Introdução à História da Filosofia 2 Marilena Chauí

(Zelinux#) #1

doutrina como porque até mesmo os que afirmam, de acordo com Epicuro, o
caráter reflexivo e espiritual do prazer não hesitam em definir o epicurista como
voluptuoso e intemperante. Como explicar essa contradição entre uma doutrina
do prazer intelectual como virtude e um modo de vida sensual ou vicioso dos se­
guidores dessa doutrina?
Na verdade, a identificação do epicurismo com a imagem de uma ética do
prazer sensual foi elaborada pelos críticos helenísticos de Epicuro, particularmen­
te pelos filósofos estoicos, cuja ética pretendia libertar os seres humanos de todo
desejo e de todo prazer, graças ao controle absoluto da razão sobre a vontade e os
apetites. Na perspectiva estoica, Epicuro teria sido "mestre do deboche", e os
epicuristas, "gente dos prazeres do ventre", dissipadores que passam a vida em
banquetes suntuosos, bebedeiras e fruição sexual de rapazes e raparigas.
Diógenes de Laércio oferece um quadro impressionante da construção es­
toica dessa imagem de Epicuro:


o estoico Diotimo, que o odiava, o caluniou produzindo como sendo de Epicuro
cinquenta cartas escandalosas. Um outro autor fe z o mesmo [ ... ]. O estoico Posidô­
nio, Nicolaos, Socião (Vinte e quatro provas a Diócles, em doze livros) e Dionísio de Ha­
licarnasso fizeram o mesmo. Acrescentam os seguintes detalhes: Epicuro acompa­
nhava sua mãe nas casas em que ela lia purificações e, como seu pai, recebia dinheiro
para ensinar o alfabeto. Seu irmão era debochado e ele próprio vivia com uma pros­
tituta chamada Leôncia. Atribuiu a si mesmo a obra de Demócrito sobre os átomos
e a de Aristipo sobre o prazer. [ ... ] Escreveu também para outras prostitutas [ ... ]. Em
seu livro sobre o bem supremo escreveu: "Quanto a mim, não sei o que poderia
chamar de bem, se tiro os prazeres da mesa, do amor, da conversação e das coisas
belas" [ ... ]. Epicteto o chama de imoral e o persegue com injúrias. E Timócrato, ir­
mão de Metródoro (As alegrias), que abandonou sua escola depois de haver sido por
um momento seu discípulo, diz que Epicuro vomitava duas vezes por dia, tanto ele
comia [ ... ]. Diz ainda que Epicuro, que raciocinava mal, cometia muito mais faltas
em sua vida; que era um fraco de corpo, a ponto de, durante anos, não poder levan­
tar-se sozinho de uma cadeira, mas todo dia dispensava uma fortuna com a mesa.
[ ... ] e numa passagem escreveu exatamente o seguinte: "Mais do que outros, Epicuro
lança pela boca jactância sofistica, como fa zem muitos ex-escravos" (Diógenes de
Laércio, x, t. 11, 199-201).

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