Folha de São Paulo - 25.03.2020

(nextflipdebug5) #1

saúde


aeee
QUARTA-FEIRA,25DEMARÇODE 2020 B1

coronavírus


2.201 casos
SPlideraonúmerode
confirmações,com810

46 mortes
40 ocorreramnoestadodeSão

EUA discutemfechar divisas entreestados paraconter doença



  • DiogoBercito


washingtonAutoridades
americanas já discutemapos-
sibilidade derestringiracircu-
lação de pessoas entreosdife-
rentes estados de seuterritó-
rio paraconterocoronavírus.
Nodia 16 ,porexemplo,o
presidenteDonaldTrump dis-
se que esses planos eram im-
prováveis —mas que, ainda
assim,aideia eradebatida. A
epidemia dovírus deixou ao
menos 49 milinfectados e 600
mortos nos Estados Unidos.
Nãoestáclaro,porém, se o
presidente poderiatomar es-


sa medida.Alguns especialis-
tasdefendem queadecisão de
fechar divisas deve ao menos
emtese partir dosgovernado-
res, enão dogovernofederal.
“A leiébastanteclaraaoes-
tipularque, na área da saúde
pública,são os estados que
têmautoridade paraimple-
mentaressasrestrições”,diz
em entrevista àFolhaGeorge
Annas,professor na Universi-
dadeBostoncomenfoque em
temas de saúdeelegislação.
Ocenárioédiferente do bra-
sileiro porque,nosistemafe-
derativoamericano,cadaesta-
dotemaprópriaconstituição.

Cabeteoricamentetambém
aosgovernadores,enão aogo-
vernofederal ou aosmunicí-
pios,adecisão de impedir a
entradaesaída emdetermi-
nadascidades ouregiões on-
de haja maiscasos dovírus.
FoiogovernadordeNova
York,odemocrataAndrew
Cuomo,que criouazona de
confinamentoemNovaRo-
chelle, 30 km ao nordestede
NovaYork.Amedida nãofe-
chou as divisas —apenasli-
mitou as aglomeraçõesden-
trodoterritório afetadoefe-
chouasescolas.
Dadaaexcepcionalidade das

circunstâncias, Annas afirma
que nãoéimpensávelque o
governofederal decida impe-
diraentradaesaída nosesta-
dosmais afetados,comoNo-
va York,mesmo essa não sen-
do uma de suasatribuições.
Se discordarem disso,gover-
nadores podem entrar naJus-
tiçacontraogovernofederal.
Mas, segundo Annas,éimpro-
vávelqueasituação chegue a
esse ponto. Ademais, ele prevê
que tribunaisevitariamcon-
trariar qualquerdecisãoto-
mada paraimpedirapropa-
gaçãodeuma epidemia.
Comadoençasealastran-

do pelo país,apopulação pro-
vavelmenteapoiaria asrestri-
ções de movimento, dizAn-
nas.Issodepende,noentan-
to,decomo essa decisãofor
implementada, se essedia
chegar.“Ogoverno não pode
discriminar deacordocoma
raça,religião ou origem das
pessoas”,ele afirma.Amedi-
dateria devaler paratodos.
Hárarosprecedentes de es-
tadosfechando divisas nos
EUA, oquefazdessa questão
maiscontroversa.Nosanos
1930 ,após umduroperíodo
de seca,americanosdedeter-
minadasregiões migraram em

massa para aCalifórnia.Oes-
tadotentou, naquele período,
restringiraentrada de pessoas.
ACorteSupremadecidiuque
adecisão erainconstitucional
—afinal, limitava odireitode
circulação pelopaís.Nãoes-
tava emquestão,noentanto,
asaúde detodooterritório,
algoque afetaodebate atual.
Detodo modo,aindase hou-
verrespaldoconstitucional
parafechar as divisas, espe-
cialistascolocam em dúvida
se amedidafaria alguma dife-
rençaneste estágio.Jáhá, afi-
nal,casos decoronavírus em
todososestadosamericanos.

Bloqueioàchegada de turistas na cidade de Santos, no litoral paulista, no último domingo(22);medidatambémfoitomadanavizinha Guarujá RonaldoBarreto/Folhapress



  • TalitaFernandes
    eFábioZanini


brasíliaesão pauloEmace-
no aosgovernadores, opre-
sidenteJairBolsonarodele-
gouaelesapossibilidadede
restringiracirculação deve-
ículos porestradas, inclusi-
veinterestaduais, paracom-
baterocoronavírus.
Os limites vinham sendoim-
postos de maneiraunilateral
pelos estados,oquecontraria
aConstituição,segundo espe-
cialistas ouvidos pelaFolha.
Nasegunda( 23 ),ogoverno
publicou emediçãoextra do
Diário Oficial da União umare-
solução que transferedaAn-
visa (AgênciaNacional de Vi-
gilânciaSanitária)aórgãos de
vigilância dos estadosacom-
petência paraprevercondi-
ções técnicas para fechamen-
to ou bloqueio de estradas.
Pelotexto,ficoudelegado
aos órgãos estaduaisfazerre-
comendaçãotécnicapara“o
estabelecimento derestrição
excepcionaletemporária por
rodovias de locomoção inte-
restadualeintermunicipal”.
Anormativaéassinada pelo
diretor-presidente da Anvisa,
AntônioBarraTorres,militar
próximoaBolsonaro.
AUniãoeosestados vinham
travando uma batalha sobre
as decisões defechar estradas
eaeroportos.Governos de es-
tadoscomoSãoPaulo,Rio de
Janeiro, Goiás, Maranhão e
Bahiaeditaram decretospa-
ra imporrestrições.
Ascompetências daUnião
estãoexpressas no artigo 22 da
Constituição,que incluilegis-
lar sobretrânsitoetransporte.


Ao final do artigo, aCartaau-
toriza queogovernofederal
delegue aos estadosadecisão
de tomar medidas sobre esses
temas,mascom base na apro-
vaçãodelei complementar.
Essa possibilidadedada por
Bolsonaroaos estados, no en-
tanto,veiopor meio de um
instrumentomais fraco, uma
resolução de agênciafederal, o
queemtese podegerar ques-
tionamentos jurídicos.
Maséimprovávelque isso
ocorra, dado queamedida
atendeainteresses de União
eestadosenão haveriatempo
paraoCongresso aprovar uma
lei, ainda maiscomvotações
prejudicadas pela pandemia.
Acadêmicoseprofissionais
do direitoouvidos pelaFolha
são unânimes em apontarque
ocenárioanterioràresolução
eradeinconstitucionalidade.
Há aindaexemplosdepre-
feitos bloqueando estradas
paraisolar municípios,oque
nãoécobertopelaresolução
da Anvisaecontinua irregular.
Para CarlosAyresBritto,ex-
presidentedoSupremoTri-
bunalFederal,oprópriofato
deaOrganização Mundial da
Saúdeterdecretado situação
depandemia demonstra que
acompetênciapararestrição
de circulaçãoédaUnião.
“É uma decisão de um orga-
nismo internacional do qual o
Brasilfazparte.Ocaráter de
pandemia jácolocaaquestão
no plano dasrelações interna-
cionais, que são decompetên-
ciaexclusivadaUnião”,afirma.
Diretor daFaculdade de Di-
reitodaUSP,FlorianoPeixoto
deAzevedoMarques diz que é
precisorespeitaroutroprincí-

pio da Constituição, odaco-
ordenação de saúde pública.
“A saúde públicanaConsti-
tuiçãoéoperadacoordenada-
mente no âmbitodoSUS [Sis-
temaÚnicodeSaúde].Não
écadaumfazoseu”,afirma.
Ele entende quearesolução
vainosentido derespeitar es-
sa exigência de harmonia en-
treosentesdaFederação.
Segundo Marques,issonão
significa queprefeitos possam
fechar estradaseproibiraen-
trada de cidadãosdefora.“O
máximo que um prefeitopo-
defazerélimitaracirculação
decertas vias em sua cidade.”
Professor de direitoconsti-
tucional do InstitutodeDirei-
to Público, DanielFalcãocita
trecho do artigo 21 da Carta
que diz sercompetênciada
União “planejarepromovera
defesa permanentecontraas
calamidades públicas”.
Falcão mencionatambém a
ADI (Ação DireitadeIncons-
titucionalidade) 3112 ,que tra-
toudoEstatutodoDesarma-
mento, em 2007 .Nela,orela-
tor, ministroRicardo Lewan-
dowski, mencionaoprincípio
de que estados legislam em in-
teresseregionaleaUnião,em
interesse nacional.
“Estadobarrando divisa eu
vejo como interesse nacional,
há interesse de outroestado
em jogo”,afirma. “Seforres-
triçãodentrodoestado,pode-
ria serfeito. Aí éregional”,diz.
ProfessoradeDireitoda
FGV-SP,Eloísa Machado de
Almeidaafirmaque movimen-
tar- se éumdireitohumano.
“Todarestriçãoaessedirei-
to só pode serfeitacom justi-
ficativaerazoabilidade, em si-

tuações de emergênciadesa-
údepúblicaoucalamidades”,
afirma.Aprópria lei daqua-
rentena ( 13. 979 / 20 ),federal,
prevêapossibilidade deres-
triçõesaesse direito.
Porém, diz ela,alocomo-
çãoentreestadosélivre, e
aConstituição não permite
restrições determinadas por
membros daFederação.
Estadosemunicípios pode-
riamtomar medidas em suas
jurisdições, havendoreconhe-
cimentodeemergência ouca-
lamidade.“A restrição só pode
serfeitadeforma justificada
erazoáveleenquantodurar a
emergência. Qualquerrestri-
çãosemcritériosadequados
pode se transformar em po-
líticadiscriminatória”,diz ela.

Éimportante alertar


paraconcentraçãode
poder em emergência

ANÁLISE


  • LeandroMitidieri
    Procurador daRepública,mestre
    em direitoconstitucional pela UFF
    (UniversidadeFederal Fluminense)


Apandemia docoronavírus
ensejouuma série demedi-
daspor partedos entesfede-
rativos que afetam direitos
fundamentais.Éimportan-
te oalertaparaaconcentra-
çãodepoder nas situações de
emergência,razão pela qual
deve-serestringi-laaestados
deexceçãoverdadeirosedes-
cartar “passagens furtivas” pa-
ra talcenário.

Bolsonaro acena aestados ao


delegar bloqueio de estradas


Ações degovernadorescontrariaramaConstituição, segundo especialistas


NoBrasil, aRepúblicanas-
ce praticamenteemestado de
exceção, sendo declarado es-
tado de sítio emrazão daRe-
voltadaArmadajáem 1892.
Nadisciplina da Constitu-
ição de 1988 ,aventar estado
de sítioemcasodepandemia
demonstradesconhecimento
dotextoconstitucionaledo
históricodoinstituto. Sefos-
seocaso,ahipótesetalvez
se encaixasseem “calamida-
de de grandes proporções na
natureza”, aensejar estado de
defesa,enão estado de sítio.
Oadequadosão as declara-
ções de estados decalamida-
de, da partedeestadosemu-
nicípios, nostermos da lei que
instituiuaPolíticaNacional de
ProteçãoeDefesaCivil.
Essesentesfederativos de-
vemadotar medidas nos âm-
bitosterritoriaiselocais, nos
termos dacompetênciaco-
mum paracuidarda saúdee
legislar sobreadefesa desta,
cabendo ao SUScoordenare
executar ações de vigilância
sanitáriaeepidemiológica.
Nestestermos,cabeàUni-
ão restringirofuncionamento
de aeroportosedo transpor-
te rodoviáriointerestadual e
internacional de passageiros.
Os municípiosseencarregam
dos serviços públicosde in-
teresse local, além daremo-
çãodapopulação das áreas
de altorisco, ficando os esta-
doscomachamadacompe-
tênciaresidual.
Aquestão que estáposta,
contudo,pareceser outra: o
queécabível diantedainér-
cia da União ou da suafalta
decoordenação.Aresposta
vemsendo buscadapor meio
de medidas ajuizadas pelo Mi-
nistérioPúblicoFederalepe-
losEstadosemface daUnião
edaAnvisa, pleiteandoapro-
ibiçãodevoos internacionais
earealização de barreiras sa-
nitárias nos aeroportos,com
pelo menos umaliminarjá
concedidanesseúltimocaso.
Comamedida provisóriado
dia 20 ,ogovernofederal pre-
tendiacentralizar naAnvisa
arecomendação de medidas

derestrição não só de entra-
daesaídado paísmastam-
bém delocomoção interes-
tadualeintermunicipal por
rodovias, portos ou aeropor-
tos. Nodia 23 ,porém,recuou,
delegando-a ao“aoórgãode
VigilânciaSanitária ouequi-
valentenos estadosenoDis-
tritoFederal”,restando claro
oprotagonismo dos estados.
Um norteparaasituação é
oPactoInternacional sobre
Direitos CivisePolíticos, que
prevêqueacirculaçãoeasaí-
dadeum paíspodem serres-
tringidascomprevisão legal e
no intuitodeproteçãoàsaúde.
Emtempos em que pasto-
resinsistem narealização de
cultosduranteapandemia, o
pactosubmetealiberdade de
manifestaraprópriareligião
ou crençaàslimitaçõesque se
façamnecessárias parapro-
tegerasegurançaeasaúde.
Mas nemagravidadedasi-
tuaçãoatuallegitima preten-
sõescomoadoprojetodelei
791 / 2020 ,que prevê, nascon-
trataçõesduranteapande-
mia,uma espécie decontrole
prévio monocráticopor parte
de um ministrodoTCU(Tri-
bunal de Contas da União)
designado pelo presidenteda
corte, semaparticipaçãodo
MinistérioPúblicodeContas.
Ainda,essacontratação
“chancelada”peloTCUseria
submetidaaopresidentedo
SupremoTribunalFederal
parahomologação,ouvido o
Procurador-Geral daRepúbli-
ca.Trata-se de criação de juí-
zo deexceção, além de afron-
ta aodevidoprocessoadmi-
nistrativoelegal.
Oordenamentojurídicojá
admitemedidas duras parao
enfrentamento da pandemia
no país, nos moldes decomo
se temprocedidonosdemais
paísesdemocráticos.
Todavia,deveser rechaça-
daeventual visão da situação
como oportunidadeparauma
“passagemfurtiva”paraum
estado deexceção, comrup-
turadotãoduramentecon-
quistado EstadoDemocráti-
code Direito.
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