O Estado de São Paulo (2020-05-10)

(Antfer) #1

Aliás,


Paulo Nogueira ]


Nestes tempos patibulares em
que, quando muito, é viável um
humor negro, e os brasileiros –
se tanto – esboçam um sorriso
amarelo, é útil entender a natu-
reza de uma das marcas da con-
dição humana: a comédia. A ou-
tra – a tragédia – a gente já sabe
de cor e salteado.
O Humor , de Terry Eagleton,
é um clássico contemporâneo
no assunto. O autor é freudiano
e marxista – mas não daqueles
que reduzem tudo a um auto-
mático e simplório determinis-
mo econômico. Tem vários li-
vros editados no Brasil (meus
preferidos são Para Ler Literatu-
ra
e A Tarefa do Crítico ).
Se para ser técnico de futebol
não precisa ter sido jogador, pa-
ra escrever sobre o cômico con-


vém gostar de piada. Como Ea-
gleton cutuca, “nas prateleiras
das livraras há muitos estudos
sobre o humor, desprovidos de
humor.” Não é seu caso, talvez
por ter nascido na Inglaterra,
pátria do “wit”, uma espécie de
astúcia espirituosa.
Na literatura ocidental a pri-
meira risada ressoa logo no ber-
ço: o Livro 1 da Ilíada , quando
os deuses zoam Hefesto, o deus
do fogo, porque ele é manco. Na
República , Platão relega a comé-
dia aos escravos e estrangeiros.
Aliás, também bane a poesia, e
poemas e piadas têm parentes-
co – incluindo a proeminência
do som, da fonética, do ritmo
(bem maior do que na prosa).
A palavra “humour”, na ori-
gem, significava relevar capri-
chos e fraquezas. Beleza pura?
Mais ou menos: “Se homens e
mulheres não fossem tão tolos,
não precisariam de tal papari-
co. Nesse sentido, o humor de-
precia a humanidade, mas tam-

bém constitui um louvável
exemplo dela”. Daí que ele seja
essencialmente ambíguo, e
anarquista por definição (uma
arte pela arte, que não quer edi-
ficar, mas se autogratificar
com o riso).
Porém, há diferença entre ri-
so e humor. “O bom humor é
mais comum que o riso. Ao pas-
so que o humor necessita de um
objeto, o riso pode surgir do
simples prazer com a compa-
nhia de alguém. Quando uma
plateia urra de rir, reage a uma
situação no palco, mas também
à animação uns dos outros.”
É que, assim como a dança, o
riso é uma linguagem do corpo.
Por que rimar humor e dor? Por-
que faz sentido: “Como ocorre
com o luto, a dor extrema, o me-
do intenso ou a raiva cega, o ri-
so envolve uma perda do auto-
controle físico na qual o corpo
fica por um instante perdido, e
regredimos ao estado descoor-
denado de um bebê. James Joy-

ce falou, em Finnegans Wake ,
das laughtears (risadas-lágri-
mas), Darwin indicou que o ri-
so pode ser confundido com pe-
sar, e ambos os estados podem
envolver copiosas lágrimas.
Em O Macaco Nu , Desmond
Morris argumentou que o riso
evoluiu do choro.” Talvez por
isso rir seja o melhor remédio.
O humor, claro, implica a me-
lindrosa questão do politica-
mente correto. Pimenta nos
olhos dos outros é refresco?
Acontece que o humor genuíno
não é contra esta ou aquela ideo-
logia, mas, se bobear, contra a
própria moral e lógica humanas
(como no nonsense). Daí ser
contraproducente a piada cha-
pa branca. Como indicou o psi-
canalista San-
dor Ferenczi,
“um indiví-
duo totalmen-
te virtuoso e
um indivíduo
totalmente vil
não ririam.” E
por isso o hu-
mor é tão democrático: para rir-
mos dos outros, devemos acei-
tar que riam de nós. Afinal, tudo
é engraçado, desde que aconte-
ça a terceiros. E cada macaco no
seu galho: fornecer soluções é
tarefa dos legisladores, não dos
humoristas.
O critério pode ser facultado
pela decência, ou aquilo que
Aristóteles chamou de “frone-
se”, ou como intuir se a piada é
apropriada ou não. Quando um
Presidente da República diz
que é “Messias mas não faz mila-
gre”, tripudia sobre cadáveres e
a dor de milhares de famílias.
Não é engraçado: é abjeto (do
ponto de vista humano) e muar
(do ponto de vista político).

Bem, é como disse o autor israe-
lense Amos Oz: “Nunca vi um
fanático bem-humorado.”
Na criação literária, que é a
minha praia, rir de si mesmo é
um trunfo para o protagonista.
O personagem que fica choran-
do as pitangas é um chato de
galocha. De resto, como notou
André Breton, o sentimentalis-
mo é o oposto do humor (e,
acrescento eu, do verdadeiro
drama). A romancista Angela
Carter descreveu a comédia co-
mo “tragédia que acontece
com os outros”, ao passo que
Mel Brooks observou que “tra-
gédia é quando eu corto o de-
do, e comédia é quando alguém
cai em uma valeta e morre”. E
tem aquela expressão france-
sa: “Qui s’ac-
cuse, s’excu-
se” (quem se
acusa, se des-
culpa).
Outra saca-
da arguta de
Eagleton é a
distinção en-
tre anedota e epigrama: “A pia-
da é um modo cômico mais im-
pessoal e pode circular, como
uma moeda, de mão em mão, ao
passo que as melhores tiradas
espirituosas levam a marca pes-
soal de seu autor. Elas são mais
citadas que repetidas. É o tipo
de comentário que, mais tarde,
desejamos ter feito nós mes-
mos.” O Pelé do aforismo foi Os-
car Wilde, que povoa no míni-
mo 20% dos melhores dicioná-
rios de citações.
Um dos recursos clássicos do
epigrama e do humor em geral é
o impacto entre itens incon-
gruentes, uma espécie de súbi-
ta rasteira no sentido conven-
cional. Grande parte do humor

de Woody Allen se baseia naqui-
lo: “Não há dúvida de que existe
um mundo invisível. O proble-
ma é quão longe ele fica do cen-
tro e até que horas fica aberto.”
O humor não é utilitário, mas
pode ser bem útil: “Uma de
suas funções mais tradicionais
tem sido a reforma social. Se ho-
mens e mulheres não podem
ser convencidos à virtude atra-
vés da repreensão e do sermão,
talvez o sejam através da sáti-
ra.” Por falar em homens e mu-
lheres, a batalha entre os sexos
começou a virar o jogo quando
elas ridicularizaram a arrogân-
cia sisuda deles. Mas, sendo o
humor o que é, claro que ele aca-
bou rindo também da meritória
evolução dos costumes (rir de
si mesmo não vale só para perso-
nagens de ficção). Como naque-
la piada em que duas millen-
nials estão papeando, e uma de-
las resmunga: “O mundo está
mesmo perdido. Hoje a gente
vai pra cama com um cara, e no
dia seguinte ele já quer nos con-
vidar pra jantar.”
Ah, sim: é fisiologicamente
possível morrer de rir. Mas
acho que neste momento os bra-
sileiros não corremos esse ris-
co. Ao menos esse.

]
É AUTOR DE ‘O AMOR É UM LUGAR
COMUM’ (INTERMEIOS)

Literatura*


UM REMÉDIO ESSENCIAL


PARA NOSSOS TEMPOS


HUMOR


José Castello ]


No ano de 1891, aos 30 anos, o
escritor fluminense Antonio da
Silva Jardim, um defensor das
causas republicanas, fez uma vi-
sita à Itália. Na companhia de
um amigo, subiu a encosta do Ve-
súvio. No topo, uma fenda se
abriu e o vulcão o tragou. Defen-
sor acalorado da ideia de que era
necessário matar Pedro II na gui-
lhotina, sua morte trágica, que
pode ter sido um suicídio, inspi-
rou a um jornal mineiro o comen-
tário: “Morreu como viveu, cer-
cado por lavas e chamas”.
O protagonista de O Impostor ,
novo romance de Edgar Telles
Ribeiro (Todavia), teve um tio-
avô que, uma década depois da
morte de Silva Jardim, experi-
mentou o mesmo destino. Engo-
lido pelo Vesúvio, seu antepassa-
do despareceu também na me-
mória da família. “Meu pobre pa-


rente fora tragado, não tanto pe-
lo Vesúvio, mas pelo esqueci-
mento.” Carregando consigo a
imagem fluida do falecido, tam-
bém ele decide visitar Nápoles,
na Itália. Nada sabe a respeito do
tio morto. Até seu nome se per-
deu. “Do episódio, além da foto-
grafia de meu tio-avô, que enfiei
no bolso (e anos depois perdi),
conservei uma impressão difu-
sa.” Um sentimento igualmente
impreciso o atormenta: tem me-
do de cair no vulcão também.
A imprecisão não é só uma qua-
lidade do passado: ela se derra-
ma sobre todo o presente. Meses
antes da viagem, o narrador de O
Impostor teve um AVC. Durante
longos dias, esteve fora de si e
quando, por fim, voltou à tona da
realidade, ela já não tinha a mes-
ma consistência. Mesmo com a
mulher, Marisa, que o acompa-
nha à Itália, já não sente a mesma
sintonia. A realidade se torna
mais vaga. Nem a si ele reconhe-
ce: quando se observa no espe-
lho, encontra apenas uma super-
posição de máscaras – e por isso
se julga um eterno impostor.
Nos dias do coma, o mundo se
revirou. “Você desapareceu por
20 dias. Achei que não voltaria

mais”, lhe disse Marisa depois.
Quando volta, ainda é o mesmo
homem, mas, em um certo senti-
do, é outro também. Mesmo an-
tes de chegar ao Vesúvio, já se
sente prisioneiro de um vulcão.
Detido em “um espaço desola-
do em memórias extintas como
o vulcão à minha frente”. Após a
doença, sente-se prisioneiro de
uma eterna transição. Uma ra-
chadura no tempo o tragou. Por
isso, se identifica tanto com o
neto Felipe, de 16 anos, seu
maior amigo. Nem Marisa o
compreende mais. No hotel em
Nápoles, reclama com a mulher
do cansaço. Ela argumenta que
passaram um longo tempo sen-
tados. Ele a corrige: não fala dis-
so, mas de “um cansaço pré-his-
tórico, de minha história”. De
um cansaço de ser.
Todo o romance de Edgar Tel-
les Ribeiro se contamina pela
fragmentação que despedaça a
mente do narrador. Também o
leitor não sabe muito bem onde
pisa. O tempo avança e recua aos
solavancos. Os espaços se mistu-
ram. E há ainda a interferência
aflitiva dos sonhos, que o narra-
dor rememora só aos fragmen-
tos. Será que seu tio-avô existiu

mesmo? Terá ele caído no Vesú-
vio? E terá ele mesmo, seu sobri-
nho neto, feito uma viagem à Itá-
lia? Em uma conversa difícil
com o neto, reflete: “Se estou
aqui, é porque nem saí do Brasil.
E viajei, apenas, por cortesia de
algum delírio”. Logo, porém, ain-
da em busca de terra firme, tenta
pensar ao contrário: “Mas se es-
tou na Itália, tudo que ocorre
aqui, nossa conversa inclusive, é

mera recordação.
Já não pode confiar no tempo.
Também o espaço se tornou trai-
çoeiro e já não tem muito certe-
za a respeito de onde está. Em
muitos momentos, está no con-
sultório de seu psiquiatra, deita-
do em seu divã e observando o
teto. Fala de si, esforça-se – mas
a verdade é que confia mais no
neto do que no médico. “É difícil
falar sobre isso com o médico.

Com meu neto é mais fácil, Feli-
pe é meu cúmplice. Não interfe-
re e nem me intimida. E nada es-
pera de mim”. Só Felipe o con-
duz de volta à terra firme. No
mais, vive em um mundo cheio
de fendas que, a qualquer mo-
mento, podem tragá-lo.
Durante a terapia, costuma
ter visões. “Só que elas nada têm
de recriadas. São reais. Tão reais
como você, sentado em sua pol-
trona”, diz ao terapeuta. Em
uma conversa com o neto, lhe
explica que não existe diferença
entre a ficção e a realidade. Am-
bas são “partes de uma única te-
la, ela própria herdeira de anti-
gos pergaminhos, nos quais to-
das as narrativas se encadeavam
com a mesma regularidade, fun-
dindo os fatos às lendas”. Não é
o único impostor: também a rea-
lidade não passa de uma impos-
tura. Estará enlouquecendo? Re-
corda então que, já na Renascen-
ça, se atribuíam aos loucos cer-
tos poderes, entre os quais a ca-
pacidade de revelar verdades se-
cretas. Os loucos eram tidos co-
mo adivinhos. Talvez só eles pos-
sam decifrar uma realidade que
se desfigura. Uma realidade que
ferve e que, como um vulcão,
ameaça nos engolir também.

]
É JORNALISTA E ESCRITOR

HUMOR
Autor: Terry
Eagleton
Tradução:
Alessandra
Bonrruquer
Editora:
Record
(154 págs., R$
34,90 e-book)

A FLUIDEZ TRAIÇOEIRA DE TEMPO E ESPAÇO


TODAVIA

Comédia. Terry Eagleton argumenta que o humor teve grande utilidade como vetor de reformas sociais: ‘Quem não pode ser convencido pela repressão talvez o seja por meio da sátira’


Novo livro do filósofo e crítico literário britânico Terry


Eagleton analisa o riso e sua importância para a sociedade


POEMAS E PIADAS TÊM
PARENTESCO NA
PROEMINÊNCIA DO SOM,
DA FONÉTICA, DO RITMO

Novo romance de Edgard


Telles Ribeiro joga com a


memória fragmentada de


um homem que não mais


reconhece a realidade


O IMPOSTOR
Autor:
Edgard
Telles
Ribeiro
Editora:
Todavia
(80 páginas,
R$ 29,93,
R$ 27,50
em e-book)

TASSO MARCELO/ESTADÃO

Autor. Ribeiro conduz leitor por via sinuosa

%HermesFileInfo:C-9:20200510:
O ESTADO DE S. PAULO DOMINGO, 10 DE MAIO DE 2020 Especial H9

Free download pdf