O Estado de São Paulo (2020-05-09)

(Antfer) #1

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H8 Especial SÁBADO, 9 DE MAIO DE 2020 O ESTADO DE S. PAULO


Caderno 2


Sérgio Augusto


MUDANÇAS


‘Making a Door Less Open’ vê a banda millenial e


roqueira experimentar ferramentas da eletrônica


IMPULSIONAM DISCO DO


CAR SEAT HEADREST


l]


Guilherme Sobota


Quatro anos depois que Teens of
Denial
, disco da banda america-
na Car Seat Headrest, cravou o
grupo de nome estranho no ce-
nário do indie rock global, está
disponível agora um novo traba-
lho inédito: Making a Door Less
Open
, lançado agora em maio,
transporta a banda para novos
caminhos, investidos de cama-
das eletrônicas e surpreenden-
tes, do tipo que causam estra-
nhamento, reclamações e in-
compreensão, mas numa clara
tentativa de expandir seus pró-
prios horizontes. Movimento
típico dos grandes artistas.
Em 2016, o Car Seat lançou
seu primeiro disco inédito com
uma gravadora, a Matador (u-
ma das principais casas dos in-
dies americanos), e ocupou o to-
po de diversas listas de melho-
res do ano com um som lo-fi (co-
mo se fosse de baixa qualidade,
obtido com métodos de grava-
ção e produção típicos do gêne-
ro) e letras densas que capta-
vam como ninguém o Zeitgeist
da época. O disco se tornou
uma espécie de estandarte in-
die dos cada vez mais raros mil-
lenials roqueiros. O nome estra-
nho da banda é uma referência
ao assento do carro em que Will
Toledo, vocalista e compositor,
se sentava para buscar inspira-
ção para suas criações. Mas ain-
da antes disso, desde 2010, o jo-
vem músico (hoje com 27 anos)
já divulgava em plataformas on-
line uma produção profícua dis-
tribuída em uma dúzia de dis-
cos que foram construindo seu
estilo e lhe rendendo reputa-
ção, principalmente nos fóruns
especializados na web.
Dois anos depois, em 2018, a
banda lançou Twin Fantasy (Fa-
ce to Face)
, remake de um álbum
de 2011, que novamente ganhou
elogio crítico e de público.
Making a Door Less Open , en-
tretanto, é o primeiro trabalho
inédito depois do sucesso de Te-
ens of Denial
, e o novo álbum é
uma clara opção do grupo por
explorar caminhos diferentes,
agora, de maneira surpreenden-
te, ligados ao EDM (Eletronic
Dance Music).
A associação é estranha por-
que o EDM e o Car Seat Hea-
drest ocupam dois mundos dife-
rentes na galáxia da música,
mas o desafio a que a banda se
propõe é justamente se apro-
priar das texturas desse subgê-
nero da música eletrônica deri-
vado do house, frequentemen-
te criticado por servir a um úni-
co propósito: o de ser extrema-
mente popular a qualquer cus-
to, um produto de fácil diges-
tão, digamos assim.
A aproximação da banda com
o EDM começou com Andrew
Katz, o também muito jovem ba-
terista do grupo, que viu sua pre-


sença crescer a ponto de formar
com Toledo um projeto parale-
lo de música eletrônica, o 1Trait


  • espécie de comediante ama-
    dor, além de talentoso percus-
    sionista, Katz traz o elemento
    do humor para todas suas em-
    preitadas, basta checar o Insta-
    gram do grupo.
    Mas em
    Making a Door
    Less Open
    (em
    que Katz divide a
    produção com
    Toledo) o grupo
    retoma os temas
    sérios pelo qual
    ficou conhecido entre 2015 e
    2016, acrescentando novos pen-
    samentos que chegam com a
    idade (mesmo que pouca): co-
    mo lidar com seu próprio corpo
    no mundo, ansiedade, certo sen-
    so de deslocamento permanen-


te, certo otimismo. As letras me-
trificadas que buscavam se en-
caixar na tradição de Bob Dylan
aqui, porém, dão lugar às explo-
rações musicais e formais que
procuram se expressar manipu-
lando, justamente, aquela for-
ma comercial do EDM.
“Para mim”, ex-
plica Will Toledo
por ligação de
Whatsapp, confi-
nado em Seattle,
“se arriscar é parte
de cada disco”.
“Ainda é uma
ideia estranha se
dirigir a uma audiência, de qual-
quer tamanho, sempre tentei fa-
zer música que me agradasse co-
mo ouvinte. Todo artista que eu
respeito faz coisas diferentes e ofe-
rece o novo a cada trabalho, e nes-
se momento é o que aparece para

mim como uma necessidade”.
Para o compositor e letrista –
cuja ideia de colocar uma másca-
ra na face para o material de di-
vulgação parece agora algo tris-
temente datado – esse é um dis-
co sobre amadurecimento.
“Em termos de como isso afeta
a música em si, penso que tento
apenas aprender mais dia a dia.
Focar no que estou fazendo. Es-
pero que isso não tenha nada a
ver com ficar melhor.”
Mesmo operando com ou-
tras ferramentas (as guitarras
pesam bem menos do que em
Teens of Denial ), o disco carrega
um tom ao mesmo tempo céti-
co e otimista que já aparecia nos
trabalhos anteriores. “Não esta-
va otimista sobre as circunstân-
cias gerais, os anos Trump não
foram bons, mas eu estava oti-
mista sobre a música em si, ela

nunca me pareceu ruim, sem-
pre gostei das ideias que apare-
ceram”, esclarece Toledo. “O ál-
bum reflete o jeito que o mundo
era antes desse ano. É uma cáp-
sula do tempo, como a música
pode ser.”
A crítica de língua inglesa re-
cebeu o disco com incrível má
vontade. No Guardian , a mudan-
ça de rumo foi comparada àque-
la tomada por Paramore e Ta-
me Impala (como se a mistura
de rock e eletrônica tivesse sido
inventada em 2011). A Pitchfork
diz que Toledo traiu seu pró-
prio mantra de “se comprome-
ter completamente” a um proje-
to. A Paste Magazine aponta que
esse é o primeiro erro da carrei-
ra de um dos “compositores
mais talentosos” do indie rock.
O célebre crítico e youtuber e
comentador notável dos traba-
lhos anteriores da banda, An-
thony Fantano, deu uma nota 5
para o disco e execrou uma das
faixas, Hollywood.
Na canção, Katz assume tam-
bém os vocais para dizer numa
espécie de grito modulado em
computador: “Hollywood me
faz querer vomitar”. Tudo isso
envolto por uma sonoridade
punk sem medo de soar datada,
segundo Toledo. “Apenas de-
pende de como as pessoas fa-
zem ( esse tipo de som ). Hoje em
dia, também em outras bandas,
é mais sobre a energia do que
sobre o jeito de se vestir, por
exemplo. As ferramentas no es-
túdio estão mais desenvolvidas

e acessíveis agora, e se o músico
não se importar com isso pode
soar datado, sim. Mas eu vejo
esse disco com uma ‘energia
punk’, que tenta encontrar vo-
zes e conexões imediatas, e elas
são apresentadas em diferentes
formatos.” Evitando lugares-co-
muns de colegas de geração me-
nos talentosos, Toledo procura
dar importância à história do
rock ‘n’ roll, gênero que sempre
lhe serviu de ponto de partida.
“Eu me importo sim, do jeito
que me importo com qualquer
história. Quanto mais se sabe
sobre o passado, melhor se en-
tende o lugar que você ocupa.”
No mínimo, Making a Door
Less Open abre um interessante
caminho de exploração para
um jovem artista que já não pre-
cisa provar seu valor. Em seus
melhores momentos, o álbum
tem uma visão atenta para o pas-
sado, amplamente calcada no
presente, e buscando, enfim, en-
xergar o que pode ser o futuro.

ESCREVE AOS SÁBADOS

CAR SEAT HEADREST

M


uita gente se fez essa per-
gunta às primeiras irrup-
ções dos black blocs nas ma-
nifestações de rua de alguns anos
atrás, embora sem aquele tom pra-
zenteiro com que há mais tempo os
turistas estrangeiros indagam aos ca-
riocas onde é que aquelas mulatas es-
culturais das escolas de samba se es-
condem antes e depois do carnaval.
Muita gente agora repete a per-
gunta quando os militantes bolsomi-
nions saem às ruas, fantasiados de
verde e amarelo, para mais uma mar-
cha da insensatez e do orgulho nazi-
fascista.
Os black blocs nada tinham ou
têm a ver com os squadistri do duce
brasiliense, esses belicosos gigolôs
do patriotismo e do farisaísmo evan-
gélico que nos fins de semana pres-
sionam pelo fim da democracia e pro-
metem deflagrar uma guerra civil,
uns até já metidos em uniformes de
campanha, como se viu num vídeo
grotesco e criminoso veiculado nas
redes sociais quarta-feira à noite.
Os black blocs – inesperados, in-
controláveis e apenas visíveis no

breve momento da baderna – vandali-
zavam símbolos materiais do capitalis-
mo selvagem, atacavam vitrines de bu-
tiques, caixas eletrônicos, carros de lu-
xo, jogavam pedras e outros objetos à
mão; mas não agrediam pessoas física
ou verbalmente; não faziam ameaças
nem incitavam a intervenção de ou-
tras forças além das suas próprias, que
nunca botaram para quebrar exigindo
o fechamento do Congresso e do STJ, a
reedição do AI-5 e o que mais pudesse
resultar de um putsch militar.
De que trevas afinal vieram essas cria-
turas que se enrolam no pavilhão nacio-
nal e, destilando ódio e ostentando uma
ferocidade homicida, agridem jornalis-
tas e até enfermeiras, reverberando de-
sejos trogloditas que ressentimentos in-
cubaram, a ignorância exacerbou e o in-
sano, narcisista e messiânico capitão-
presidente não se cansa de insuflar?
Meu palpite é que saíram de lugar
nada recomendável, onde, no mínimo,
reina a escuridão. Como os Morlocks.
Taí um nome que lhes cai bem. Tem
mais pedigree que os black blocs. In-
ventou-o o britânico H.G. Wells, no ro-
mance A Máquina do Tempo , a mais lida

aventura sobre engenhocas que nos le-
vam ao passado e ao futuro. Zumbis
antropoides, que se homiziaram debai-
xo da Terra após uma guerra nuclear
que quase destruiu o planeta, os mor-
locks viviam aterrorizando os Elois, os
habitantes da superfície terrestre. As
duas adaptações do livro ao cinema res-
peitaram sua configuração original:
medonhas criaturas de aspecto simies-
co (Darwin explica), inteiramente ce-
gas (Platão explica) e canibalescas – os
vilões da história.
Cinco décadas atrás, os quadrinhos
dos X-Men os reciclaram como mutan-

tes proscritos da sociedade por precon-
ceitos físicos e raciais, que sobrevi-
viam nos subterrâneos de Manhattan,
em abandonados abrigos antiatômi-
cos, grandes tubulações de ar refrigera-
do e esgotos ainda mais carregados de
simbolismo. Ganharam outro status
sociopolítico no auge da luta pelos Di-
reitos Civis nos EUA, bem mais expres-
sivo do que lhes dera Wells, ao parago-
ná-los, superficialmente, com a classe
operária da Inglaterra vitoriana.
Nossos morlocks assemelham-se

aos que nos aterrorizaram no romance
e na tela: cegas e desatinadas criaturas
incapazes de ver a luz.
*
Durante a ditadura militar, sempre
que morria um grande artista reprimi-
do pelo regime, alguém espanava o bor-
dão “assassinato cultural” e o devolvia
à prateleira da retórica elegíaca. Às ve-
zes era mais uma hipérbole do que
uma acusação fundamentada, um desa-
bafo inflamado pela dor da perda e a
certeza de que o autoritarismo tam-
bém destrói vidas por vias tortas.
Esta semana caiu na conta do gover-
no Bolsonaro um binômio fadado a
prosperar, “suicídio cultural”. Na car-
ta em que justificou seu gesto extre-
mo, o ator Flávio Migliaccio deixou cla-
ro que já não aguentava mais ser velho
no Boçalnistão.
“Não deu mais”, desabafou. E pros-
seguiu: “A velhice neste país é o caos
como tudo agora”. Migliaccio, que na
juventude enfrentou com destemor,
tenacidade e arte a ditadura cultuada
pelos morlocks, no inverno do seu des-
contentamento, capitulou. “Eu tive a
impressão que foram 85 anos jogados
fora num país como este. E com este
tipo de gente que acabei encontran-
do”, arrematou.
Como bem notou a jornalista Cynara
Menezes, em sua página na internet, Mi-

gliaccio não escreveu uma carta de
suicida, mas “um protesto, um ape-
lo, uma súplica”. Mais: “um docu-
mento histórico dos tempos atuais”.
Cynara foi quem melhor abordou,
nas mídias sociais, a polêmica que se
armou em torno da divulgação da car-
ta, por alguns vista como uma inva-
são (ou evasão) de privacidade. Não
confere: o ator a deixou na cabeceira
da cama, para que todos a lessem.
Manifesto não se engaveta. O
“caos” da velhice a que Migliaccio
se refere é uma clara alusão à refor-
ma da Previdência e ao contumaz
desprezo dos atuais governantes pe-
los idosos, tidos como vítimas inevi-
tavelmente preferenciais da covid-
19 (uma doença que “só mata ve-
lho”) e pacientes a sempre serem
preteridos por um jovem quando
houver apenas um leito com respira-
dor disponível.
Imagine-se na emergência de um
hospital, com apenas um leito dispo-
nível e dois candidatos: Aldir Blanc,
73 anos, e um garotão qualquer, que
não estuda, não trabalha, um inútil.
A escolha esperada não é a de Sofia e
merecia ser batizada com o nome do
ministro da Saúde que a recomen-
dou. Mas para que preservar a vida
de um garotão, se ao que tudo indica,
seu futuro é uma miragem dantesca?

CARLOS CRUZ

‘TODO ARTISTA QUE
RESPEITO FAZ

COISAS DIFERENTES
A CADA TRABALHO’

Máscara.
Decisão
tomada antes
da pandemia

De que trevas afinal vieram essas
criaturas destilando ódio e
ostentando ferocidade homicida?

MAKING A DOOR LESS OPEN
MATADOR RECORDS

Os morlocks

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