movimentos do céu e a das estações do ano na terra, acreditaram que também


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