talização das sensações em opiniões, inclinações e agitações porque reconduz os
dados (pragmata) à sua indeterminação e indiferença.
Esse exercício tem ainda outro papel filosófico preciso: impedir a queda do
cético no dogmatismo. De fato, uma vez que não podemos ter certeza alguma, nem
mesmo da indiferença, instabilidade e indeterminação das coisas, poderíamos ceder
à sedução das crenças, à sua fo rça persuasiva sobre nosso desejo de crer. Diríamos,
então, que não sendo possível o conhecimento verdadeiro, todas as crenças se equi
valem e podemos escolher as que desejarmos. Para impedir essa fascinação dogmá
tica, o ceticismo cria um instrumento que nos faça permanecer na dúvida e na abs
tenção de opinião. Trata-se da regra principal ou do 'justo cânone" (orthon kanona),
que aparece no final da segunda etapa: "dizendo de cada coisa que ela é não mais do
que não é, ou que é e que não é, ou ainda que nem é nem não é".
Esse cânone enuncia a disposição cética perante as coisas como exercício da
dúvida de modo que a indiferença delas e de nossas sensações conduza à ap hasía.
De fato, o cânone nos coloca na presençade uma fó rmula no sentido técnico, que recapitula ou concentra o que poderíamos
chamar de lógica cética, ou, para respeitar o contexto helenístico, uma canônica,2
isto é, uma teoria dos critérios de validação dos enunciados, permitindo estatuir si
multaneamente no domínio do conhecimento, da ontologia e da ética. Esse instru
mento permite à razão exercer metodicamente a dúvida em toda circunstância, so
bretudo nos casos em que não percebemos, à primeira vista, nenhuma razão para
suspeitarmos (Cossutta, 1994, p. 44).Esse instrumento lógico e metódico de dúvida consiste em, quando estiver
mos na presença de algum dado (pragma) -que pode ser sensorial, um objeto
percebido ou sentido, uma opinião estabelecida, um raciocínio apodítico, enfim,
algo que se apresente com fo rte intensidade para ser tomado como verdadeiro-,
retirar imediatamente a sua pretensão de fixar-se, fazendo aparecer o seu contrá
rio. Mas não apenas isso. O cético deve afirmar simultaneamente os contrários
como sendo e não sendo, recusando o princípio de contradição e o de terceiro
excluído porque já recusou o de identidade.
Assim, enquanto as outras escolas filosóficas (anteriores a Pirro e contempo
râneas ao ceticismo) buscavam mostrar que o homem dispõe de um cânone ou
critério da verdade, isto é, meios para adquirir conhecimento e validar sua verda-
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