O Estado de São Paulo (2020-05-09)

(Antfer) #1

%HermesFileInfo:H-1:20200509:H1 SÁBADO, 9 DE MAIO DE 2020 (^) O ESTADO DE S. PAULO
DEPOIS DE
RENASCERRENASCER
Livro narra em detalhes recuperação de jornalista após atentado na França
Daniel Fernandes
Philippe Lançon morreu em 7
de janeiro de 2015. Morreu para
renascer em seguida. A parte in-
ferior de seu rosto estraçalhada
por tiros. Onze companheiros
mortos, tombados ao seu lado.
Por todos os lados. Philippe par-
ticipava da reunião de pauta do
jornal satírico Charlie Hebdo. Na-
quela manhã, ela foi invadida
por terroristas. Eles dispararam
suas armas. Dispararam, dispara-
ram, dispararam...
O que acontece pouco antes,
durante e principalmente de-
pois serve de matéria-prima pa-
ra o jornalista escrever O Reta-
lho
, lançado no Brasil pela toda-
via. Não há nele mensagens posi-
tivas, edificantes. Se você espera
por isso, nem perca seu tempo
na livraria virtual mais próxima.
Não se sai melhor ao emergir do
mergulho profundo em suas
páginas. A reconstrução do ros-
to e da alma do senhor Lançon
fere o leitor pois lhe parece im-
possível. Mas nessa jornada há
um caminho belo. Belíssimo.
Em entrevista exclusiva ao Esta-
do
, o autor, ganhador do Femi-
na, importante prêmio literário
francês, fala sobre como vive o
momento de isolamento e ob-
serva em retrospectiva o movi-
mento #eusoucharlie, em favor
da liberdade de expressão. Por
e-mail, escreve sobre sua recupe-
ração física e mental. Fala de
Bolsonaro, mas prefere lembrar
Guimarães Rosa e Gilberto Gil.
Fala que nunca mais andou de
bicicleta. E, assim, fala de liber-
dade. “Um privilégio interior, e
que jamais adquirimos.” Confi-
ra os principais trechos da con-
versa virtual.
lUma coisa que me chama aten-
ção no Retalho é a maneira como
o senhor descreve o que eu, co-
mo leitor, considerei a vida numa
zona cinzenta, um purgatório pa-
ra quem acredita. A vida de um
paciente, como uma terceira pes-
soa entre o homem de antes do
atentado e o homem que o se-
nhor teria que ser após a recupe-
ração. Lendo o livro em meio à
pandemia, foi inevitável sentir
que todos estamos de certa for-
ma nesta mesma situação: não
somos mais o que éramos. Mas
não somos quem ainda seremos.
Ou poderemos ser. Como o se-
nhor vê esse momento pelo qual
todos passamos?
Como um momento exclusiva-
mente presente: uma experiên-
cia coletiva e individual sem fu-
turo nem passado, da qual não
percebo o “sentido”, supondo
que tenha um. Li ou reli, como
outros, romances, contos, que
evocavam epidemias do passa-
do. Às vezes, são muito belos,
podem nos fornecer um espe-
lho, mas o espelho não serve
para nada. Nós não sabemos
para onde iremos, sem dúvida
para nenhum lugar previsível,
para o bem ou para o mal, e
não temos mais Deus nem a
Providência para nos conta-
rem belas ou tristes histórias
lá em cima. Nem sequer temos
a ciência: os cientistas se en-
contram em meio a um nevoei-
ro, menos que os outros, mas,
mesmo assim, um nevoeiro.
Minha experiência de 2015 é
completamente diferente. Vivi
praticamente sozinho o que vi-
vi, estava gravemente ferido, e
os que entravam no meu quar-
to de hospital, continuamente,
não constituíam uma ameaça
viral, mas eram pessoas que
me ajudariam a sair de lá, que
nada arriscavam por minha
causa. Contrariamente à maio-
ria dos bilhões de indivíduos
hoje confinados, eu não queria
sair do confinamento. O único
ponto em comum que eu vejo
é o que mencionei no início:
por vários meses, vivi afastado
de todo e qualquer passado, e
portanto de todo futuro, como
fora do tempo. Eu estava redu-
zido ao momento presente.
lO mérito do livro é que ele não é
um livro de memórias que eu cha-
maria de ‘memórias edificantes’.
Não há nele uma mensagem posi-
tiva no sentido de todas as dificul-
dades foram superadas e que o
senhor viverá (vive) feliz para sem-
pre. Isso foi intencional?
Foi como as palavras e
ideias surgiram no pa-
pel?
Não gosto de ler livros
edificantes, com mensa-
gens, sejam eles en-
saios ou romances. As
mensagens carregam
sempre as convicções e
as mentiras dos que as
trazem. Eles poluem o
essencial: a sensação
maravilhosa e ameaça-
dora de liberdade que a
realidade dá, a infinita
complexidade da reali-
dade. A vida é experi-
mental, mas não é edifi-
cante, porque a experiência, inti-
mamente, se decompõe sem pa-
rar e não se compartilha. Escre-
vi tendo a consciência desta infi-
nitude, desta impossibilidade,
desta fuga, e foi a partir desta
consciência que tentei contar
da maneira mais precisa possí-
vel todos os estados pelos quais
passei, sem julgar nenhum.
lComo o senhor está atualmen-
te, em termos físicos e, se me
permite, psicológicos? Passando
pelo que passou, como encara a
quarentena e o coronavírus?
Fisicamente, tudo bem. Psico-
logicamente, estou cansado.
Como muitos, imagino. Gosta-
ria de poder descansar, descan-
sar sem fim, depois do que vi-
vi, mas não é possível, porque
o repouso sem fim é a morte:
ela esperará, mesmo que as in-
formações me repitam hoje
que ela está à espreita, sob a
forma viral, social e climática.
O confinamento em si não me
incomoda, por duas razões.
Por um lado, atualmente estou
no campo, em uma aldeia on-
de viver este confinamento
não muda grande coisa em rela-
ção à vida cotidiana. Aqui pode-
mos sair, a natureza es-
tá por toda parte, não
há problemas de apro-
visionamento, nada de
filas, e encontramos
pessoas muito rara-
mente, pessoas das
quais é fácil poder dis-
tanciar-se. Por outro,
minha vida sociopro-
fissional, em Paris, mu-
dou depois de minha
saída do hospital, em
2015: vejo pouco o
mundo, trabalho em
casa, administro o
meu tempo como que-
ro e como posso. Em
suma, depois de 2015,
tenho uma vida muito próxi-
ma do confinamento.
lNa França, todos ainda são
Charlie Hebdo atualmente?
O reflexo de #eusoucharlie já
me parece distante. E isso não
data da aparição do vírus! Há
muito tempo que uma parte
da esquerda se afastou do “es-
pírito de 11 de janeiro” de 2015,
o dia da grande manifestação,
que foi antes de tudo uma ma-
nifestação em favor da liberda-
de de expressão, do humor,
em um país onde a religião, to-
da religião, é considerada por
muitos o ópio do povo. Charlie
Hebdo
tornou-se uma peque-
na revista satírica que poucas
pessoas leem e que muitas
gostam de detestar ou despre-
zam sem ler, achando-a racis-
ta, o que é estúpido, ou de
mau gosto, e recorrente. Já
faz anos que Charlie está supe-
rado por seu destino nacional
e internacional.
lO que o senhor sabe sobre a
realidade do Brasil e sobre o nos-
so presidente, Jair Bolsonaro,
que, quando questionado a res-
peito das mortes por covid-19,
respondeu aos jornalistas: “E
daí? Lamento. Quer que eu faça o
quê? Eu sou Messias, mas não
faço milagre”.
Sinto-me incapaz de julgar a vi-
da política de um país que nun-
ca visitei. Para mim, o Brasil é
um território imaginário liga-
do às músicas de João Gilberto
e de Gilberto Gil, que ouvi mui-
to, mas também aos textos de
Blaise Cendrars, de Georges
Bernanos, de Claude Lévi-
Strauss, aos romances de Gui-
marães Rosa e de Jorge Ama-
do. Na minha geração, lia-se
frequentemente Bahia de To-
dos os Santos
, por exemplo. En-
tão, que dizer deste Bolsona-
ro? A mesma coisa que pode-
mos dizer de Trump e de al-
guns outros brutos e ruidosos
perversos. Se suspendermos
por um instante o ponto de vis-
ta moral, parece-me que eles
cumprem uma função sinistra,
mas mesmo assim uma fun-
ção: eles exprimem o monte
de lixo mais ou menos volumo-
so que cada um de nós, uma
hora ou outra de sua jornada,
de sua vida, tem na cabeça.
São uns xamãs de degradação.
Evidentemente é lamentável
para os povos que os escolhe-
ram e, na medida em que neste
planeta somos terrivelmente
dependentes uns dos outros,
para o mundo todo; mas é com-
preensível, e interessante.
lAinda há resquício de tratamen-
to dos efeitos do atentado? O que
ainda resta do paciente, da rotina
do paciente, das cirurgias? E co-
mo o senhor sente tudo isso
atualmente? Como está a alma
da vítima do atentado?
Continuo fazendo exercícios
com a boca duas vezes ao dia,
durante uns trinta minutos, e
ir até minha fisioterapeuta
duas vezes por semana. Evi-
dentemente, desde o início do
confinamento, não a vejo
mais, mas fazemos de tempos
em tempos “sessões em ví-
deo”, para ela verificar o meu
progresso, meu lábio inferior,
os movimentos do maxilar, e
mudar eventualmente os exer-
cícios. Por outro lado, uma no-
va prótese mandibular está
pronta no hospital aonde vou
regularmente para algumas mo-
dificações, pequenas interven-
ções. Eu a colocaria quando
chegou o confinamento. Tudo
foi adiado para não se sabe
quando.
lEm tempos de reclusão força-
da, em que o contato físico é mui-
to reduzido, uma pergunta piegas
não me escapa: o que é liberdade
nos dias de hoje?
Um privilégio interior, e que ja-
mais adquirimos.
lPara encerrar: como está a bici-
cleta que o senhor usava no dia
do atentado?
Nunca mais havia saído do lu-
gar onde eu a pendurei, na fren-
te do Charlie Hebdo , e desapare-
ceu. Ou foi rebocada pela pre-
feitura, ou foi roubada. Desde
aquela época, nunca mais pe-
guei uma bicicleta. / TRADUÇÃO
DE ANNA CAPOVILLA E RENATO
PRELORENTZOU


NA


Caderno 2


Disco novo da banda Car Seat Headrest PÁG. H8


Philippe Lançon, jornalista e escritor

Entrevista*


QUARENTENA


Jornalismo. Escritor
colabora com o satírico
‘Charlie Hebdo’

ANDRE CHUNG/ THE WASHINGTON POST

CARLOS CRUZ

O RETALHO
Aut.: Philippe
Lançon
Trad.: Julia da
Rosa Simões
Editora: toda-
via (461 págs.,
R$ 79,90)
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