O Estado de São Paulo (2020-05-09)

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A14 Metrópole SÁBADO, 9 DE MAIO DE 2020 O ESTADO DE S. PAULO


A


uric Goldfinger, vilão do ro-
mance batizado em seu no-
me, cita a James Bond um
vívido aforismo de Chicago: “Se
acontece uma vez, é o acaso; duas,
coincidência; se acontece três ve-
zes, trata-se de atividade inimiga”.
Até 2002, a ciência médica conhe-
cia um punhado de formas de coro-
navírus que infectavam os huma-
nos e nenhuma delas provocava
doença grave. Então, em 2002, um
vírus hoje conhecido como Sars-
CoV surgiu na província chinesa de
Guangdong. A subsequente epide-
mia de síndrome respiratória agu-
da grave (Sars, em inglês) matou
774 pessoas em todo o mundo, an-
tes de ser controlada. Em 2012, ou-
tra doença nova, a síndrome respira-
tória do Oriente Médio (Mers),
anunciou a chegada do Mers-CoV,
que ainda não foi eliminada, mesmo
sem se disseminar com o mesmo al-
cance da Sars (com exceção de uma
excursão à Coreia do Sul). Já são
mais de 858 mortos até o momento,
o mais recente óbito ocorrendo em
4 de fevereiro.
Na terceira vez, foi o Sars-CoV-2,
agora responsável por 225 mil mor-
tes decorrentes da covid-19. Tanto o
Sars-CoV quanto o Mers-CoV são
próximos dos tipos de coronavírus
encontrados em morcegos. No caso
do Sars-CoV, a narrativa aceita diz
que o vírus se espalhou de morcegos
em uma caverna na província de
Yunnan para as civetas, que são ven-
didas nos mercados de Guangdong.
No caso do Mers-CoV, o vírus se es-
palhou dos morcegos para os came-
los. Agora, é transmitido habitual-
mente dos camelos para os huma-
nos, o que o torna difícil de eliminar,
mas só é contraído por pessoas em
condição de extrema proximidade,

o que o torna administrável.
A hipótese de uma origem entre os
morcegos parece a mais provável tam-
bém para o Sars-CoV-2. Mas ainda não
identificamos a trajetória do vírus do
morcego até o ser humano. Se, como
no caso do Mers-CoV, o vírus ainda
circula em algum tipo de reservatório
animal, pode haver novas epidemias
no futuro. Caso contrário, outros vírus
certamente tentarão algo parecido. Pe-
ter Ben Embarek, especialista em zoo-
noses – doenças transmitidas dos ani-
mais para as pessoas – da Organização
Mundial da Saúde (OMS), diz que esse
tipo de contágio está se tornando mais
comum conforme os humanos e os ani-
mais da pecuária invadem novas áreas
onde ficam em contato mais frequente
com animais silvestres. É importante
compreender como ocorrem esses
contágios para que possamos apren-
der a impedi-los.
Mas, para alguns, fica na consciência
a possibilidade de atividade inimiga en-
volvendo algo menos impessoal do
que um vírus. Com o advento da enge-
nharia genética nos anos 1970, os teóri-
cos das mais variadas conspirações
apontaram para praticamente todas as
novas doenças infecciosas (aids, ebo-

la, Mers, doença de Lyme, Sars, zika...)
como resultado da interferência huma-
na, possivelmente maligna. As dinâmi-
cas políticas da pandemia da covid-
significam que, dessa vez, esse tipo de
teoria parece ainda mais sedutor do
que o habitual. A pandemia teve início
na China, onde o governo se dedicou a
acobertar o problema antes de adotar
medidas que poderiam ter limitado
sua disseminação. O maior estrago foi
causado nos Estados Unidos, onde o
número de mortos pela covid-19 já ul-
trapassa a quantidade de nomes no Me-
morial da Guerra do Vietnã, em
Washington.

Esses fatos teriam levado a acusa-
ções de um lado ao outro do Pacífico
independentemente de qualquer ou-
tro detalhe. O que piora a situação é a
suspeita de alguns segundo a qual o
Sars-CoV-2 poderia de alguma forma
estar ligado à pesquisa viral chinesa, e
o fato de dizê-lo alterar a distribuição
das responsabilidades. Não há nada
que corrobore essa acusação. Especia-
listas ocidentais dizem categoricamen-
te que o sequenciamento do genoma
do novo vírus – logo publicado de ma-
neira precisa pelos cientistas chineses,
com total abertura – não apresentava
nenhum dos habituais indícios de ma-
nipulação genética. Mas o fato é que,
em Wuhan, onde o surto da covid-
foi descoberto, há um laboratório on-
de, no passado, cientistas fizeram ten-
tativas deliberadas de tornar o corona-
vírus mais patogênico.
Pesquisas desse tipo são realiza-
das em laboratórios de todo o mun-
do. Para os defensores desses proje-
tos, trata-se de uma maneira vital de
estudar uma questão que a covid-
trouxe cruelmente para o centro das
atenções: como um vírus se transfor-
ma no tipo de coisa que dá início a
uma pandemia? Parece quase certo
que o fato de parte dessa pesquisa ter
ocorrido no Instituto de Virologia de
Wuhan (WIV) é apenas uma coinci-
dência. Mas, na ausência de uma nar-
rativa convincente e completa expli-
cando a origem da doença, resta espa-
ço para dúvidas.
A origem do vírus por trás da epide-

mia de Sars de 2003 – “Sars clássica”,
como alguns virólogos passaram a cha-
má-la – foi revelada em grande parte
pela pesquisadora Shi Zhengli, do
WIV, a quem às vezes a mídia chinesa
chama de “Tia dos Morcegos”. Ao lon-
go dos anos, ela e sua equipe visitaram
sítios remotos em todo o país na busca
por um parente próximo do Sars-CoV
nos morcegos ou no seu guano (um
substrato natural vindo das fezes do
morcego). Encontraram um em uma
caverna cheia de morcegos-de-ferra-
dura em Yunnan.
É na coleta de genomas virais reuni-
dos durante esses estudos que os cien-
tistas identificaram agora o vírus de
morcego mais semelhante ao Sars-
CoV-2. Uma cepa chamada RaTG13 co-
letada na mesma caverna de Yunnan
compartilha 96% de sua sequência ge-
nética com o novo vírus. O RaTG
não é o ancestral do nosso vírus, e sim
algo mais parecido com um primo. O
virólogo Edward Holmes, da Universi-
dade de Sydney, estima que os 4% de
diferença entre os dois representem
pelo menos 20 anos (provavelmente
algo mais perto de 50 anos) de diver-
gência evolutiva, a partir de um ances-
tral em comum.
Ainda que, em teoria, os morcegos
possam ter transmitido um vírus des-
cendente desse ancestral diretamente
para os humanos, os especialistas con-
sideram essa hipótese pouco provável.
O vírus dos morcegos tem uma diferen-
ça específica em relação ao Sars-
CoV-2. No caso do Sars-CoV-2, a pro-

teína protuberante na superfície da
partícula viral apresenta um domí-
nio de ligação ao receptor (RBD) par-
ticularmente capaz de se ligar a uma
molécula na superfície da célula hu-
mana infectada pelo vírus. O RBD
no coronavírus dos morcegos não é
o mesmo.
Um estudo recente indica que o
Sars-CoV-2 seria produto de uma re-
combinação genômica natural. Dife-
rentes tipos de coronavírus infec-
tando o mesmo hospedeiro se mos-
tram dispostos a trocar partes do
seu genoma entre si. Se um vírus de
morcego semelhante ao RaTG
chegasse a um animal já infectado
com um coronavírus equipado com
um RBD mais adequado para infec-
tar humanos, é possível pensar no
surgimento de um vírus de morcego
com RBD melhor sintonizado aos
humanos. É isso que o Sars-CoV-
aparenta ser.

Futuro. Muitos cientistas acredi-
tam que, com tantos biólogos caçan-
do ativamente os vírus de morce-
gos, e as pesquisas de ganho de fun-
ção se tornando mais comuns, o
mundo está diante de um risco cada
vez maior de uma pandemia nascida
de um laboratório. Atualmente há
cerca de 70 instalações de biossegu-
rança do tipo BSL-4 em 30 países.
Planeja-se a construção de mais ins-
talações dessa categoria. Mas, nova-
mente, é necessário pensar no des-
conhecido. Todos os anos há milha-
res de casos fatais de doenças respi-
ratórias em todo o mundo cuja cau-
sa é misteriosa. Algumas podem ser
resultado de zoonoses não identifi-
cadas. É necessário dar atenção à
questão desse possível elo e do nú-
mero dessas mortes. Para tanto, são
necessários laboratórios. É necessá-
rio também um grau de cooperação
aberta que os EUA estão agora enfra-
quecendo com suas acusações e re-
cusa em oferecer financiamento, e
que a China tentou suprimir nas ori-
gens. Essa supressão em nada aju-
dou o país. Ao contrário: ao fomen-
tar a especulação, seu resultado po-
de ter sido negativo. / TRADUÇÃO DE
AUGUSTO CALIL

]
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INGLÊS ESTÁ EM WWW.ECONOMIST.COM

Quebra-cabeças ‘covid’


Hipótese de origem entre os morcegos parece ser a mais


provável, mas trajetória até o ser humano não foi identificada


Caio Sartori
Marcio Dolzan / RIO


O ministro da Saúde, Nelson
Teich, fez ontem sua primei-
ra visita oficial ao Rio desde
que assumiu a pasta, no mês
passado. A ida ocorreu num
momento em que o Estado e
o município enfrentam agra-
vamento nas condições de
combate ao novo coronaví-
rus. Entre segunda e quinta-
feira, o Rio confirmou 439
mortes por covid-19 e 4.
novos casos da doença. Para
tentar diminuir a velocidade
de contágio, um bloqueio par-
cial está sendo feito em bair-
ros da capital e em Niterói.

Em ofício ao Ministério Públi-
co, o governador do Rio, Wilson
Witzel (PSC), informa que já co-
meçou a trabalhar em uma pro-
posta de isolamento mais radi-
cal, com medidas como fecha-
mento de estradas intermunici-
pais e maior restrição à circula-
ção de pessoas. A pressão sobre
ele vem de diversas frentes.
Além do conselho de notáveis
que assessora o governo, da Fio-
cruz e de vários órgãos do Esta-
do, a Universidade Federal do
Rio de Janeiro (UFRJ) também


recomendou bloqueio total.
O recorde de óbitos no Esta-
do aconteceu na quinta-feira,
com 189 mortes. Foi a primeira
vez desde o início da pandemia
que o Rio superou São Paulo em
número de registros numa mes-
ma data. O crescimento da cur-
va mostra que a inauguração de
799 novos leitos até o momento
não foi suficiente para atender
a demanda. O Estado inaugu-
rou 40 dos 400 leitos do hospi-
tal de campanha do Maracanã.
Em sua visita ao Rio, Teich se
encontrou com Witzel e com o
prefeito da capital, Marcelo Cri-
vella (Republicanos). Na unida-
de do Maracanã, o ministro se
reuniu por mais de uma hora
com o governador e secretá-
rios. Não falou com a imprensa.
Segundo Witzel, eles conversa-
ram sobre respiradores, que
têm sido um dos focos das críti-
cas dos Estados à União. “A con-
versa foi produtiva. O ministé-
rio est á se preparando para ad-
quirir mais respiradores e desti-
nar uma quantidade para o Rio,
em torno de 100. Isso ainda não
está certo e depende do fornece-
dor de fora do Brasil”, disse.
Antes da reunião com Witzel,
Teich se encontrou com Crivel-

la, no hospital de campanha do
Riocentro, zona oeste, e no gabi-
nete de crise da prefeitura, no
mesmo local. Fez um breve pro-
nunciamento à imprensa, no
qual afirmou que estava no Rio
para “unir as forças” municipal,
estadual e federal de saúde no
Estado. Não respondeu a per-
guntas da imprensa – como, por

exemplo, se achava que o Rio
deveria adotar fechamento to-
tal. Participaram do encontro
deputados federais e estaduais
bolsonaristas, o que simboliza a
aproximação entre Crivella e o
presidente.
Há pelo menos 442 pacientes
confirmados ou com suspeita
de covid-19 aguardando vaga

em UTI no Estado. O sistema
público de saúde opera no limi-
te há pelo menos duas semanas.
Ao mesmo tempo em que cor-
re para não ver seu sistema de
saúde entrar em colapso, tanto
o governo do Estado quanto o
da capital tentam apertar o iso-
lamento social, que vem cain-
do. Esta semana, a movimenta-

ção nos bairros de Campo Gran-
de – que apresentou grande
crescimento no número de ca-
sos e de mortes por covid-
nos últimos dias – e de Bangu
fez a prefeitura bloquear alguns
acessos. A medida será amplia-
da para outros bairros da zona
oeste e deverá chegar à zona sul
nas próximas semanas.

PANDEMIA DO CORONAVÍRUS


lMesmo sob bloqueio total, São
Luís ainda enfrenta dificuldades
para fazer o isolamento. Apesar
de o governo estadual e da prefei-
tura terem levantado cerca de 50
barreiras nas principais vias, hou-
ve quem furasse o isolamento.
Foram registrados congestiona-
mentos e pontos de aglomera-
ção. Enquanto o governador Flá-
vio Dino (PCdoB) considerou o
lockdown “um sucesso”, o juiz
Douglas de Melo Martins, que
determinou o bloqueio, ponde-
rou. “Penso que seria a hora de
começar a aplicar punições.” /
ERNESTO BATISTA

Rio tem casos em alta e bloqueio parcial


Ministro da Saúde se encontra com o governador Witzel e o prefeito Crivella, vai a hospital de campanha e não responde sobre lockdown


Giovana Girardi


Cerca de 3,3% da população do
Estado de São Paulo, 3,35% do
Rio e 10,6% do Amazonas já de-
vem ter se infectado com o no-
vo coronavírus, aponta estima-
tiva divulgada ontem pelo Gru-
po de Resposta à Covid-19 do
Imperial College de Londres.
Para São Paulo, isso representa


cerca de 1,5 milhão de pessoas.
No Rio, 582 mil; no Amazonas,
cerca de 448 mil contaminados.
A estimativa, feita para 16 Es-
tados com mais casos até o mo-
mento, é de que cerca de 4,2 mi-
lhões de pessoas já foram conta-
minadas (com margem de erro
entre 3,48 milhões e 4,7 mi-
lhões). O dado ajuda a dar uma
ideia do quanto a doença ainda

é subdimensionada no País. “Is-
so inclui uma parcela significati-
va de pessoas que nunca desen-
volvem sintoma, mas contri-
buem para a propagação da in-
fecção”, explicou ao Estado o
estatístico brasileiro Henrique
Hoeltgebaum, um dos princi-
pais autores do trabalho.
“Como sabemos que no Bra-
sil praticamente somente os ca-

sos graves são testados, era es-
perado que o número de infecta-
dos superasse bastante o de ca-
sos confirmados. Em nosso es-
tudo, avaliamos diferentes ce-
nários sob diferentes níveis de
subnotificação”, disse.
O estudo, elaborado por pes-
quisadores ingleses e brasilei-
ros, avaliou a situação do País
em relação à taxa de transmis-

são da doença – parte do núme-
ro oficial de mortes para, em re-
trospectiva, estimar a parcela
da população infectada.
Os pesquisadores afirmam
que intervenções de isolamen-
to foram capazes de derrubar
em 54% o número de reprodu-
ção do coronavírus (para quan-
tas pessoas uma contaminada é
capaz de transmitir), mas a epi-

demia ainda está ativa e crescen-
do. Segundo os autores, o núme-
ro de reprodução mais alto hoje
é observado no Pará, de 1,90.
Em São Paulo, a taxa é de 1,47.
“Apesar de medidas tomadas
até agora terem reduzido o nú-
mero de reprodução, dados su-
gerem que a epidemia continua
em aumento exponencial em to-
dos os 16 Estados analisados”,
afirmou o médico Ricardo Sch-
nekenberg, doutorando da Uni-
versidade de Oxford, que tam-
bém assina a análise.

É importante compreender
como ocorrem esses
contágios para que possamos
aprender a impedi-los

Anticoagulante reduz infecção de células por coronavírus. Pág. A15}


São Luís continua a


ter aglomerações


WILTON JUNIOR/ESTADÃO

Situação crítica. Ministro disse ter viajado ao Rio para unir as forças de saúde no Estado

Estudo estima 4,2 milhões já contaminados no Brasil


ALY SONG/REUTERS

Pesquisa. Passageiros se protegem no aeroporto de Wuhan, na China
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