Aero Magazine - Edição 311 (2020-04)

(Antfer) #1

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Antes de decidir retornar
ao Brasil, fui um dos
últimos comandantes es-
trangeiros a voar por uma empresa
chinesa. Passei por momentos difí-
ceis até ter de permanecer em casa
em isolamento. As apresentações
na empresa já dispensavam tanto o
uso do bafômetro como, também, o
da máquina de aferição da pressão
arterial. Os médicos da empresa
aferiam apenas a temperatura.
Na China, em particular, é
rotina obrigatória a checagem de
teor alcoólico e a aferição da pres-
são arterial antes de qualquer voo,
inclusive fora da base. As máscaras
passaram a ser de uso contínuo
pelas tripulações e, durante os
voos, os passageiros tinham a
temperatura medida pelo menos
duas vezes, além da checagem ao
ingressarem na aeronave.
Passamos a ter um número
bastante reduzido de passagei-
ros. Ao longo da última semana
durante a qual voei, a situação
começou a se tornar preocupante.

CHINA


“Tivemos


problemas


com peso


mínimo de


decolagem”


Passamos a ter problemas relativos
a peso e balanceamento e a fatores
como peso mínimo de decolagem.
Em uma ocasião, tive de repor-
tar ao centro de controle a pre-
sença de passageiro com sintomas
indicativos do novo vírus. Diante
do alerta, recebemos instruções de
prosseguir para uma área pré-deter-
minada após o pouso. Lá, tivemos
o desembarque retido até a chegada
da equipe de médicos, para averi-
guação do passageiro em questão.
No fim, obtivemos a liberação após
todos os trâmites previstos.

DESPREPARO E
DESCONFORTO
Fui testemunha do desespero
dos copilotos chineses, que já
temiam o pior. Eles anteviam os
prejuízos financeiros que teriam
de suportar. Além disso, os hotéis
onde ficávamos se tornaram locais
inseguros, sem proteção. Com o
fechamento das cidades, as opções
de alimentação ficaram restritas,
tudo ficou bem desconfortável.
No último dia em que voei, tive a
última etapa cancelada e retornei à
base na modalidade de tripulante
extra remunerado, como passa-
geiro. Ali observei a agonia dos
chineses. Havia grande desinfor-
mação e despreparo em lidar com
a nova situação.

A cidade de alguns milhões de
habitantes onde eu morava ficou
totalmente parada, virou uma
cidade fantasma, todos em casa
e cumprindo as determinações
impostas pelo governo. Sem voos,
fomos informados da licença sem
vencimentos (LSV) imposta pela
companhia aérea.
Começou então a preocupação
sobre como sair da China. Com
voos restritos, ainda consegui sair
fazendo escala em alguns países
na própria Ásia, continuando a
viagem via Europa. De lá, consegui
chegar ao Brasil depois de mais
duas escalas. Ao desembarcar,
fiquei surpreso com a falta de qual-
quer tipo de abordagem, diferente-
mente do que já acontecia na Ásia e
na Europa, por onde havia passado.
Até o momento em que escrevo
este depoimento, já tive por duas
vezes a licença sem vencimentos
prorrogada. Não pagaram o salário
de janeiro, nem o auxílio-moradia.
Torço por um breve retorno, sonho
com a próxima decolagem, com o
próximo contato rádio com algum
órgão de controle, e já imagino o
próximo pouso. Me solidarizo com
colegas aviadores, que tudo não
passe de um rápido mau tempo.”

Comandante de widebody em uma
empresa chinesa*
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