de, Pirro propõe um critério ou cânone para assegurar que isso não é possível e
para invalidar toda pretensão à verdade. Isso não faz do ceticismo um irracionalis
mo porque é a razão que, investigando, duvidando, suspendendo o juízo, afirma
seus próprios limites, afirmando, como escreve Diógenes de Laércio, que " a todo
raciocínio pode-se opor um raciocínio".c) Terceira etapa: aphasía, apatheia e ataraxía*
Qual o efeito dessa disposição perante as coisas? A fó rmula ou canônica céti
ca não se refere apenas à ontologia e ao conhecimento, mas também à ética. Nos
dois primeiros casos, ela conduz ao silêncio -aphasía; no terceiro, à impassibili
dade ou ausência de paixão -apatheia -e à quietude ou serenidade ou tranqui
lidade de alma -ataraxía. Em outras palavras, a canônica não se refere apenas ao
ser e não ser e ao verdadeiro e ao falso, mas também ao bom e ao mau.
A ap hasía não é o silêncio absoluto, a mudez, e sim a suspensão do juízo
afirmativo e negativo sobre o que quer que seja. É a recusa de um tipo determina
do de palavra ou de linguagem, aquela que pretende dizer o que algo é ou não é.
Ou, como explica Diógenes de Laércio, citando uma obra de Tímon: "não se deve
definir coisa alguma e deve-se duvidar sempre". O pirrônico é afásico não porque
prefere uma asserção em vez de outra, mas por conjugar uma asserção com sua
oposta -pois "a todo raciocínio pode-se opor um raciocínio" - e não dá assen
timento a nenhuma delas. Assim, por exemplo, quando perguntaram a Pirro
porque não mataria outro homem, já que vida e morte são indiferentes, ele res
pondeu: por isso mesmo, exatamente porque são indiferentes.
Poder-se-ia supor que a neutralização da ontologia e do conhecimento teria
como consequência a confiança na interioridade de cada um. Mas não é o caso.
Na medida em que a canônica assegura a dúvida e a afasia, também assegura que
a indiferença, a instabilidade e a indeterminação das coisas não sejam substituídas
pela adesão aos impulsos e motivos interiores, isto é, às paixões, que nos arrastam
em sentidos contrários, numa perturbação interminável. Não ser impulsionado,
movido e agitado pelas coisas nem pelos sentimentos ou paixões (páthos) que elas
provocam em nós é não ser passivo, não se submeter ao páthos e alcançar a apa
theia ou a impassibilidade. Como é isso possível? Pelo modo de relacionar-se com
as sensações e impressões: em vez de tomá-las como boas ou más ou referidas a
coisas boas ou más, deixá-las acontecer na indiferença, sem emitir juízo.
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