O Estado de São Paulo (2020-05-10)

(Antfer) #1

%HermesFileInfo:A-13:20200510:
O ESTADO DE S. PAULO DOMINGO, 10 DE MAIO DE 2020 Metrópole A


Giovana Girardi


Com cerca de 4 milhões de ca-
sos confirmados de infecção
pelo novo coronavírus no
mundo e mais de 276 mil mor-
tos, a corrida para o desenvol-
vimento de uma vacina tem
se intensificado. Já são mais
de cem candidatas sendo tes-
tadas em vários países, de
acordo com o último balanço
da Organização Mundial de
Saúde (OMS), divulgado na
terça. E oito delas entraram
na etapa de ensaios clínicos –
que envolvem humanos.

Tradicionalmente, vacinas le-
vam em média dez anos para se-
rem produzidas – a mais rápida
foi a da caxumba, que deman-
dou quatro anos (e isso foi nos
anos 1960). Mas o desenvolvi-
mento de novas tecnologias ace-
lerou o processo, e a expectativa
atual é que se tenha um produto
no ano que vem. Na semana pas-
sada, o otimismo cresceu com o
anúncio de resultados de uma va-
cina em desenvolvimento na
Universidade de Oxford. Ela é
uma das que está em teste clíni-
co e se estimou que pode estar
pronta até o fim deste ano.
Os cientistas do Instituto Jen-
ner, em Oxford, estão alguns pas-
sos à frente na corrida por usa-
rem como ponto de partida uma
pesquisa anterior de vacina para
outro coronavírus, o causador
da Mers, doença respiratória da
mesma família da covid-19 que
atingiu especialmente o Oriente
Médio a partir de 2012.
Logo que o Sars-CoV-2 surgiu
na China, no fim do ano passa-


do, os pesquisadores de Oxford
aproveitaram a plataforma que
eles tinham criado para a Mers
para testá-la em macacos rhesus
e os resultados foram muito pro-
missores. Com uma dose da vaci-
na, conseguiram imunizar 18 ani-
mais. O resultado foi publicado
no dia 1.º na Science Advances.
Para fazer esta vacina, usou-se
como vetor um adenovírus (que
causa resfriado comum) inati-
vo, no qual se introduziu uma
proteína do Mers-CoV, capaz de
fazer o corpo produzir anticor-
pos contra o vírus. Agora, cientis-
tas usaram a mesma plataforma,
mas com uma proteína do Sars-
CoV-2. Como eles já haviam pro-
vado anteriormente que ela era
segura para humanos (a primei-
ra etapa dos ensaios clínicos –
veja quadro ao lado ), foi possível
saltar para a segunda etapa, de
eficácia. Eles juntaram as duas
fases em uma só e, agora, pre-
veem começar testes em 6 mil
pessoas até o fim do mês.
É como se o vírus “imitasse” o
outro para induzir o sistema
imune a reagir ao vírus verdadei-
ro quando há contaminação.

Estratégias. Vacinas clássicas
usam uma versão atenuada do
vírus que se quer combater para
desencadear a resposta imuno-
lógica. Mas, na corrida para com-
bater a covid-19, novas tecnolo-
gias estão em teste na expectati-
va de serem mais seguras e efica-
zes contra a pandemia.
Uma das estratégias é usar o
RNA mensageiro (RNAm) do ví-
rus, a molécula que “lê” as infor-
mações genéticas e comanda a

produção de proteínas. Aqui va-
le a mesma premissa anterior –
de que possa induzir o sistema
imunológico a agir quando o
próprio vírus resolver atacar.
Duas das oito vacinas em fase
clínica – da Moderna e da Pfizer


  • usam esse modelo.
    Como não é necessário mani-
    pular diretamente o vírus – o
    que demanda o uso de laborató-
    rios de alta segurança –, o traba-
    lho fica mais rápido e fácil. O
    porém é que ainda não existe


nenhuma vacina já em uso no
mundo com essa formulação.
Algumas estratégias que já es-
tão na etapa clínica, porém, ain-
da se baseiam em versões inati-
vas do vírus (mais seguras que as
atenuadas). É o caso da propos-
ta da chinesa Sinovac, que tam-
bém se mostrou efetiva em rhe-
sus. Foram testadas duas doses.
Animais vacinados com a mais
alta, que tiveram o Sars-Cov-
introduzido em seus pulmões, ti-
veram a melhor resposta e não
desenvolveram a doença.
“As primeiras vacinas que fi-
carão prontas não necessaria-
mente serão as melhores. Serão
só as primeiras. Pode ser que
elas só consigam conferir 30%
de proteção. O que já ajuda a
aumentar um pouco de imuni-
dade e diminuir a circulação da
doença”, afirma a bióloga Natá-
lia Pasternak, do Instituto de
Ciências Biomédicas da USP,
que pretende entrar na corrida.
“Mas ainda será necessário con-
tinuar pesquisando para chegar
a melhor vacina possível, por-
que essa é uma doença que veio
para ficar”, diz.
“É importante testar várias
estratégias porque ainda não sa-
bemos quais vão funcionar e
não podemos apostar as fichas
em uma só”, complementa o
imunologista Ricardo Gazzinel-
li, que coordena uma linha de
pesquisa no Brasil – parceria da
Fiocruz com UFMG e Butantã
–, que tenta fazer uma vacina
contra o Sars-CoV-2 usando co-
mo vetor um influenza atenua-
do. “A vantagem é que esse é o
vírus hoje usado nas vacinas
contra o H1N1. Já foi testado em
milhões de pessoas, então te-
mos confiança de que é segu-
ro”, diz. “E temos fábricas já no
Brasil que fabricam a vacina
contra a influenza em grande
quantidade. Poderiam fazer is-
so para o coronavírus se essa es-
tratégia der certo”, explica.
Essa é uma preocupação em
todo o mundo. Mesmo antes de
ter uma vacina pronta, empre-
sas e governos já se antecipam
para ter formas de produzir bi-
lhões de doses para atender a
população. A Moderna, por
exemplo, já fez uma parceria
com a Johnson & Johnson, e a
farmacêutica AstraZeneca está
trabalhando com os pesquisa-
dores de Oxford.

Imunizantes costumam levar dez anos para serem produzidos,


mas tecnologias aceleraram o processo e há expectativa para 2021


PANDEMIA DO CORONAVÍRUS Mães que cuidam de todos na pandemia. Pág. A14 }


Corrida por vacina


tem 100 candidatas,


8 mais adiantadas


Identificação

COMO SE FAZ UMA VACINA

O coronavírus
tem esse nome
porque possui
"espinhos" como
uma coroa

Uma vez
conectadoà
célula humana
ele se reproduz

Espinhos são
possíveis alvos
da vacina

RECEPTOR
ECA 2

ANTÍGENO

FRAGMENTOS
DO VÍRUS ANTICORPO

GENOMA
DO VÍRUS

CÉLULA
HUMANA

●Vacinas precisam de muitos estágios de desenvolvimento.
Desde a criação, passando por testes em animais e humanos,
até a aprovação por orgãos reguladores e a fabricação

1
A primeira coisa a fazer
é identificar o agente
causador da doença. No
caso o coronavírus

(^2) Fragmentação
(^3) Testes
(^4) Testes em humanos
(^5) Fabricação
Pequenos grupos de
voluntários sadios
Fase 1
Centenas de voluntários
escolhidos de forma
aleatória, incluíndo
alguns pertencentes a
grupos de risco
Produção em larga escala,
controle de qualidade e
acompanhamento para detectar
possíveis efeitos adversos
Testa a
eficácia
da vacina
Fase 2
Milhares
de testes
Para avaliar
a eficácia em
condições
naturais de
presença da
doença
Fase 3
O vírus usa os espinhos para
se conectar ao receptor ECA
2 das células humanas
Avalia a segurança
e eficácia em gerar
respostas do
sistema imunitário
Se obtiver sucesso a vacina é submetida às
autoridades regulatórias
INFOGRÁFICO/ESTADÃO
Fase exploratória ou laboratorial: Fase inicial ainda restrita aos
laboratórios. Momento em que são avaliadas até milhares de
moléculas para se definir a melhor composição da vacina
Fase pré-clínica ou não clínica: Após a definição dos melhores
componentes para a vacina, são realizados testes em animais
para comprovação dos dados obtidos em experimentações in
vitro. Também é checada a segurança do produto, em geral em
primatas não-humanos
MACACO RHESUS
OS TESTES PODEM SER INICIADOS
EM CAMUNDONGOS TRANSGÊNICOS
QUE CARREGAM O RECEPTOR ECA 2
Há várias estratégias sendo
testadas. A vacina pode usar o vírus
atenuado ou inativo ou um gene dele
inserido em outro vírus, entre
outras, para produzir antígenos que
irão estimular o corpo a produzir
anticorpos contra a doença e evitar
sua ligação com a enzima ECA 2
Há mais de cem
candidatas a vacina
contra o coronavírus
sendo investigadas em
todo o mundo
Apenas 8 delas já
entraram em ensaios
clínicos em humanos (de
fase 1, de segurança, e 2,
de eficácia)
Teste em Bangcoc. Empresas e governos já discutem formas de produzir bilhões de doses
Pesquisadores brasileiros que
procuram atualmente um imu-
nizante para o novo coronaví-
rus comentam que, se pesqui-
sas anteriores com outros coro-
navírus (como Sars e Mers) ti-
vessem avançado, talvez hoje a
busca por uma vacina ou um tra-
tamento para a covid-19 estives-
se mais avançada.
A vacina de Oxford é um
exemplo disso que deu certo,
mas muitas outras acabaram
sendo paralisadas. “Foram ví-
rus negligenciados, apesar do
potencial pandêmico que eles
demonstraram em 2002 e 2012.
Se tivéssemos entendido esses
vírus melhor, talvez estivésse-
mos mais adiantados agora”,
afirma o virologista Thiago Mo-
reno, da Fiocruz, que investiga
o reposicionamento de drogas
que têm outros usos para a co-
vid-19. Como essas doenças aca-
baram contidas antes de se espa-
lharem pelo planeta, as pesqui-
sas foram interrompidas, o que
se mostrou um erro. Já há al-
gum tempo a ciência esperava o
surgimento de um vírus que to-
maria uma proporção pandêmi-
ca. E aconteceu. “Mas deixou-
se de investir na ciência básica
que poderia ter nos deixado
mais bem preparados”, diz.
Mesmo com o avanço da co-
vi-19, a ciência mais explorató-
ria vem sendo prejudicada. Cha-
mou a atenção no fim de abril o
fim de um financiamento dos
Institutos Nacionais de Saúde
dos EUA (NIH) para investigar
novos coronavírus em morce-
gos – provável origem do Sars-
Cov-2. O trabalho, que era con-
duzido em Wuhan (China), foi
terminado por suspeitas infun-
dadas de que o vírus teria esca-
pado do laboratório.
“Hoje sabemos que é o spike
( aquelas pontinhas na coroa ) que
tem de ser neutralizado no
Sars-CoV-2 por causa dos estu-
dos com Sars, mas poderíamos
saber mais”, afirma Ricardo
Gazzinelli, coordenador do Ins-
tituto Nacional de Ciência e
Tecnologia em Vacinas e pes-
quisador da Fiocruz e da
UFMG. Ele coordena um dos
dois projetos de vacina contra o
coronavírus no Brasil. / G.G.
Exposição de
voluntários ainda
envolve debate ético

Negligência sobre os coronavírus
anteriores também atrasa pesquisa
lUm dos desafios do desenvolvi-
mento de vacinas é que, quando
um produto enfim chega aos en-
saios clínicos, é preciso contar
com o tempo. Em geral, para sa-
ber se a vacina é efetiva, é preci-
so esperar que os voluntários
entrem em contato com o vírus
naturalmente, o que leva tempo.
Com a emergência da covid-
19, pesquisadores têm discutido
se essa regra deveria mudar pa-
ra permitir que os voluntários
fossem deliberadamente expos-
tos ao vírus após tomarem a vaci-
na, o que aceleraria o processo,
apesar de colocar as pessoas em
risco. O chamado teste de desa-
fio humano foi tema de um artigo
na semana passada na Science ,
que traz sugestões para torná-lo
eticamente aceitável. / G.G
RUNGROJ YONGRIT/EFE
Investigação da Sars
ajudou em trabalhos
atuais, mas muito parou
quando aquela doença
foi contida mundialmente

Free download pdf