O Estado de São Paulo (2020-05-09)

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O ESTADO DE S. PAULO SÁBADO, 9 DE MAIO DE 2020 Internacional A


Europa

Diferença. Galeria de Sylvia Reijbroek (D), fechada pelas leis belgas, e a loja do vizinho, aberta pelas regras holandesas

ILVY NJIOKIKTJIEN/THE NEW YORK TIMES

Thaís Ferraz e Paulo Beraldo


Menos afetada pela pandemia
que seus vizinhos europeus, a
Alemanha tornou-se um dos pri-
meiros países a relaxar as medi-
das de confinamento. Na última
semana, escolas, bibliotecas,
salões de beleza e outros peque-
nos estabelecimentos comer-
ciais voltaram a funcionar, mas
com novas regras, como o uso
obrigatório de máscaras. Os ale-
mães, no entanto, estão retor-


nando com cautela ao que consi-
deram um “novo normal”.
“A primeira fase da pandemia
terminou, mas ainda estamos
no início e temos uma longa luta
contra o vírus pela frente”, aler-
tou a chanceler Angela Merkel,
após afirmar que o relaxamento
das restrições só foi possível gra-
ças à estabilização da taxa de
contágio e à baixa ocupação de
leitos de hospitais.
“Em Berlim, as pessoas estão
inseguras, mas calmas”, conta o
médico otorrinolaringologista
Andreas Kähne. “Meus pacien-
tes estão muito preocupados
por causa do vírus, mas seguem
todas as instruções de seguran-
ça.” As novas medidas encerra-
ram um enclausuramento de
cinco semanas na cidade.

“Como não tínhamos um pro-
tocolo e não sabíamos o que
ocorreria no próximo mês, ha-
via uma tensão em todos os as-
pectos”, afirmou Kähne, que
considera a reabertura impor-
tante por razões econômicas e
psicológicas.
Morador de Berlim, o cabelei-
reiro brasileiro Henrique Rocha
relatou um clima de tranquilida-
de. Em um primeiro momento,
ele disse que houve “um medo
até exagerado” da população.
“Era tudo novo, mas os frequen-
tes pronunciamentos das autori-
dades amenizaram isso. E as pes-
soas perceberam que o isola-
mento estava funcionando e fi-
caram mais calmas.”
Diretamente afetado pela pan-
demia – seu salão foi fechado em

21 de março –, Henrique se pre-
parava para a retomada quando
conversou com o Estado e esto-
cava máscaras e aventais que se
tornariam obrigatórios no sa-
lão. Para ele, a reabertura dos pe-
quenos negócios é positiva. “As
pessoas estão precisando resol-
ver pequenas coisas, como ir ao
salão. Há necessidade de a vida
aos poucos voltar ao normal”,
disse. “Com a chegada da prima-
vera e dos dias bonitos, com tem-
peratura acima de 20 graus, as
pessoas querem sair de casa.”
Também morador de Berlim,
Carlos Vibrans contou ter senti-
do “um clima de renascimen-
to”. “As pessoas andavam mui-
to abatidas”, afirmou. Durante
o período de isolamento, ele viu
comportamentos diferentes.
“Várias pessoas pareciam igno-
rar ou fingir que não estava
acontecendo nada, enquanto
outras mantinham a distância
rigorosamente e regulavam os
outros, como era de se esperar
de alemães típicos.”

Mas, para ele, é necessário ter
cautela. “Não vejo as coisas vol-
tando ao normal tão cedo. As
pessoas parecem ansiosas, mas,
ao mesmo tempo, entendem
que não vai ser uma volta ao nor-
mal. A Merkel disse que, se as
regras não forem respeitadas, as
proibições voltarão.”
A Alemanha é o sexto país do
mundo com mais casos de coro-
navírus – 168 mil, segundo a Uni-
versidade Johns Hopkins, dos

EUA. As mortes somam 7,2 mil e
as pessoas recuperadas, 137 mil.
“Muita gente estava lutando
com a sua ‘quarentena’ e tinha
medo de perder o emprego, já
que muitas empresas estão ten-
do problemas”, relatou Martin
Ritt, morador de Bielefeld. A ci-
dade, segundo ele, estava tão si-
lenciosa “que parecia feriado”.
Ritt teme que haja uma segun-
da onda de contágios se a abertu-
ra não for lenta e gradual. “Ain-
da não é o caso de ter grandes
eventos, como futebol com tor-
cida. Shows e festivais, como a
Oktoberfest, já foram cancela-
dos e o carnaval do ano que vem
é questionável”, disse.
O Campeonato Alemão volta
na semana que vem, mas sem tor-
cida. A reabertura de cinemas,
teatros e restaurantes ainda é in-
certa. Merkel afirmou que cada
Estado deve rever as regras para
retomar esses setores da econo-
mia. A maior parte da responsabi-
lidade em levantar as restrições
será dos governos locais.

BERLIM


Apesar das restrições provoca-
das pelo coronavírus, Europa e
EUA recordaram ontem o fim
da 2.ª Guerra. De Washington,
passando por Paris e Londres,
as comemorações foram reali-
zadas de maneira discreta, se-
guindo as regras de isolamento
social. Em Berlim, excepcional-
mente, foi decretado feriado.
Normalmente, a Alemanha
não recorda, ou só celebra de
maneira discreta, o dia 8 de
maio de 1945, quando o regime
nazista se rendeu aos Aliados.
Desta vez, a capital declarou o
75.º aniversário como dia de des-
canso. O chefe da diplomacia


alemã, Heiko Maas, expressou
ceticismo na véspera sobre a
ideia de transformar a data em
feriado nacional permanente.
“Esta não é a questão princi-
pal para mim”, declarou ao ca-

nal de TV ZDF. “O importante é
que a data seja entendida na Ale-
manha como um dia de liberta-
ção, um dia que, de fato, pode
ser de celebração, mas não de
lamentação”, completou Maas,

que foi criticado pelo partido de
extrema direita Alternativa pa-
ra Alemanha (AfD). O líder da
AfD, Alexander Gauland, consi-
dera que o 8 de maio continua
sendo a “derrota absoluta” em

que a Alemanha “perdeu a auto-
nomia sobre seu futuro”.
Ao lado da chanceler, Angela
Merkel, o presidente alemão,
Frank-Walter Steinmeier, parti-
cipou de uma cerimônia para de-
positar flores em memória das
vítimas da guerra e do Holocaus-
to, que matou 6 milhões de ju-
deus. Steinmeier também fez
um discurso, um gesto simbóli-
co que representa um apelo à
ordem em um país que registra
o aumento do antissemitismo e
onde a extrema direita se rebela
contra a recordação. “Hoje,
nós, alemães, podemos afir-
mar: o dia da libertação é um dia
de gratidão.”
Pelo mundo, as restrições de-
cretadas para conter a pande-
mia reduziram os eventos ao
mínimo, com cerimônias trans-
mitidas ao vivo pela internet.
O presidente dos EUA, Do-
nald Trump, participou de sole-
nidade no memorial da 2.ª Guer-
ra. Seu colega francês, Emma-
nuel Macron, fez o mesmo dian-
te da estátua do general Charles
De Gaulle e do túmulo do solda-
do desconhecido. em Paris. Coin-

cidindo com o aniversário do fim
da 2.ª Guerra, morreu ontem aos
101 anos, a heroína da resistência
francesa Cécile Rol-Tanguy.
Em Londres, a rainha Elizabe-
th II fez um pronunciamento
aos britânicos, exibido pela BBC,
no “horário exato em que seu
pai, o rei George VI, discursou
por rádio, em 1945”, segundo um
comunicado do governo. O pri-
meiro-ministro britânico, Boris
Johnson, afirmou que era preci-
so reverenciar as antigas gera-
ções. “Não podemos realizar os
desfiles e celebrações de rua,
mas todos nós que nascemos
desde 1945 temos plena cons-
ciência de que devemos tudo o
que mais valorizamos à geração
que venceu a 2ª Guerra.” / AFP

PANDEMIA DO CORONAVÍRUS


l Mudança

ONDE FICA

INFOGRÁFICO/ESTADÃO

HOLANDA

BÉLGICA

Amsterdã

Baarle-Hertog

ALEMANHA

FRANÇA

N

OCEANO
ATLÂNTICO

(^0100) km
UMA CIDADE
PERDIDA NA
CONFUSÃO DA
FRONTEIRA
l História
Fim da 2ª Guerra tem celebração discreta
Escolas e pequenos
comércios voltam a
funcionar com novas
regras após estabilização
da taxa de contágios
Alemães saem de casa com cautela
e se adaptam ao ‘novo normal’
MICHAL CIZEK/AFP
“Há necessidade de
a vida aos poucos
voltar ao normal.
Com a chegada da
primavera e dos
dias bonitos, com
temperatura acima
de 20 graus, as pessoas
querem sair de casa.”
Henrique Rocha

CABELEREIRO BRASILEIRO
COM SALÃO EM BERLIM
75º aniversário. Com máscaras, pessoas participam de cerimônia em cemitério em Praga
Enclave é emaranhado territorial entre Bélgica e
Holanda que vive sob leis distintas na pandemia
A
fronteira entre Holan-
da e Bélgica passa exa-
tamente na entrada
do estúdio e da galeria de ar-
te de Sylvia Reijbroek, que
ficou confusa sobre as re-
gras de qual país seguir quan-
do o coronavírus virou a Eu-
ropa de cabeça para baixo.
Por segurança, ela deci-
diu respeitar a lei belga,
uma vez que o lugar está re-
gistrada na Bélgica, e fe-
chou a empresa. Mas é frus-
trante para ela ver o movi-
mento de clientes no salão
de beleza vizinho ao seu es-
túdio, que fica do lado ho-
landês. “Uma única loja nes-
ta rua teve de atender à lei
belga e fechar. A minha.”
À medida que os países eu-
ropeus começam a flexibili-
zar as restrições, seguindo
ritmos variados, alguns auto-
rizando empresas a reabri-
rem e outros mantendo o
confinamento, as regras dis-
tintas confundem viajantes
e muitas pessoas que vivem
em áreas de fronteira e regu-
larmente as atravessam, in-
do de um lado para o outro.
E em nenhum lugar essas
estratégias divergentes são
mais visíveis e complicadas
do que na cidade de fronteira
de Baarle-Hertog-Nassau, on-
de há diretrizes diferentes de
rua para rua, porta para porta, e
até dentro de prédios, com a lei
holandesa aplicada num local e
a belga imposta a poucos pas-
sos dali.
Baarle-Hertog-Nassau é vis-
ta com frequência como a situa-
ção de fronteira mais comple-
xa do mundo e é difícil contes-
tar isso. A cidade está alguns
quilômetros dentro da Holan-
da, mas em razão de um acordo
firmado entre senhores feu-
dais em 1198, está dividida em
dois lados – belga e holandês.
Mas este é só o começo do
quebra-cabeças. Dentro de ca-
da lado existem enclaves per-
tencentes ou a um ou ao outro
país – 22 enclaves belgas, do la-
do holandês, e 8 enclaves holan-
deses, do lado belga, resultan-
do num emaranhado confuso
de sinalizações de fronteira.
Cada enclave está sujeito às
leis do respectivo país, o que
cria uma colcha de retalhos de
regras e regulamentos confli-
tantes. “Mas sem os tumultos e
conflitos com frequência asso-
ciados a enclaves”, disse Wil-
lem van Gool, funcionário do
Departamento de Turismo.
Embora a vida seja pacífica
dos dois lados, não significa
que a situação é fácil de admi-
nistrar, mesmo em circunstân-
cias normais. “Com o coronaví-
rus, isso ficou um absurdo”, dis-
se Sylvia Reijbroek.
A Bélgica, um dos países
mais afetados pelo vírus na Eu-
ropa, impôs o confinamento
em março, com multas para
qualquer pessoa que se aventu-
rar a sair de casa sem uma boa
razão.
Mas a Holanda adotou medi-
das muito mais flexíveis, autori-
zando delivery de restauran-
tes, a abertura de lojas, escritó-
rios do governo e permitindo a
saída de pessoas às ruas. O go-
verno apenas pediu a elas que
permanecessem o máximo pos-
sível em casa e mantivessem
distanciamento social quando
estivessem fora.
Em Baarle-Hertog-Nassau,
essas medidas conflitantes tor-
nam a vida cotidiana muito con-
fusa para os 11 mil moradores
das duas nacionalidades. “Se-
guimos a lei belga, por isso fe-
chamos todas as lojas na nossa
área”, afirmou Frans de Bont,
prefeito de Baarle-Hertog, a
parte belga da cidade. “Esperá-
vamos que os holandeses se-
guissem nossa política, ou pelo
menos que as seguissem den-
tro desta cidade. Mas eles
não seguiram.”
O governo belga respon-
deu à pandemia fechando to-
dos os cruzamentos ao lon-
go da fronteira de 450 quilô-
metros com a Holanda. Os
postos de controle, há mui-
to tempo esquecidos, ressur-
giram de repente, com a polí-
cia bloqueando a entrada e a
saída. Na confusão dos pri-
meiros dias, algumas famí-
lias se viram separadas. De-
pois, no entanto, permis-
sões foram concedidas para
visitas familiares através da
fronteira. / NYT, TRADUÇÃO DE
TEREZINHA MARTINO

Pandemia obriga líderes
mundiais a realizarem
comemorações com
eventos pequenos e
transmissões na internet
“Hoje, nós, alemães,
podemos afirmar:
o dia da libertação
é um dia de
gratidão.”
Frank-Walter Steinmeier

PRESIDENTE DA ALEMANHA

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