O Estado de São Paulo (2020-05-10)

(Antfer) #1

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O ESTADO DE S. PAULO DOMINGO, 10 DE MAIO DE 2020 Política A


J. R.


GUZZO


Patrik Camporez / BRASÍLIA


O desvio de armas e muni-
ções dos quartéis das polícias
e do Exército para facções cri-
minosas, clubes de tiro e milí-
cias virou rotina. Na segun-
da-feira passada, por exem-
plo, o Tribunal de Justiça da
Bahia negou a soltura de um
sargento da Polícia Militar,
de 52 anos, preso em flagran-
te dias antes, em Salvador,
com três pistolas que seriam
vendidas a traficantes. O no-
me do policial só deve ser di-
vulgado após o primeiro júri,
mas, em instâncias superio-
res da Justiça, não faltam
réus com identidade revela-
da, acusados de envolvimen-
to em crimes semelhantes.

De granadas de luz e som da
Presidência, como as utilizadas
para dispersar multidões, a fu-
zis da Polícia Federal, o merca-
do ilegal de armamento vem se
sofisticando cada vez mais. Um
dos cooptados foi o sargento
Marcelo Rodrigues Gonçalves.
Cedido pelo Corpo de Bombei-
ros do Distrito Federal ao Gabi-
nete de Segurança Institucio-
nal (GSI), ele despachou, em
2018, balas de fuzil e granadas
da guarnição do Exército no Pa-
lácio do Planalto para pontos
do Comando Vermelho, no Rio.
O caso de Gonçalves é um
dos 15 inquéritos do Superior
Tribunal Militar (STM) aos
quais o Estadão teve acesso. Os
processos revelam o esquema
que começa com a cooptação
de militares de baixa patente,
passa por oficiais e termina na
cúpula de organizações crimi-
nosas. Só esses processos indi-
cam que pelo menos 200 mil ba-
las de fuzis foram desviadas,
um corte pequeno no universo
de casos investigados.
O capitão Thiago Fonseca Li-
ma e a mulher, a tenente Ana
Carolina Pinheiro dos Santos,
ambos do Exército, foram pre-


sos em maio do ano passado na
rodovia Dom Pedro I, em Ati-
baia (SP), com 1.398 projéteis
calibre 5,56 no assoalho do car-
ro, depois de abastecerem clu-
bes de tiro em Olaria, região de
milícias do Rio. Thiago cumpre
prisão domiciliar e Ana Caroli-
na está em regime aberto.
Para defender o casal, o advo-
gado André Rodrigo do Espírito
Santo mergulhou em casos jul-
gados na Corte sobre desvios
de armas e munições. “Há uma
falha no controle dessas muni-
ções, aí. É algo que tem de ter
uma segurança muito maior do
que eles utilizam”, disse.
As investidas do mercado ile-
gal de armas são conhecidas do
comando do Exército. A repor-
tagem obteve cópias de ofícios
da instituição militar ao Tribu-
nal de Contas da União (TCU) e
ao Ministério Público Federal,
além de documentos internos
que mostram a preocupação da
Força, nos 15 meses do governo
Jair Bolsonaro, em cessar os des-
vios de armamentos e muni-
ções. Em reuniões no quartel-
general de Brasília, oficiais dei-
xaram claro o interesse em ga-
rantir um controle mínimo não
apenas de seu armamento, mas
também do comércio privado.
Diante da desorganização do
setor e de pressões, o Comando
Logístico do Exército (Colog)
montou um grupo para criar
uma legislação de controle de
armas e munições. O esforço de
um ano da comissão chefiada
pelo general Eugênio Pacelli
Vieira Mota, porém, sofreu um
revés em 17 de abril, quando as
portarias 46, 60 e 61, prepara-

das pelo grupo, foram revoga-
das antes de entrarem em vigor,
a pedido de Bolsonaro.
Numa transmissão ao vivo na
internet, na véspera, Bolsonaro
recebeu pedidos do lobby das
armas para cancelar as normas.
Como o Estadão mostrou, a
possível interferência do presi-
dente em atos exclusivos do
Exército é agora alvo de investi-
gação do Ministério Público Fe-
deral. O Exército tem afrouxa-
do o trabalho para garantir re-
gras de rastreamento e contro-
le de munições.

Bancos. A pressão por mais
controle de armas e munições
vem especialmente do setor
bancário. De 2015 a 2018, a Con-
federação Nacional dos Traba-
lhadores da Segurança Privada
registrou 361 atentados a car-
ros-fortes no País. São quadri-
lhas que manejam explosivos
desviados de pedreiras e arma-
mento de uso restrito.
Ao investigar o ataque a um
veículo de uma transportadora
de valores na região metropoli-
tana de João Pessoa, na Paraíba,
em 2018, a polícia também en-
controu 1,8 mil munições. A
Companhia Brasileira de Cartu-
chos, fabricante dos projéteis,
informou que as balas haviam
sido furtadas de polícias de Per-
nambuco, Paraíba, Distrito Fe-
deral e São Paulo.
Criado para treinar praci-
nhas que lutariam na Segunda
Guerra, o quartel do 11.º Grupo
de Artilharia de Campanha (11.º
GAC), no Rio, não foi poupado
pelo esquema que abastecia cri-
minosos da comunidade do
Chapadão. Num habeas corpus
negado, em 2019, o civil Allan
Malaquias de Oliveira confes-
sou que intermediava a venda
de munições calibre 7,62 mm
entre militares e traficantes.
O inquérito não aponta, no
entanto, o número exato de mu-
nições desviadas nem o nome

de envolvidos. Esta lacuna apa-
rece nos demais processos ana-
lisados pela reportagem. Os fur-
tos só costumam ser descober-
tos quando o armamento já está
nas mãos do crime. O caso que
cita Malaquias só foi desvenda-
do porque, ao passar de carro na
Baixada Fluminense, ele foi pa-

rado pela PM.
Entre 2015 e 2018, um total de
1.049 armas foi desviado da Polí-
cia Civil do Rio, segundo relató-
rios analisados pelo Instituto
Sou da Paz, a pedido do Esta-
dão. A esse arsenal se juntam as
armas e munições desviadas
dos batalhões das Forças Arma-

das e da PM.
Em abril do ano passado, uma
perícia no celular do ex-policial
Orlando Curicica mostrou men-
sagens trocadas entre ele e sus-
peitos de atuar como milicia-
nos. O laudo foi anexado às in-
vestigações do caso Marielle
Franco (PSOL) e Anderson Go-
mes e revelou que Curicica ne-
gociava armas para favelas da
zona oeste do Rio. Ele preten-
dia comprar uma pistola Glock,
apreendida na Cidade de Deus,
que seria desviada do Grupa-
mento Tático de Jacarepaguá.
Outro inquérito na Justiça Mi-
litar apura o uso de munições
restritas ao Exército por milí-
cias em São Paulo. Projéteis de
um lote desviado da Polícia Fe-
deral, o UZZ 18, foram usados
em pelo menos três casos de re-
percussão nacional: os assassi-
natos da juíza Patrícia Acioli, no
Rio, em 2011, e de 23 pessoas,
em chacinas, em 2015, em Osas-
co, Itapevi e Barueri (SP).
O lote roubado possuía 2,5 mi-
lhões de munições, sendo 1,
milhão de calibre 9 mm, e dali
também teriam saído as balas
que mataram Marielle e Ander-
son, no Rio, em 2018. Num pro-
cesso que chegou neste ano ao
STM, o tenente-coronel Alexan-
dre de Almeida, ex-chefe do Ser-
viço de Fiscalização de Produ-
tos Controlados da 1.ª Região
Militar, do Exército, foi preso,
em abril de 2019, por desviar
110 armas para um clube de tiro
na Serra, no Espírito Santo.
O setor comandado por ele
era responsável pelo controle
de armas naquele Estado e no
Rio e fiscalizava clubes de tiro,
comércio de explosivos e ativi-
dades de caçadores, atiradores
e colecionadores. Com atuação
no Rio, Almeida foi responsável
por assinar o certificado de cole-
cionador de Ronnie Lessa, o sar-
gento reformado da PM acusa-
do de envolvimento no assassi-
nato de Marielle e Anderson.

É


curioso o que está acontecen-
do hoje no Brasil. A cada dia
que passa, o presidente da Re-
pública faz alguma coisa que parece
desenhada sob medida para tumul-
tuar o seu próprio governo, como se
tivesse certeza de que o pior desas-
tre que pode lhe acontecer é viver
quinze minutos de paz. (Neste mo-
mento de confusão extrema, acredi-
te se quiser, conseguiu achar espaço
para arrumar uma briga com a sua
ministra-secretária da Cultura, a
atriz Regina Duarte, cuja relevância
no meio das calamidades atuais osci-
la ao redor do zero. Justo agora?

Não poderia ficar para um pouco mais
tarde? Não: ninguém aqui vai perder
uma oportunidade para sair no braço.)
Ao mesmo tempo, as forças que que-
rem tirá-lo de lá antes da hora prevista
na Constituição parecem cada vez
mais incapazes de armar uma ação coe-
rente, lógica e eficaz para conseguir is-
so.
É a velha história da vida política:
quando todo mundo diz que “agora
não dá mais” e, ao mesmo tempo, não
se faz nada de concreto além de falar, é
sinal de que ninguém está conseguin-
do agir no mundo das coisas práticas.
Se realmente não “dá mais”, então por

que continua dando? Não se trata de
falta de vontade – é falta de meios. Co-
mo tantas vezes ao longo da História, a
questão se resume na inesquecível per-
gunta de Lenin: “Que fazer?” O Revolu-
cionário Número 1 de todos os tempos
sabia muito bem que, sem responder a
essa pergunta, o Czar continuaria sen-
tado até hoje no trono da Rússia. Em
sua volta, todos faziam os discursos
mais devastadores, ano após ano - e
continuavam no exílio. Lenin, em vez
disso, só pensava em sair do exílio e ir
para o governo. Não queria ficar indig-
nado. Queria agir.

É o que está faltando hoje para as
múltiplas camadas de opositores do
presidente Jair Bolsonaro: saber com
precisão o que devem fazer para ele
sair do Palácio do Planalto antes de 1º.

de janeiro de 2023, quando acaba o seu
mandato legal na presidência. Nada pa-
rece funcionar. Havia muita esperan-
ça, por exemplo, no depoimento do
ex-ministro Sergio Moro no inquérito
que apura as circunstâncias de sua de-
missão. Mas depois de oito horas de
declarações, o que realmente sobrou
de concreto foi a afirmação de que ele,
Moro, nunca disse que Bolsonaro co-
meteu algum crime nos quinze meses
de relacionamento que tiveram no go-
verno. Um ministro do STF proibiu
Bolsonaro de nomear um diretor para
a Polícia Federal; ele nomeou outro,
igual ao primeiro, e ficou por isso mes-
mo, pois não dá para continuar vetan-
do todos os nomes que o presidente
escolher. Esperava-se que o Supremo
se unisse para acertar alguma maneira
legal de deter ou depor Bolsonaro; mas
os ministros não estão de acordo entre
si.
A questão, no fim das contas, não é
estabelecer, numa escala de zero a dez,
o quanto Bolsonaro é um mau presi-

dente; seus inimigos acham que é
onze. A questão é saber quantos dos
513 deputados federais e 81 senado-
res, exatamente, vão votar a favor
de um impeachment – o único cami-
nho disponível para depor o chefe
de Estado sem violar a Constitui-
ção, coisa que requer força armada e
não é possível neste momento no
reino das realidades. A “sociedade”
não tem voto aí. Ninguém mais,
além dos parlamentares, está autori-
zado a julgar o presidente: ou dois
terços dos membros do Congresso
concordam em depor o homem, ou
ele não sai.
Para quem não quer mais a situa-
ção que está aí, a prioridade talvez
devesse ser outra - em vez de ficar
tentando tirar Bolsonaro agora, que
tal começar a trabalhar de verdade
para que ele não seja reeleito? O fato
é que vai ser preciso ganhar uma elei-
ção em 2022. Se vierem com candi-
datos parecidos com os de 2018, va-
mos continuar na mesma.

Por determinação do presi-
dente Jair Bolsonaro, o Minis-
tério da Defesa revogou, no
dia 17 de abril, três portarias
do Exército (46, 60 e 61) que
dificultavam o acesso do cri-
me organizado a munições e
armamentos extraviados das
forças policiais do País. As
portarias foram elaboradas a
partir de recomendação do
Ministério Público Federal
(MPF), que identificou falhas
no sistema de distribuição de

munições, armas e explosi-
vos, após investigar a origem
dos projéteis usados para ma-
tar a vereadora do Rio Mariel-
le Franco e seu motorista, An-
derson Gomes, em 2018.
A Procuradoria Federal dos
Direitos do Cidadão abriu in-
vestigação sobre uma possí-
vel interferência de Bolsona-
ro em atos exclusivos do
Exército para beneficiar gru-
pos armamentistas. O Co-
mando Logístico do Exército
(Colog) admitiu ao MPF que
revogou as portarias para
atender a “administração pú-
blica e as mídias sociais”.

E-MAIL: [email protected]
J.R. GUZZO É JORNALISTA E ESCREVE
AOS DOMINGOS

MPF investiga


interferência


Opositores não sabem o que
fazer para Bolsonaro sair do
Planalto antes de 1.º/1/ 2023

‘Que fazer?’


GOVERNO EM RISCO


JOSE LUCENA/FUTURA PRESS - 23/9/

Rio. Farta munição de fuzil apreendida em operação policial

● Casos de desvios de armas e munições dos quartéis do Exército nos Estados

PELO PAÍS

FONTE: INQUÉRITOS DO SUPERIOR TRIBUNAL MILITAR (STM) INFOGRÁFICO/ESTADÃO

Campinas

O capitão do Exército Thiago
Fonseca Lima e a tenente Ana
Carolina Pinheiro dos Santos
retiraram munições do 28º
Batalhão de Infantaria Leve
Levaram até o Rio, para
clubes de tiro
Na volta, o carro do casal foi
parado numa blitz. A Polícia
Rodoviária encontrou 1.
munições de calibre 5,
mm no veículo

1

2

3

N

Olaria

SP

RJ

MG

São
Paulo

Rio

OCEANO
ATLÂNTICO

Campinas

Atibaia

1 2
3

MAI/
2019

Serra

O tenente-coronel da reserva
Alexandre de Almeida foi preso
em flagrante, por desviar 110
armas do Serviço de
Fiscalização de Produtos
Controlados da 1ª Região Militar
para clubes de atiradores da
Serra, na Grande Vitória. Ele já
tinha sido o chefe da área de
controle de armas e munições
do Comando do Leste, que
abrange o Rio de Janeiro e o
Espírito Santo

RJ

MG ES

Vitória

N

OCEANO
ATLÂNTICO

Serra

ABR/
2019

Olinda

O cabo George Luís da Silva
Alves adulterou documentos de
controle de armas e munições do
7º Grupo de Artilharia de
Campanha, do Exército, em
Olinda. Após a fraude, ele vendeu
os armamentos para traficantes.
Em depoimento, ele disse que,
após o nascimento de uma filha,
passou a enfrentar dificuldades e
decidiu desviar o material. George
vendeu três fuzis. Uma das armas
foi negociada por R$ 7,5 mil

PE

CE RN

PI PB

BA SE

AL

N

OCEANO
ATLÂNTICO

Recife

Olinda

JAN/
2019

Brasília

Marcelo Rodrigues Gonçalves,
um sargento do Corpo de
Bombeiros do DF que dava
expediente na Presidência da
República, foi preso por desviar
armas e munições para facções
do Rio. As cargas seguiam pela
BR-040. Uma delas, composta
por 1.529 balas de fuzil , foi
apreendida já no Rio. Na casa do
bombeiro, a polícia civil
encontrou munições de calibre
5,56 mm e 9 mm e granadas

DF

GO MG

N

Brasília

2018

Fortaleza

Os soldados da Aeronáutica
Francisco de Assis e Jorge
Anderson Souza invadiram a
Base Aérea de Fortaleza e
roubaram três fuzis HK, uma
pistola, um carregador de fuzil
com 40 cartuchos e um
carregador de pistola com 15
cartuchos. O grupo aprisionou o
efetivo na garagem e usou uma
viatura militar para ir ao paiol. A
suspeita é de que o armamento
seria desviado para o tráfico

CE

PI

MA
RN

PB
PE

N
OCEANO
ATLÂNTICO

Fortaleza

MAI/
2016

Caçapava

No guarda-roupa da casa do
sargento do Exército Luan Diego
Rodrigues, em São José dos
Campos, a Polícia Civil encontrou,
duas granadas, 91 munições
7,62 mm e 84 de calibre 9 mm
.
O material foi desviado do quartel
6º Batalhão Infantaria Leve, em
Caçapava. A suspeita é de que o
material seria repassado para um
irmão do militar. A operação foi
questionada pela defesa de Luan
no processo que chegou ao STM


N

OCEANO
ATLÂNTICO

SP

MS MG

PR

São
Paulo

Caçapava

RJ

2015

Armas de quartéis abastecem facções


Investigações apontam desvios de mais de 200 mil projéteis; tentativa de aumentar controle sobre munição foi revogada por Bolsonaro


PARA ENTENDER

NA WEB
Portal. Mais
notícias de
política

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