imortais e nossa vida se escoasse numa volúpia perpétua dos sentidos, sem nenhum
temor de perdê-la, por que não seríamos fe lizes? Ainda ignorava que tal pergunta era
fruto de minha grande miséria. Imerso no vício e cego, não podia pensar na luz da
virtude e da beleza, que os olhos da carne não veem, e só o íntimo da alma distingue(Agostinho, Confissões, VI, § 16).
Tendo como finalidade principal condenar o "ateísmo" de Epicuro, a tática
dos primeiros pensadores cristãos consistiu em retomar os procedimentos dos
helenísticos, isto é, em desqualificar sua moral, apresentando-a como elogio do
vício e da volúpia carnal. Em outras palavras, para condenar as ideias de Epicuro
sobre a natureza e os deuses, pois contradiziam os princípios da nova religião, os
primeiros pensadores cristãos desqualificaram moralmente a pessoa de Epicuro,
afirmando que, por ser ateu, só poderia viver no vício, na intemperança e sensua
lidade da carne. Com isso, cristalizaram a imagem do "epicurista" , que seria man
tida nos séculos por vir.
No entanto, quem lê as obras de Epicuro não encontra essa imagem que es
toicos e cristãos popularizaram e que foi conservada no correr do tempo, a ponto
de muita gente empregar pejorativamente o termo" epicurista" sem nem mesmo
saber da existência da filosofia de Epicuro. É, portanto, a distância entre o epicuris
mo, ou o pensamento filosófico de Epicuro, e a figura devassa e imoral do epicureu
que explica a discrepância que aparece nos dicionários quando definem o primei
ro (fisica atomista e ética do prazer intelectual) e o segundo (dedicar-se aos praze
res sensuais da mesa e do sexo).
Vemos, assim, que essa discrepância (podemos falar em contradição) aparece
nos dicionários porque ela já se encontra na história da filosofia, à medida que
esta sugere a existência de dois Epicuros: um deles, homem debochado e de fraco
raciocínio, objeto de vitupério; o outro, objeto de louvor, homem de costumes
sóbrios e exigentes, pensador que concebeu a natureza de maneira a liberar os
homens do medo.
De fato, filósofos e historiadores da filosofia, desde o período helenístico até
nossos dias, oferecem interpretações opostas de Epicuro e de sua doutrina. Se es
toicos e cristãos promoveram a difamação do filósofo, em contrapartida, o filóso
fo latino Lucrécio se refere a Epicuro como mestre, glória do povo grego, pai da
verdade, e não hesita em divinizá-lo. Na abertura do Livro III de seu poema, Da
natureza das coisas (De rerum natura), Lucrécio escreve: