Introdução à História da Filosofia 2 Marilena Chauí

(Zelinux#) #1

a democracia aparecendo em alguns dos epitaphói aureolada de uma origem
quase mítica e intemporal.
Mais do que isso. Quando emprega o vocabulário democrático (povo, lei,
igualdade, liberdade), a "Oração fúnebre" de Péricles o deforma, dando-lhe um
sentido aristocrático e oligárquico. É assim que o próprio termo democracia é
empregado com o sentido de governo para o povo e não do povo. É assim tam­
bém que, embora afirme que todos possuem competência igual para tratar dos
assuntos privados e públicos, Péricles o faz de tal maneira que uma diferença,
sutil e quase imperceptível, é estabelecida entre os "mais competentes" e "os
trabalhadores" ou os "semi-instruídos", os primeiros sendo portadores da verda­
deira competência política. Da mesma maneira, falando das leis, a "Oração fúne­
bre" as remete exclusivamente à esfera das relações privadas, tornando irreco­
nhecível e inexistente a ideia mesma de isonomia, isto é, não só a igualdade
perante as leis, mas sobretudo o direito igual de todos os cidadãos de fazer as leis
em público. Donde, como consequência, a valorização, no plano público, da lei
aristocrática, isto é, a lei oral- a tradição dos ancestrais -e a desvalorização da
lei democrática, isto é, a lei escrita, garantia de direitos conquistados pelas lutas
na assembleia e coração da democracia ateniense.
Como um discurso no qual sempre se acreditou reconhecer a prática demo­
crática pode ter sido tecido com a linguagem e as representações aristocráticas?,
indaga Nicole Loraux. E responde mostrando que os democratas atenienses, di­
versamente dos oligarcas de Atenas, eram os "homens semi-instruídos" que
confiavam na prática democrática, na participação na assembleia e em suas deci­
sões, não tendo por isso escrito uma teoria da democracia. Como consequência,
historiadores e filósofos buscaram em escritos essa teoria e julgaram encontrá-la
na "Oração fúnebre" de Péricles, que não é uma teoria democrática sobre a de­
mocracia ateniense, mas uma ideologia aristocrática que elogia a democracia.
Por que ideologia? Porque, como é próprio de toda ideologia, a "Oração" é
tecida com silêncios e lacunas, omitindo os critérios democráticos que regem a
democracia, e porque, como em toda ideologia, faz da stásis, isto é, das tensões e
divisões que caracterizam a vida da pólis e suas práticas, não o coração da vida
democrática, mas algo pejorativo e perigoso, substituindo-as pela ideia da bela
totalidade, da pólis "sem tensão e sem facção", una, indivisa, harmoniosa e sem­
pre concorde consigo mesma, na qual cada um se reconhece por inteiro e sem
falhas, "atribuindo ao Estado funções universais e intemporais". Numa palavra,


30
Free download pdf