O Estado de São Paulo (2020-05-09)

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A12 SÁBADO, 9 DE MAIO DE 2020 O ESTADO DE S. PAULO


FERNANDO


REINACH


M


uitos perguntam quando a
pandemia vai atingir o pico
no Brasil. Costumava ofere-
cer um palpite, agora digo que o pico
ocorrerá quando aproximadamente
metade da população tiver sido in-
fectada. Retrucam que hoje, com
100 mil casos, temos 8 mil mortes,
será possível que com 100 milhões
de casos teremos 8 milhões de mor-
tes? Sim, e se o número total de ca-
sos continuar a duplicar a cada sema-
na chegaremos lá em 10 semanas,
em julho. Saco a calculadora e multi-
plico 100 mil por dois, dez vezes. A
calculadora mostra 102 milhões.
Nunca esse pequeno diálogo so-
crático deixou de fazer efeito. Então
mostro a curva do total de casos que
tenho à mão. Na verdade, digo, nas

últimas semanas o multiplicador cor-
reto seria 1,6. Tínhamos 50 mil casos
em 22 de abril, 80 mil em 29 de abril e
chegamos a 125 mil em 6 de maio. Pro-
ponho que as contas sejam refeitas. Re-
fazemos e concordamos: levará por
volta de 15 semanas. O pico será no fim
de agosto, talvez setembro.
Então, com a atenção total de quem
perguntou, desejando uma resposta ca-
paz de criar algum grau de conforto,
introduzo a segunda parte do argumen-
to. Esse é o curso natural de uma pande-
mia causada por um vírus que se espa-
lha com enorme facilidade, e essa seria
a trajetória se fôssemos uma colônia
de 200 milhões de ratos incapazes de
mudar nosso comportamento. Qual-
quer outro desfecho depende de nós.
Sabemos que o vírus se espalha pelo ar

quando ficamos próximos de uma pes-
soa doente, ou através da mão quando
tocamos um objeto ou superfície con-
taminada. Um desfecho com menos
mortes depende de medidas de higie-
ne e da diminuição da interação entre
pessoas. Fácil falar, difícil fazer. E o
Brasil não está conseguindo fazer.
Após um mês e meio de medidas de
distanciamento, a velocidade de espa-
lhamento está aumentando.
As razões de nosso fracasso são mui-
tas. Somos um país pobre onde a maio-
ria das pessoas precisa ganhar a vida a

cada dia e não possui reservas financei-
ras para simplesmente se trancar em
casa por semanas a fio. Grande parte
da população vive em locais onde o iso-
lamento é impraticável pelo simples
fato de as pessoas estarem aglomera-
das em pequenos cômodos. Além dis-
so, as condições para implementar me-
didas básicas de higiene não existem, e
o governo federal se mostrou primeiro

incapaz, e agora contrário a liderar
uma resposta da população à pande-
mia. Sem saber para onde ir, a popula-
ção aos poucos volta à normalidade, já
conformada com 600 mortes por dia.
O colapso do sistema hospitalar é
um fato em boa parte do País. Nesse
ritmo atingirá todas as capitais nos
próximos dias. Pessoas já morrem em
casa sem tratamento, cadáveres espe-
ram junto aos leitos de doentes graves
ou se empilham em contêineres refrige-
rados. Nem sequer a notificação das
mortes funciona a contento. Mais lei-
tos não resolvem sem médicos e enfer-
meiros. E a imprensa, que já não acredi-
ta no número oficial de mortes, prefere
contar os enterros nas covas coletivas.
Não é possível imaginar que isso vá
melhorar nas próximas semanas pois
o que vai acontecer até o fim de maio
está determinado pelo comportamen-
to da população hoje. Nos últimos dias
o que se vê na periferia de grandes cida-
des é o movimento normal do comér-
cio frequentado por pessoas mascara-
das que foram induzidas a se sentir pro-
tegidas por máscaras que sequer sabe-
mos se são realmente úteis.
Essa realidade descreve perfeita-

mente a estratégia que o Brasil esco-
lheu involuntariamente – por in-
competência, descaso, ou ganância


  • para lidar com a pandemia. Ela con-
    siste em deixar a população se conta-
    minar rapidamente até atingirmos a
    imunidade de rebanho, que automa-
    ticamente diminuirá casos e mortes
    assim que começarmos a sentir seus
    efeitos nos próximos meses. Até lá o
    caos aumentará. Mortes devem lo-
    go chegar a 2 mil por dia e a realida-
    de de Manaus será observada em to-
    das as capitais com alta densidade
    populacional. Esse sempre foi o de-
    sejo de Bolsonaro e assim será.
    Tudo indica que no Brasil a pande-
    mia seguirá seu curso natural, tal-
    vez ligeiramente afetada pelo com-
    portamento da sociedade. É triste,
    mas é como se o vírus estivesse se
    espalhando em uma colônia densa
    de 200 milhões de ratos desorienta-
    dos. Espero estar errado, mas é as-
    sim que vejo nosso futuro. A estraté-
    gia do Brasil é a imunidade de reba-
    nho por incompetência.


]
É BIÓLOGO

E-MAIL: [email protected]

André Borges / BRASÍLIA


O Brasil bateu seu terceiro re-
corde na semana e registrou
751 mortes decorrentes do no-
vo coronavírus em 24 horas,
segundo atualização feita pe-
lo Ministério da Saúde nesta
sexta-feira. Com isso, o total
oficial de vítimas da covid-
no País subiu de 9.146 para
9.897. E uma projeção da con-
sultoria americana Kearney,
que trabalha com cenários há
mais de 80 anos e está presen-
te em mais de 40 países, pre-
vê, na melhor das expectati-
vas, que o País chegue a 28 mil
vítimas até 20 de dezembro.

Segundo a plataforma de esta-
tísticas Worldometers, o País
continua a ser o segundo em re-
gistros no mundo, atrás apenas
dos EUA, que relataram 1.
novos óbitos por infecção em
24 horas. O número de casos
confirmados da doença no Bra-
sil saltou de 135.106 para
145.328, com 10.222 novos regis-
tros entre anteontem e ontem.
Isso sem considerar os casos de
subnotificação ( mais informa-
ções nesta página
).
Para a Kearney, a flexibiliza-
ção de medidas de isolamento
social e a falta de ações que am-
pliem urgentemente a estrutu-
ra de saúde do País poderão fa-
zer com que o Brasil se torne o
recordista mundial de vítimas
da doença. O Estado teve aces-
so exclusivo a um estudo con-


cluído na semana passada pela
empresa, que analisou em deta-
lhes a evolução da doença em
todo o mundo e, a partir de da-
dos oficiais do Ministério da
Saúde e dos Estados, fez simula-
ções para as próximas semanas
e meses do Brasil.
As projeções mostram que,
em um cenário intermediário, o
Brasil chegará a cerca de 78 mil
mortes por covid-19 até dezem-
bro. No mais pessimista, o estu-
do aponta 295 mil mortos até 20
de dezembro. Seria como se a
população inteira de uma cida-
de do porte de Taubaté (SP), Pe-
trópolis (RJ) ou Governador Va-
ladares (MG) fosse dizimada.
São números, portanto, de refe-
rência, que podem variar muito
conforme as medidas que fo-
rem tomadas.

Pico. Conforme as projeções,
o Brasil ainda não atingiu o pico
de casos, o que deve acontecer
entre 2 e 11 semanas (10 de maio
a 5 de julho), conforme a região
do País. Medidas locais de com-
bate à doença, no entanto, po-

dem abreviar ou reduzir esse
prazo. “O cenário é extrema-
mente preocupante. A mensa-
gem clara que tiramos disso, em
síntese, é que a coisa ainda vai
piorar muito, antes de melho-
rar”, diz Joaquim Cardoso, lí-
der sênior da prática de saúde
da Kearney Brasil.
Uma das principais fragilida-
des do Brasil em lidar com o
avanço da doença está em sua
infraestrutura de saúde. A Kear-
ney fez um levantamento deta-
lhado sobre o que está disponí-
vel dentro da rede pública do
SUS e o que há na rede privada
de saúde. Os dados considera-
ram um total de 34 mil leitos de
UTI para adultos no País – com
a covid-19 e outras situações, o
número atual avançou um pou-
co para 40 mil. Considerando
os números anteriores da con-
sultoria, na prática isso signifi-
cava que, enquanto a média de
leitos é de 40 unidades para ca-
da 100 mil pessoas entre aque-
les que têm plano de saúde, esse
número caía para 9 leitos para
cada 100 mil na rede pública.
“O que vemos agora é a desigual-
dade na saúde cobrando a con-
ta”, diz Joaquim Cardoso, da
Kearney Brasil.
O cenário fica ainda mais deli-
cado quando considerado que
cerca de 16 mil leitos já estavam
em utilização por outras doen-
ças antes da chegada da covid-


  1. Nas estimativas da Keaney,
    as implementações de hospi-


tais de campanha não são sufi-
cientes para sequer trazer equi-
líbrio a esse cenário.

Sugestões. A consultoria faz
sugestões para minimizar pro-
blemas. “É preciso um plano ur-
gente para as UTIs, que seja fei-
to por Estados e cidades e consi-
dere a contratação de UTIs da
rede privada pelo poder públi-
co”, afirma Cardoso. “É preciso
avaliar também a possibilidade
de transporte de pacientes en-
tre cidades, regiões e Estados.
Isso foi feito na França. Temos
aviões, é uma alternativa.”
O estudo aponta que os Esta-
dos que sofrem com maior falta
de leitos, principalmente na re-
de pública, estão nas Regiões
Norte e Nordeste, como Amazo-
nas, Pará, Amapá e Ceará. O co-
lapso na rede de atendimento,
porém, também se aproxima
das redes de Acre, Rondônia, Ro-
raima, Pernambuco, Goiás, Dis-
trito Federal, São Paulo, Espíri-
to Santo e Rio de Janeiro.
Em um cenário otimista, o re-
latório estima que haverá falta
de ao menos 2,5 mil leitos de
UTI no pico das contamina-
ções, mas esse número pode
chegar à falta de aproximada-
mente 24 mil leitos em situação
mais crítica. Com base nas expe-
riências internacionais, a con-
sultoria alerta para a necessida-
de de se revisar políticas públi-
cas, além de adotar medidas pa-
ra reduzir as subnotificações. FONTE: KEARNEY INFOGRÁFICO/ESTADÃO

Intermediário Otimista Pessimista

● Estudo fez projeção de óbitos
e infecções até 20 de dezembro

CENÁRIOS

Cenários

PROJEÇÃO DE MORTES
PROJEÇÃO DE INFECTADOS

28
mil

373
mil

943
mil

78
mil

295
mil

4,
milhões

Situação de leitos de UTI

REDE PÚBLICA

REDE PRIVADA

15,4 mil
leitos

163 milhões
de pessoas que dependem
da rede pública

47 milhões
de pessoas que dependem
da rede privada

18,6 mil
leitos

PANDEMIA DO CORONAVÍRUS


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País tem recorde de 751 mortes em 24h;


projeção é de ao menos 28 mil este ano


l Precaução

Doria decide prorrogar quarentena até dia 31. Pág A.13 }

Metrópole

BRUNO KELLY/REUTERS–7/5/

“A falta de leitos explica por
que o lockdown ( bloqueio
total ) é tão importante. Eu
empurro o crescimento de
casos para frente.”
Joaquim Cardoso
KEARNEY BRASIL

Brasil registra terceiro recorde na semana; estimativa da empresa americana Kearney indica que Brasil está de 2 a 11 semanas do pico


e podem faltar ao menos 2,5 mil leitos de UTI. Consultoria sugere reavaliar capacidade hospitalar e a forma de transportar pacientes


Risco.
Cenário
mais
pessimista
projeta até
295 mil
óbitos

Incompetência brasileira


É como se o vírus se espalhasse
em uma colônia de 200 milhões
de ratos desorientados
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