O Estado de São Paulo (2020-05-10)

(Antfer) #1

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H8 Especial DOMINGO, 10 DE MAIO DE 2020 O ESTADO DE S. PAULO


Aliás,


Antonio Gonçalves Filho


Ao apresentar ao leitor a anto-
logia Contos (Quase) Esquecidos
de Machado de Assis
, o crítico
literário João Cezar de Castro
Rocha, professor titular de Li-
teratura Comparada da Univer-
sidade do Estado do Rio de Ja-
neiro (Uerj), faz um pequeno
prólogo em que analisa o papel
de Shakespeare na literatura
do escritor brasileiro, em parti-
cular a estrutura de sua peça
Henrique V. O título desse pró-
logo, A Plasticidade do Clássico ,
remete a uma palestra proferi-
da pelo poeta T. S. Eliot (1888-
1965) em outubro de 1944, na
Virgil Society. Em tempos de
guerra, com bibliotecas e livra-
rias fechadas, situação seme-
lhante a que enfrentamos nes-
ta pandemia, Eliot lamentava
não ter acesso ao famoso en-
saio de Sainte Beuve sobre o
que significa um clássico. As-
sim, foi obrigado a refletir so-
bre a pergunta sem a ajuda do
texto do crítico francês (1804-
1869). Eliot, elegendo Virgílio
como o clássico europeu por


excelência, passou a discorrer
sobre seu legado, afirmando
que o autor da Eneida era in-
contornável. Um clássico, por-
tanto.
O mesmo se pode dizer de
Shakespeare e Machado de As-
sis. Eliot, nessa conferência, as-
sociou a palavra clássico à matu-
ridade. Um clássico, justificou,
só pode emergir numa socieda-
de madura. É a importância de
uma civilização e sua lingua-
gem o que dá ao clássico sua uni-
versalidade. Christopher Mar-
lowe (1564-1593), comparou
Eliot, podia ser bom como
Shakespeare (1564-1616) na ju-
ventude, mas dificilmente seria
Shakespeare, até mesmo por
ter morrido jovem (numa briga
de taverna) e não ter atingido a
maturidade. Uma literatura ma-
dura, concluiu Eliot, tem a histó-
ria por trás dela. Assim também
os grandes autores. Dante, para
Eliot, era um clássico porque
em sua Divina Comédia se perce-
be claramente a presença dos
clássicos na moderna literatu-
ra europeia, embora Dante fos-
se mais “provinciano’ que seu
ídolo Virgílio, seu guia em sua
peregrinação pelo espaço meta-
físico, cuja missão, segundo

Eliot, foi revelar a Dante uma
visão a que jamais teria acesso
sem seu mentor. Já Chaucer,
segundo ele, não se equipara a
nenhum dos dois.
Claro, é possível alegar que se
trata de um ponto de vista parti-
cular, mas quando muitos consi-
deram Machado de Assis um
clássico, a ponto de entrar no
cânone de exigentes críticos es-
trangeiros (Harold Bloom, para
citar apenas um deles), não há
muito o que se discutir sobre a

pertinência de classificar o au-
tor brasileiro de “clássico”. A li-
teratura brasileira moderna se
divide entre antes e depois de
Machado. Quem mais poderia,
no século 19, redefinir o velho
diálogo entre Adão e Eva com
reticências, exclamações e pon-
tos de interrogação, como fez o
autor, em 1880, em Memórias
Póstumas de Brás Cubas (o con-
teúdo da conversa entre Brás
Cubas e Virgília, no capítulo 55,
resume-se a linhas pontilha-

das que sugerem um ato um
tanto licencioso entre ambos).
Dito isto, passemos à antolo-
gia publicada pela editora Filo-
calia. Nela estão agrupados 30
contos, 11 deles (das duas cente-
nas que escreveu) nunca coleta-
dos em livro pelo autor e todos
abordando temas que eram ca-
ros a Machado: a música, a lite-
ratura, a filosofia, a política e a
escravidão. Alguns foram publi-
cados em livros como Contos
Fluminenses (1870). Histórias

da Meia-Moite (1873), Papéis
Avulsos (1882) e Relíquias de Ca-
sa Velha (1906), o derradeiro.
Outros fogem do cânone ma-
chadiano. Castro Rocha se de-
bruçou sobre o autor em forma-
ção, não no Machado consagra-
do, adotando o critério crono-
lógico em sua seleção.
Da divisão temática eleita pe-
lo organizador, os contos que
relacionam música e literatura
confirmam a afinidade de Ma-
chado com o mundo lírico. A his-
tória de Inácio, filho de um ins-
trumentista da capela imperial,
que aos 10 anos já mostrava um
talento incomum para a músi-
ca, introduz o leitor nesse uni-
verso (no conto O Machete ) ao
mesmo tempo austero e sen-
sual. Violoncelista, ele perde o
pai e a mãe e, ao tocar pela pri-
meira vez para a mulher Carlo-
tinha, decepciona-se ao perce-
ber que vivem em mundos dife-
rentes. O que é belo para ela, é
severo e melancólico para ele.
No final, a loucura toma conta
de sua alma solitária e traída,
que encontrou na vida poucos
interlocutores.
Em Um Homem Célebre
(1888), Pestana, frustrado com-
positor de polcas com sonhos
de compor sinfonias (nunca es-
quecendo que Machado era
um beethoveniano ardente),
se vê dividido entre o sucesso
popular de suas polcas e o mun-
do erudito, incorporando uma
dúvida que paira sobre o exercí-
cio de muitos músicos brasilei-
ros do período. Igual drama é
vivido por outros personagens
na primeira parte da antologia,
destacando-se entre eles o de
Romão no conto Cantigas de Es-
ponsais (1883), um maestro pa-
ralisado diante de sua inabilida-
de como compositor.
Na segunda parte da antolo-
gia, o organizador Castro Ro-
cha chama a atenção para a vio-
lência de sociedades escravo-
cratas como a brasileira, citan-
do em especial o conto Mariana
(o de 1871, pois existe outro
com o mesmo título). A cora-
gem de Machado de denunciar
a impossibilidade do diálogo in-
terclassista e inter-racial no
Brasil do século 19 já derruba
qualquer argumento contem-
porâneo de que o escritor foi
omisso em relação ao precon-
ceito e à escravidão, sendo ele
mesmo descendente de ne-
gros. Machado não só manifes-
tou seu repúdio à hipocrisia
dos brancos como culpa os cau-
casianos europeus de provocar
a morte dos afrodescendentes.
Mariana, apaixonada pelo si-
nhozinho branco, toma vene-
no, forma de sair de um mundo
que finge aceitar os negros,
mas só na aparência. Foi esse
Brasil janusiano que Machado
retratou em seus contos.

CONTOS DE MACHADO


REVIVEM EM LIVROS


INÉDITO


Literatura*


Flávio Ricardo Vassoler ]


A editora Imprensa Oficial aca-
ba de publicar o segundo volu-
me da obra Escritor por Escritor:
Machado de Assis Segundo seus
Pares
, que conta com a organiza-
ção de Ieda Lebensztayn, douto-
ra em Literatura Brasileira pela
USP, com pós-doutorados na
mesma área pelo Instituto de
Estudos Brasileiros e pela Bi-
blioteca Brasiliana Guita e José
Mindlin, ambos ligados a USP, e
Hélio de Seixas Guimarães, pro-
fessor de Literatura Brasileira
da USP.
Se o primeiro volume cobre o
período de 1908, ano da morte
de Machado, até 1939, ano do
centenário do autor, e conta
com textos críticos sobre a obra
de Machado de autoria de im-


portantes intelectuais e escrito-
res, tais como Euclides da Cu-
nha, Olavo Bilac, Lima Barreto,
Mário de Andrade e Monteiro
Lobato, o segundo volume, que
vai de 1939 a 2008, nos brinda
com análises e documentos de
autores da envergadura de Aria-
no Suassuna, Carlos Drum-
mond de Andrade, Ferreira Gul-
lar, Glauber Rocha, Graciliano
Ramos, Lygia Fagundes Telles,
Oswald de Andrade e Rubem
Braga, entre outros.
No prefácio O Sorriso do Bru-
xo no Espelho de Escritores , Ieda
Lebensztayn discorre sobre a
importância de Escritor por Es-
critor não só para iluminar a
obra de Machado segundo seus
pares, mas também para trazer
à tona diálogos com as próprias
criações dos autores que contri-
buem para a fortuna crítica ma-
chadiana: “Na medida em que
refletiram sobre a vida e a obra
de Machado de Assis, contem-
plando os vários gêneros a que
ele se dedicou – romance, con-
to, crônica, crítica, teatro, poe-
sia –, esses ficcionistas e poetas

enriqueceram a fortuna crítica,
contribuindo para se conhece-
rem e compreenderem melhor
nosso grande escritor e o con-
texto histórico de sua época e
até nossos dias. Ao mesmo tem-
po, ao desenvolverem interpre-
tações sensíveis a respeito da
singularidade de Machado, es-
ses escritores deixam ver mar-
cas da constituição de suas pró-
prias literaturas”.
Ieda Lebensztayn também
nos revela que, em mais de um
século de fortuna crítica, so-
mam-se imagens concernentes
ao estilo de Machado, “joia de
ouro de ideias, incrustada de iro-
nia”, como destaca o poeta e ro-
mancista Antônio Sales. E mere-
cem atenção sobretudo figura-
ções do sorriso de Machado, a
apontar como a ambiguidade
entre ‘galhofa e melancolia’ in-
quieta os leitores. Além da rema-
tada ironia, zombeteira e tragi-
camente pessimista, a organiza-
dora elenca outros tópicos re-
correntes da fortuna crítica e
nos apresenta o homem Macha-
do em seu cotidiano: “Também
aqui comparecem a ausência de
quintais, de descrições da natu-
reza, o abstencionismo políti-
co, a sutileza da representação
do erotismo, a impassibilidade,
o relativismo de tudo. Ao mes-
mo tempo, recordações de con-
temporâneos deixam ver a face
de afabilidade por trás da másca-
ra, junto com a seriedade e o em-

penho pelo trabalho e pela cria-
ção de sua obra e da Academia
Brasileira de Letras”.
Entre os textos que
compõem Escritor por Escritor,
destaco O Retrato , do poeta Car-
los Drummond de Andrade, em
que o autor aguça nossa empa-
tia ao revelar que o filho do dou-
tor Carneiro de Sousa Bandei-
ra, amigo de Machado, costuma-
va conversar com o escritor a
bordo de um bonde no bairro
das Laranjeiras, no Rio de Janei-

ro. À época um jovem colegial, o
recifense e futuro poeta Ma-
nuel Bandeira falava sobre lite-
ratura com um Machado que, a
despeito de seu pessimismo
existencial, se lhe mostrava bas-
tante afável.
Vale muito a pena, ademais, a
leitura de Fala Machado , diálo-
go entre o escritor e cronista ca-
pixaba Rubem Braga e o próprio
Machado, ao longo do qual o pri-
meiro formula perguntas e invo-
ca o segundo nas respostas: “Eu

podia usar o espiritismo ou a
imaginação, mas preferi com-
por as respostas de Machado
com palavras rigorosamente
suas, frases tiradas de crônicas,
romances ou contos”.
É assim que, diante da pergun-
ta “E esses camaradas que estão
sempre na oposição?”, despon-
ta como resposta um trecho do
romance Esaú e Jacó que, talvez,
sintetize o Brasil dos últimos
anos: “O homem, uma vez cria-
do, desobedeceu logo ao Cria-
dor, que aliás lhe dera um paraí-
so para viver; mas não há paraí-
so que valha o gosto da oposi-
ção”. Quando Braga interpela
Machado sobre o valor do traba-
lho, lemos um fragmento da
crônica A Semana: “O trabalho é
honesto, mas há outras ocupa-
ções pouco menos honestas e
muito mais lucrativas”. Em tem-
pos de polpudas ajudas públi-
cas a instituições financeiras e
mirradas contribuições esta-
tais para os desempregados e
desvalidos da crise econômica
acirrada pelo coronavírus, tal
colocação bem nos mostra por
que Machado de Assis, em sua
argúcia sempre atual, era cha-
mado de “bruxo”.

]
É DOUTOR EM LETRAS PELA USP,
COM PÓS-DOUTORADO EM LITERATU-
RA RUSSA PELA NORTHWESTERN UNI-
VERSITY. É AUTOR DE ‘DIÁRIO DE UM
ESCRITOR NA RÚSSIA’ (HEDRA, 2019).

PARES DO ‘BRUXO’


E MODERNOS EM


ANÁLISES DENSAS


ESCRITOR
POR
ESCRITOR
(V0L.2)
Org.: Ieda
Lebensztayn e
Hélio Seixas
Guimarães
Ed.: Imprensa
Oficial (612
págs., R$ 90)

NILTON FUKUDA/ESTADÃO

CONTOS
(QUASE)
ESQUECIDOS
DE MACHADO
DE ASSIS
Org.:
João
C. C, Rocha
Ed.: Filocalia
(440 pág.,
R$ 99,90)


Organizador. Hélio de Seixas Guimarães

Dois lançamentos trazem textos pouco conhecidos que


atestam o compromisso social do escritor com o Brasil


Segundo volume de


ensaios sobre Machado,


que vai de 1939 a 2008,


traz análises de Glauber,


Suassuna e Drummond


DESENHO DE WILLIAM KENTRIDGE
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