O Estado de São Paulo (2020-05-11)

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O ESTADO DE S. PAULO SEGUNDA-FEIRA, 11 DE MAIO DE 2020 Metrópole A


Renata Cafardo


Jessica Fernandes abraçou e
beijou a mãe antes de ela ser
internada – e morrer vítima
do coronavírus há cerca de 20
dias. “Não posso mentir, fiz is-
so, senti que era uma despedi-
da.” Depois, foi visitar o pai.
Ambos se contaminaram. Ele
também foi parar no hospi-
tal, mas sobreviveu. A desem-
pregada, de 27 anos, é uma
das primeiras pacientes que
aceitou morar provisoria-
mente numa escola adaptada
de Paraisópolis para não pas-
sar o vírus a mais ninguém.

O Estado conversou por vi-
deoconferência com o grupo
que inaugurou, na semana pas-
sada, o espaço na escola esta-
dual que fica na entrada da fave-
la em São Paulo. Como é um cen-
tro de isolamento, jornalistas
não podem entrar no local. O
pedreiro Adeildo Barbosa da Sil-
va, de 46 anos, virou camera-
man da reportagem. Com seu
celular, ele mostrou as salas de
aula transformadas em dormi-
tórios, as camas hospitalares na
frente da lousa, agora sem fun-
ção. “Tudo é novinho e bem or-
ganizado. A comida é muito boa
também, os cozinheiros estão
de parabéns”, comentou.
O Wi-Fi gratuito funciona
bem. Foi uma das providências
dos organizadores do projeto
para que os residentes pudes-
sem manter contato com o
mundo de fora, ver filmes, se en-
treter. Visitas são proibidas, co-
mo em qualquer hospital com
pacientes da covid-19.
Adeildo encontra Jessica no
corredor, sentada, sozinha. Ela
diz que tem sido um momento
de reflexão depois de sua vida
virar do avesso por causa “des-
sa doença que ninguém conhe-
cia”. “É muita dor esse vírus pe-
gar a pessoa que você mais
ama”, diz, sobre a mãe. “Dá mui-
to medo. Minha casa tem um
cômodo só, como vou me curar
lá? Eu ia acabar saindo, não ia
ficar quieta”, continua a moça,
usando o argumento que fez o
projeto surgir na comunidade.
Jessica está na Escola Esta-


dual Etelvina de Goes Marcuc-
ci, que foi inaugurada na sema-
na passada como o primeiro
Centro de Isolamento para Co-
vid-19. Apenas moradores de Pa-
raisópolis podem usar o servi-
ço. Uma outra escola da comu-
nidade também já está pronta
para receber pacientes leves do
coronavírus e uma terceira, no
Jardim Ângela, começa a ser re-
formada, em parceria com a
Fundação Itaú. O programa in-
clui ainda uma quarta escola em
local ainda não definido.
“A ideia é menos de tratamen-
to e mais de tirar as pessoas de
circulação, para que elas dei-
xem de ser agentes contaminan-
tes”, explica a coordenadora do
projeto, da ONG Parceiros da
Educação, Ana Leite. Pacientes
de alto risco ou com a doença
não controlada não podem ser

direcionados para lá.

Nova casa. Mais de 40 mil pes-
soas vivem na favela de Paraisó-
polis, na zona sul de São Paulo.
Quando a doença começou a se
espalhar pelo local, o líder co-
munitário Gilson Rodrigues pe-
diu ajuda para alugar uma casa
no Morumbi, a fim de instalar
pacientes que não tinham ne-
cessidade de internação, mas
que acabariam infectando mui-
ta gente se ficassem circulando
ou isolados em suas moradias.
A quantidade de pessoas em
espaços pequenos e a pobreza
são grandes barreiras tanto pa-
ra o isolamento quanto para a
higiene, já que há compartilha-
mento de banheiro, pia, cama e
utensílios. Mais de 1 milhão de
pessoas moram em locais super-
lotados na capital, com mais de
três familiares por dormitório.
A ONG, então, decidiu que a
melhor opção seria transfor-
mar escolas, desocupadas pela
suspensão das aulas, em casas
para essas pessoas. Procurada,
a Secretaria Estadual da Educa-
ção cedeu as unidades. E, em
poucos dias, a ONG arrecadou
R$ 3 milhões com doadores físi-
cos, que pediram para seus no-
mes não serem divulgados.
Até sexta-feira, a escola abri-
gava os primeiros 25 residentes.
As duas unidades de Paraisópo-
lis podem receber até 510 pes-
soas. Jessica acha que algumas
pessoas não querem ir para lá
porque pensam que se trata de
uma “prisão”. Há horário para
comer e tomar banho, mas os
residentes ficam livres o dia to-
do para fazer o que quiserem.
Ana acredita que é apenas uma
questão de tempo e de a infor-
mação chegar aos moradores.
Os organizadores trabalham
com a possibilidade de o espaço
estar cheio em até dez dias.

Pingue-pongue. Adeildo mos-
tra com seu celular as mesas de
pingue-pongue, pebolim e para
jogar cartas, compradas para a
escola. Há ainda duas salas de
TV e um refeitório. Também fo-
ram levados computadores, im-
pressoras, equipamentos no-

vos para cozinha industrial.
Tudo vai ficar para a escola
estadual quando a pandemia
passar e as aulas voltarem. O go-
verno do Estado fala em uma
“possibilidade” de que os alu-
nos retornem em fim de julho
ou agosto. Independentemen-
te da data, o espaço vai passar
por uma desinfecção antes.
O pedreiro Adeildo é compa-
nheiro de quarto do açougueiro
Jose Luiz Nascimento, de 32
anos. “Eu não acreditava que
existia esse coronavírus, vivia

na rua, dizia que não era bode
para usar máscara”, conta. “Aca-
bei pegando e passando para
meio mundo”, lamenta, expli-
cando porque resolveu ir passar
um tempo no centro de isola-
mento. Ele conta ainda que,
quando descobriu a doença, li-
gou para os parentes em Per-
nambuco e todos choraram
sem parar. “Quando eu ficar
bom, vou voltar pra minha cida-
de, já decidi.” O açougueiro mo-
ra em Paraisópolis há dez anos.
Quem vai para o centro de iso-

lamento fica, em média, 15 dias.
A ideia é que uma das escolas de
Paraisópolis abrigue só mulhe-
res e outra, homens. Mas, como
ainda não está cheia, eles estão
separados por andares apenas.
Os pacientes são apresentados
a essa opção quando procuram
a UBS ou a AMA de Paraisópo-
lis. Os suspeitos de ter a doença
passam pelo teste, que é realiza-
do pelo Hospital Albert Eins-
tein. Quando o resultado é posi-
tivo, são orientados a trocar a
casa na favela pela escola.
O Einstein foi também res-
ponsável por montar o protoco-
lo de atendimento no centro.
Não há médicos no local. Os cui-
dadores, selecionados também
em Paraisópolis e que recebem
salário, medem saturação e tem-
peratura diariamente. Eles re-
passam informações aos médi-
cos da UBS e da AMA, que moni-
toram os pacientes por telefone
ou telemedicina. Uma ambulân-
cia fica disponível 24 horas para
levá-los ao hospital em caso de
agravamento do quadro. Há
também atendimento psicoló-
gico para quem requisitar.
“Do jeito que estava em casa,
achava que era melhor partir
já”, diz o marceneiro Sebastião
da Silva, de 80 anos, sentado na
cama perto de Adeildo. Ele afir-
ma que, agora que foi para o cen-
tro de isolamento, se sente bem
porque está sendo cuidado e
tem um lugar gostoso para dor-
mir. Os residentes se derretem
em elogios às cuidadoras, que
andam equipadas com másca-
ra, avental, touca e a face shield,
a proteção para o rosto todo.
Jessica diz que fica feliz em
ver “gente disposta a largar a
própria vida para cuidar da gen-
te”. “Vou ter saudade daqui
quando for embora. Agora nós
somos todos uma família para
combater esse vírus.”

Sem alunos. Aulas só serão retomadas no segundo semestre; estrutura deve ser mantida

PANDEMIA DO CORONAVÍRUS


COMO É O LOCAL

Adeildo. ‘Eu não acreditava
que existia esse coronavírus’

Jessica. ‘Vou ter saudade
daqui quando for embora’

VICTORIA RIBEIRO

CAIO CACIPORÉ

Cama própria. Cada unidade pode receber até 510 pessoas

São Paulo inicia hoje rodízio ampliado, 24 horas e nos fins de semana. Pág. A12 }


l Comunidade. Apenas mora-
dores de Paraisópolis podem
usar essa e a outra escola do
bairro. Está sendo montado um
centro no Jardim Ângela, tam-
bém para moradores de lá. Pa-
cientes de alto risco não podem
ir para o centro.

l Estrutura. Com dinheiro de
doações, foram instaladas ca-
mas hospitalares, espaço com
computadores para telemedici-
na, TVs e cozinha industrial.

l Diversão. Wi-Fi está disponí-
vel o tempo todo para conversas
com a família e assistir a filmes.
Há ainda mesas de pingue-pon-
gue, pebolim, cartas e salas de
TV.

l Regras. Visitas são proibidas.
Há horário para comer, tomar
banho, mas o restante é livre.

l Cuidado. Não há médicos,
quem atende aos residentes são
cuidadores que medem a tempe-
ratura e a saturação diariamente.
Há uma ambulância 24 horas e
contato com médicos.

CAIO CACIPORÉ

Na favela, escola


vira centro para


morador se isolar


VICTORIA RIBEIRO

‘Estado’ conversa com primeiros pacientes de Paraisópolis que


saíram de casa para não contaminar parentes e serem cuidados


LEO SOUZA/ESTADÃO

A comunidade. Pacientes são apresentados a essa opção de confinamento quando procuram UBS ou AMA de Paraisópolis e têm o teste positivo confirmado no Hospital Albert Einstein


NA WEB
Vídeo. A escola
que virou centro
de isolamento.

estadao.com.br/e/paraisopolis
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