Introdução à História da Filosofia 2 Marilena Chauí

(Zelinux#) #1

sempre a mesma areté: os feitos gloriosos da guerra e as "derrotas vitoriosas" de
Atenas intemporal. Partindo do mito da autoctonia (os atenienses são originá­
rios do solo de Atenas e não das migrações e invasões realmente acontecidas,
mas silenciadas), que afirma, portanto, a pureza de nascimento e sangue dos
atenienses bem como sua coragem inata e sua excelência, essa história ideológi­
ca constrói a essência ateniense como modelo e humanidade e divide o mundo em
dois campos: a díke ateniense, justiça e medida, e a hybris, injustiça e desmedida,
dos "outros". Essa divisão entre um "nós, atenienses" e um "eles, os outros"
permite figurar a guerra ofensiva como liberação dos oprimidos e a guerra de­
fensiva como castigo aos invasores ímpios. É essa construção militar de Atenas
como idealidade intemporal que torna a oração fúnebre uma palavra eficaz,
mesmo e sobretudo quando a realidade contradiz o discurso, exercendo sobre
seus ouvintes fascínio e êxtase porque lhes dá o sentimento da imortalidade, da
nobreza e da glória, pois sabem que Atenas excede os vivos e os mortos.
Nicole Loraux dedica minuciosa análise a um trecho da "Oração fúnebre"
de Péricles, exatamente aquele no qual o orador, segundo Tucídides, afirma: "a
isto [aos costumes e práticas atenienses] dão o nome de democracia". Esta decla­
ração indica, como nos mostra a helenista, que a oração fúnebre é um enigma e
propõe um problema.
De fato, a "Oração" de Péricles sempre foi lida como um discurso que teria
em seu centro o elogio da democracia, porém nela reina o silêncio sobre o krátos
do demos ( o poder popular). Quando Péricles diz "a isto dão o nome de democra­
cia", não se refere ao poder popular e às práticas democráticas, mas, espantosa­
mente, aos valores da areté aristocrática, isto é, aos costumes militares, ao come­
dimento na manifestação das riquezas, ao fato de todos os valorosos (sejam
pobres ou ricos) sentirem-se concernidos pelo destino da pátria. Não só. Nessa
"Oração", pesa completo silêncio sobre a existência dos escravos e a divisão so­
cial entre ricos e pobres; nela não são mencionados os excluídos da cidade -
mulheres, estrangeiros e velhos; nela, a figura de Atenas é mais importante do
que a da democracia, tanto assim que não é mencionada, senão de maneira vaga
e esporádica, a ekklésia, a assembleia popular na qual as decisões sobre a cidade
são tomadas pelo voto dos cidadãos, não são mencionados os critérios mais im­
portantes da democracia (boulê, isonomía, isegoría, mistophoría, sorteios etc. - ver
volume I) e, em contrapartida, a areté, isto é, a ideia aristocrática do valor, da ex­
celência ou da virtude enquanto dons militares, detém o lugar mais importante,


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