Introdução à História da Filosofia 2 Marilena Chauí

(Zelinux#) #1
Como pode o homem ser im-passível (apathés), insensível? Essa palavra não diz so­
mente que ele não se perturba, mas que não sente. E porque não? Não é evidente que
o homem deve chegar a reformar sua sensibilidade total? [ ... ] A insensibilidade pirro­
niana é, sem dúvida, obtida mediante um retorno à sensação pura. É uma insensibi­
lidade ao mundo dos objetos, às causas, aos entes e aos seus efeitos sobre nós, em
torno de nós, porque o universo dos entes e do ser, construído por nós e erigido
diante de nós por nosso juízo, encontra-se agora desmembrado e desfeito. A sensibi­
lidade a todas as coisas, conflitos e agitações do mundo cede lugar a uma sensibilida­
de às impressões puras, mudas, e tanto quanto possível, sem expectativa e sem me­
mória (Conche, 1973, p. 63).

Essa reforma total da sensibilidade é urna terapêutica que cura o homem da
agitação e perturbação passional. O sábio não é atormentado pelo verdadeiro e
pelo falso, no conhecimento, nem pelo bom e pelo mau, na ação. Torna-se sereno.
A indiferença - "dá tudo no mesmo" - e a insensibilidade - "as impressões
puras e mudas" - produzem um estado mental isento de representações intelec­
tuais e afeti vas: a ataraxía. Serenidade daquele que, no conhecimento, pergunta e
aceita a ausência de resposta e, na ética, aceita o curso espontâneo das impressões,
sem conteúdos representativos, "sem expectativa e sem memória", experimen­
tando apenas o presente, sem atormentar-se com o porvir nem aprisionar-se em
lembranças. A afasia, agora corno silêncio interior, traz urna alegria sem perturba­
ção que constitui a fe licidade do sábio.


O conflito das interpretações


a) Primado da prática
Vimos até aqui urna interpretação do texto de Aristóc1es na qual a ênfase
recai sobre os aspectos teóricos da atitude pirrônica dos quais resultam efeitos
práticos. Alguns comentadores, entretanto, propõem outra interpretação, que
enfatiza os aspectos práticos e dá aos teóricos urna tonalidade aporética. É o caso,
por exemplo, de Jacques Brunschwig, que sublinha algumas dificuldades que pa­
recem não poder ser sanadas pelo próprio texto.
No que se refere à primeira etapa, o intérprete indaga: 1) qual o sentido exato
dos três adjetivos que descrevem as coisas (indiferentes, instáveis, indecisas)?; 2) se


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