O Estado de São Paulo (2020-05-10)

(Antfer) #1

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O ESTADO DE S. PAULO DOMINGO, 10 DE MAIO DE 2020 Especial H3


Leandro Karnal


Gilberto Amendola


Você se lembra de como foi a últi-
ma vez em que foi a um bar? Lem-
bra-se dos amigos, dos abraços e
de todo o clima? Se a resposta for
“sim”, guarde essa recordação
com carinho. É que daqui pra
frente, nada será como antes. Ao
menos até o surgimento de uma
vacina ou de outra solução defi-
nitiva para a Covid-19, frequen-
tar um bar será uma experiência
completamente diferente.
Desde meados de março, os ba-
res de São Paulo tiveram que bai-
xar suas portas. A natureza da
propagação do coronavírus in-
viabilizou um tipo de negócio
que depende, basicamente, de
sociabilização e da proximidade
entre as pessoas. Foi neste con-
texto que a reportagem ouviu do-
nos de estabelecimentos, espe-
cialistas da área e bartenders pa-
ra tentar imaginar como será o
novo normal quando os bares po-
derem voltar à ativa.
Nada será muito fácil. Ne-
nhum caminho será simples.
Existem projeções de que algo
entre 30% ou 50% dos bares não
conseguirão sobreviver à crise.
Ainda assim, algumas ações de-
vem ser protocolares e são prati-
camente unânimes no setor -
principalmente aquelas envol-
vendo o distanciamento de me-
sas e cadeiras, uso de máscaras
por funcionários, higienização
mais cuidadosa de todo o mate-
rial, menus digitais e controle de
lotação (que deve diminuir sen-
sivelmente). “Devemos traba-
lhar com 50%, 30% da nossa ca-
pacidade de espaço, garçons vão
passar a usar máscaras, os vasos
de flor serão substituídos por vi-
dros de álcool em gel, a música
deve ser mais baixa para que nin-
guém precise chegar muito per-
to para conversar”, enumera
Marcelo Serrano, sócio-proprie-
tário do Venuto Bar.
Jean Ponce, sócio-proprietá-
rio do Guarita Bar, segue a mes-
ma linha de raciocínio. “Quan-
do reabrimos será com novos
conceitos. Estamos nos reestru-
turando pelos próximos dois
anos. Haverá, claro, menos luga-
res. Por isso, as pessoas deixa-
rão de ser simplesmente clien-
tes para se transformarem em
algo mais íntimo”, disse. De for-
ma geral, Ponce acredita que os
bares do futuro próximo vão
atender pessoas mais curiosas e
preocupadas com aquilo que es-
tão consumindo. “Todo fre-
quentador vai querer conhecer
o que está consumindo e saber
como os ingredientes estão sen-
do manuseados. Isso pode ser
legal para quem tem balcão e po-
de proporcionar essa experiên-


cia. Também serão redobrados
os cuidados com os funcioná-
rios. Era muito comum que um
funcionário gripado fosse traba-
lhar. Agora, o dono do bar vai
precisar deixar esse funcioná-
rio em casa, terá que ter maior
cuidado”, completou.
O mixologista Thiago Nego
dos Santos, da Kerry do Brasil
(empresa do setor de taste & nu-
trition na indústria de alimen-
tos e bebidas), tem se debruça-
do sobre a realidade dos bares -
dos botecos mais simples aos es-
paços da mais alta coquetelaria.
“A questão é repensar os costu-
mes e tentar entender como os
bares irão manter seu fatura-
mento nesse contexto”, disse.
Santos afirmou que algumas so-
luções já estão sendo discuti-
das, como a substituição dos tra-
dicionais balcões por mesas
mais altas que possibilitem a vi-
sualização do bar; o uso de QR
Code no celular para leitura de
cardápio e utilização de realida-

de aumentada (para visualizar
um coquetel, por exemplo), di-
versificação de menu para esti-
mular outro tipo de consumo
que não só o álcool, copos des-
cartáveis, equipamentos e insu-
mos com menos manipulação e
etc. “Precisamos levar em con-
ta até o tempo que esse cliente
vai ficar no bar. As pessoas irão
ficar menos tempo no bar. Será
preciso oferecer novas e segu-
ras experiências”, completa.
Sobre o novo papel do bar,
Márcio Silva, bartender e sócio
do Guilhotina Bar, diz que “para
certas comunidades, o bar é vis-
to como o vilão” (em razão do
barulho, do consumo de álcool).
“Não tem manual de sobrevivên-
cia de negócio, mas acredito que
muitos bares podem sobreviver
na sombra de restaurantes. Não
acredito em reinvenção, acredi-
to em adaptação”, concluiu.
A arquitetura do bar também
pode ser um diferencial para
uma melhor performance no pe-

ríodo de retomada. “Quem ti-
ver uma área externa vai se dar
melhor. Os clientes não vão que-
rer se enfiar em um ambiente
super fechado. Portas e janelas
para a retirada de produtos tam-
bém serão valorizadas", comen-
tou Marcelo Sant'Iago, publici-
tário e editor do site especializa-
do em coquetelaria e bebidas
Difford's Guide Brasil. "Os co-
quetéis engarrafados e o deli-
very, embora não sirvam para
bancar a operação de um bar,
também devem marcar presen-
ça durante todo o processo de
retomada", completou.
Segundo Edgard Costa, sócio
da Companhia Tradicional de
Comércio, que tem casas como
Astor, Subastor, Pirajá e outras,
o grupo já está trabalhando em
protocolos para retomada dos
negócios. “Estamos simulando a
jornada dos clientes, desde o mo-
mento da chegada até a hora em
que ele vai embora. Estamos pen-
sando alternativas para minimi-

zar os contatos físicos. A entrada
e a saída podem ser feitas por lo-
cais diferentes, o cardápio pode
já estar na mesa, limpo e higieni-
zado, os pedidos podem ser fei-
tos pelo WhatsApp para o gar-
çom”.
Os donos de bares discutem
como algumas normas e leis po-
deriam ser flexibilizadas nesse
período para facilitar o processo
de retomada dos bares. Para
Humberto Munhoz, sócio da
Turn The Table Brasil, grupo
que gerencia casas como o Pas-
quim e o Vero! Coquetelaria, a
questão de manter mesas na cal-
çada à noite deve ser levada em
consideração. “Deveria existir
uma flexibilização, principal-
mente nos bairros mais boê-
mios. Se precisamos ter menos
mesas no ambien-
te interno, mas a
partir de certo ho-
rário preciso relo-
car quem está na
calçada, cria-se
uma situação in-
solúvel.”
Não é difícil en-
contrar dono de bares receosos
quando a duração da quarentena
e possíveis novas medidas de res-
trição. André Arone, do Cava
Bar, por exemplo, estuda formas
de manutenção do negócio. “Va-
mos formatar o bar para receber
um público reduzido, mas se a
crise demorar mais meses, va-
mos ter que pensar em outras
ações”, disse.
Para o mixologista e editor do
site Mixology News, Marco de
La Roche, os bares que conse-
guirem proporcionar atendi-
mento domiciliar podem sair

na frente. “Profissionais, que te-
nham testado negativo para o
Covid-19, podem ir para a casa
do cliente e atuar como barten-
der para pequenos grupos - le-
vando a experiência de bares re-
nomados para dentro da casa
da pessoa. Os bares podem fe-
char pacotes específicos, com
drinques escolhidos e petis-
cos”, afirmou.
Santos imagina o aprimora-
mento da experiência de beber
em casa, com combos para prepa-
ro, um setlist de músicas que to-
cam no bar e uma página na inter-
net para interação com clientes.
Maurício Porto, sócio do Cale-
donia Whisky & Co, diz que “o
coronavírus deu coragem para
testar coisas que só estavam no
nosso horizonte muito mais a
frente, como o de-
livery e a loja vir-
tual”, contou.
O Mixologista
da Pernod Ricard
e criador do clube
do Barman, Ra-
fael Mariachi en-
tende que o País
vai perder muitos bares, mas que,
por outro lado, muita gente vai
entrar no negócio por enxergar
oportunidades. “O bartender po-
de ser o grande vencedor dessa
catástrofe. Hoje, mais do que
nunca, o mundo das bebidas de-
pende de conteúdo”. Para Perci-
val Maricato, presidente da Abra-
sel (Associação Brasileira de Ba-
res e Restaurantes), 10% já fecha-
ram oficialmente. São 6 milhões
de empregos no setor. Por isso, é
preciso começar a pensar em fle-
xibilização com total responsabi-
lidade”, disse.

l]
ESCREVE ÀS QUARTAS-FEIRAS E AOS DOMINGOS

BOTECO


A EXPERIÊNCIA DOS
BARES PODE IR PARA
DENTRO DE CASA,
COM COMBOS

V


ivo com discreta melancolia
meu terceiro Dia das Mães co-
mo órfão. Muitos devem com-
partilhar o sentimento. A data é um
desafio para o enlutado. Poderia fa-
lar muito da dor da ausência. Hoje,
especialmente hoje, enfatizarei a
alegria da vida.
Tive mãe e ela não era perfeita.
Sei, a frase soa estranha. Olhada a
distância e com a sedimentação do
tempo, vejo uma mulher extraordi-
nária que enfrentou 80 anos de desa-
fios fortes. Nas respostas que Dona
Jacyr deu à vida, houve pontos lumi-
nosos e, claro, contradições. Nunca
idealizei minha mãe, nem em vida e
nem agora. Com o passar do tempo,
vi com clareza que os pontos com-
plexos eram parte de um jogo mais
amplo e menos romântico. Minha
querida mãe, divinizada em tantas
mensagens de cartões, era um ser
humano como tantos.
Aceitar o limite nos pais é um pas-
so de amadurecimento. Na inten-
ção de me preservar (ou, pelo me-
nos, assim que ela supunha), minha
mãe mentiu algumas vezes para

mim. Temendo viralizar preocupa-
ções, ocultou resultados de exames
médicos ou notícias ruins. No fundo,
sempre supôs que os filhos, apesar da
idade, eram frágeis. Como muitas
mães, o gesto estratégico de aparar
arestas da vida escondia proteção, con-
trole, amor e fantasias de prole imatu-
ra. Ela também teve, poucos é verdade,
ataques de raiva (menores e menos fre-
quentes do que os meus). O pecado da
vaidade a tomava, quando comparava
alguns aspectos da sua ninhada com
filhotes alheios. O orgulho estendeu-
se aos netos. Todos éramos lindos e
brilhantes. Os vizinhos? Arrumados...
Simpáticos talvez. O senso crítico e o
relativismo nunca se aproximaram do
berço de um Karnal. Foi ignorada a sá-
bia parábola da coruja idealizando
seus monstrinhos medonhos. Outro
fato: por vezes, eu supus que a cenogra-
fia da mesa com todos no Natal era
superior ao conteúdo da vontade das
pessoas ali presentes. Em outras pala-
vras, imaginei que o mais importante
eram o teatro e a aparência. Se todos lá
estivessem, tudo correria bem. Bem an-
tes de surgir o termo, era um anseio de

“família instagramável”. A mesa com-
pleta agrada a todas as mães de forma
quase obsessiva.
Ao contrário do meu pai que jamais
disfarçou a preferência pela minha ir-
mã, minha mãe era dedicada à prática e
ao discurso de igualdade. Tudo era divi-
dido em partes matematicamente
idênticas. O que um de nós recebesse,
guardadas as questões de idade e de
gênero, os outros ganhariam. A pala-
vra empenhada conosco era inabalá-
vel. Se prometesse levar às piscinas do
clube no primeiro dia da temporada,
não importava (como, de fato, não im-

portou) estar devastada por uma gripe
de verão. A palavra era maior do que o
vírus. Ia conosco ao carnaval e, como
meu pai detestava som alto, ficava na
mesa a tarde toda enquanto os quatro,
fantasiados por ela, rodopiavam no sa-
lão. Não bebia e ficava com refrigeran-
te vendo seus rebentos. Genuinamen-
te, como quase todas as mães, nossa
alegria era a dela, nosso bem-estar a
preenchia por completo e nossas doen-
ças a devastavam. Virtudes do mater-
no e do feminino na nossa cultura: mi-

nha mãe cuidava muito: de nós, do
meu pai, da sogra difícil, do meu tio
paterno, do meu tio materno, da vizi-
nha. Enfermeira de todos, companhia
de noites frias em velórios, acompa-
nhante em hospitais: era uma mulher
solidária ao extremo. Foi mãe integral
e colaborou enormemente para criar
os primeiros netos. Com o último, tem-
porão, já não dispunha de forças para
um colo prolongado. Vi, na infância,
minha mãe fazendo elaboradas tran-
ças na minha irmã e a mesma técnica
ser repetida, 30 anos depois, com as
netas. Era atávico e emocionante ver
que o tempo passava e o amor e o cuida-
do se mantinham.
No passado, se me perguntassem o
motivo do amor pela minha mãe, eu
ofereceria uma resposta correta e sin-
cera: ela me deu a vida, ela me ama
incondicionalmente, ela esteve comi-
go em todos os momentos, ela torcia
por mim de forma genuína e apaixona-
da, ela me via, sabia quem eu era e,
mesmo assim, tinha uma ligação in-
quebrável. Tais afirmações eram e
continuam sendo verdade. Hoje, mais
maduro e sem ela, vejo que, tendo
amado minha mãe também com as im-
perfeições, entendi que o humano, co-
mo eu e como todos, somos dignos do
amor. Uma mãe sem jaça teria provo-
cado uma idealização do mundo e a

ninguém mais eu teria entregue
meu coração. Dona Jacyr era uma
mulher extraordinária, como vá-
rias mães, dedicada como quase to-
das as progenitoras e, acima de tu-
do, falha como todos os filhos de
Eva. Dotada desse afeto impactan-
te e da consciência dos limites do
mundo, ela me ensinou a amar. Mi-
nha amorosa e imperfeita mãe me
fez aceitar meus defeitos gigantes-
cos, procurar ser melhor e estar ap-
to ao afeto para com as outras pes-
soas. Ela foi capaz de amar me co-
nhecendo e eu incorporei seu lado
mais humano e menos angelical
igualmente. Agora, com certeza, te-
nho pleno potencial para reconhe-
cer a humanidade claudicante, os
defeitos da maioria e, eventualmen-
te, a maldade no meu coração e na
alma de alguns.
Hoje é Dia das Mães e eu desejo a
todas uma jornada carinhosa. Que
os filhos se entreguem ao mistério
do amor materno e que as mães tam-
bém incorporem a humanidade de
cada rebento. Que todos se per-
doem, condição imprescindível para
a coexistência. Que a compreensão
domine e que a compaixão aflore. Fe-
liz dia a tantas admiráveis mães. Nós
seremos sempre e para sempre gra-
tos. Boa vida para todos nós.

Donos de bares se preparam para lidar com a volta


da boêmia com novas regras de distanciamento


APÓS A PANDEMIA


Pasquim. Bares terão mesas com maior distanciamento, cardápios higienizados, controle de lotação e, no lugar de vasos de flores, álcool em gel

Nós e ela


Nossa alegria era a dela, nosso
bem-estar a preenchia e
nossas doenças a devastavam

DIEGO MARCOS
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