Introdução à História da Filosofia 2 Marilena Chauí

(Zelinux#) #1

As orações fúnebres revelam o particularismo e o etnocentrismo que mar­
cam a visão grega de si e dos outros. O período helenístico, porém, descobre a
fragilidade dessa visão. Os imperialismos alexandrino e romano criam, no dizer
de um autor, "um novo espaço mental, cultural e geográfico" no qual bem e mal,
verdadeiro e falso, justo e injusto, possível e impossível, natural e convencional
perdem a clareza que lhes dera o pensamento clássico, particularista e etnocên­
trico. Os valores se deslocam, se descentram, parecem desprovidos de funda­
mento, pois o novo cosmopolitismo torna impossível colocar os não gregos fora
da humanidade e no exterior da cultura, despertando o pensamento para uma
universalidade antes insuspeitada e impossível. Ao mesmo tempo, a mudança na
política, seja com a orientalização extrema de Alexandre, proclamando-se deus
vivo, seja com a sacralização não menos vigorosa dos césares, a partir de Augus­
to, permitia aos novos filósofos perceber não só a distância intransponível entre
a forma presente do poder e a humanização e laicização do poder que caracteri­
zaram a antiga pólis, como também os riscos de um desejo de potência ilimitada
que não se dirigia ao domínio de sua própria vontade, mas à dominação de todas
as outras vontades. Para eles, o vínculo entre poder e tirania tornara-se evidente
e a questão posta, agora, era, por um lado, como não sucumbir ao delírio de po­
tência e, por outro, como não ser interiormente subjugado por essa potência
desmedida dos governantes.
Todavia, essa consciência não foi despertada apenas pela ascensão de Ale­
xandre e seu entusiasmo pelo despotismo persa, nem apenas pela divinização
dos imperadores romanos. Basta ler as tragédias de Eurípedes para perceber que
a imagem da bela totalidade cívica não correspondia à realidade e que os indiví­
duos se erguiam contra as leis, numa rachadura perene entre o público e o priva­
do. Também bastaria, para pôr em dúvida as palavras de Zeller, que citamos
acima, falando em "vigorosa atividade política dirigida a fins altos e liberais", ler
uma das passagens mais terríveis da Guerra do Peloponeso, no quinto livro, quando
Tucídides narra o diálogo entre os magistrados da ilha de Melos e os embaixado­
res atenienses que vieram propor aos melianos uma aliança que os faria, de colo­
nos neutros, inimigos de Esparta.
Diante da proposta ateniense, os melianos argumentam contra um acordo
que os converteria em servos de Atenas, pois a desigualdade de forças, visível, e
a intenção de dominação, tácita, impossibilitam qualquer amizade política, uma
vez que esta só é possível entre os iguais. Se fizermos aliança convosco, dizem os


33
Free download pdf