O Estado de São Paulo (2020-05-11)

(Antfer) #1

ARQUITETO


Caderno 2


Joca Reiners Terron
poeta
“Foi um golpe para os amigos
que contavam com sua recupe-
ração. Com ele, morre uma vi-
são da literatura como arte soli-
dária, não solitária.”

Inez Viana
diretora e atriz
“Além dos contos, o acompa-
nhava também e vibrava com
seus posicionamentos e seu
olhar sobre o mundo. Conheci
jovens escritoras e escritores
por sua recomendação. Vai fa-
zer falta.”

Marcia Tiburi
filósofa e escritora
“Sérgio Sant’anna, gratidão
por sua imensa contribuição à
literatura brasileira.”

Xico Sá
escritor e jornalista
“Ninguém andava mais indigna-
do com o estado fascista das
coisas do que Sérgio Sant’Anna.
Mestre da ficção, perguntava
como chegamos à realidade bol-
sonarista. Lá se foi o artista do
conto brasileiro, como em um
voo na madrugada, vítima de
coronavírus. Descanse em paz.”

O fundamental escritor Sergio Sant’Anna, mais uma vítima da Covid-19,


surpreendia o leitor a cada narrativa ao desconstruir os próprios artifícios


A DESPEDIDA DO AUTOR QUE


SE DESAFIOU O TEMPO TODO


Guilherme Sobota


No país do conto, desbravado
por Rubem Fonseca e Dalton
Trevisan, o ambiente urbano viu
outro escritor do mesmo calibre
consolidar a obra mais sensual
de que a literatura brasileira já
teve notícia. Sérgio Sant’Anna
morreu neste domingo, 10, víti-
ma da covid-19. Sérgio Sant’An-
na foi talvez o pós-modernista
brasileiro mais importante da
nossa literatura, unindo sabedo-
ria com um profundo interesse
nas letras, ao mesmo tempo em
que nutria um ceticismo sobre
qualquer papel idealizado da lite-
ratura na nossa sociedade. Essa
visão influenciou mais de uma
geração de escritores. Ele estava
internado no Hospital Quinta
D'Or, na zona norte do Rio, há
uma semana.
Acostumado a distinções e re-
conhecimentos críticos, Sant’An-
na continuou criando até o fim
da vida, nos seus textos ficcio-
nais, uma ambientação sensual
para reflexões profundas que en-
contra poucos paralelos na lite-
ratura brasileira contemporâ-
nea. A proliferação de sua escrita
contrasta com a construção da
frase em seus textos, pensada co-
mo elemento estético-político,
sempre tratada com elegância
mesmo na ativa participação do
escritor nas redes sociais.
Profundamente interessada
pelo mundo ao seu redor, bem
como a histórias do passado, e
situada numa geografia tipica-
mente brasileira, carioca, a obra
de Sant’Anna se volta para os
conflitos íntimos dos seus varia-
dos personagens, colocando-os
em confronto com a sociedade,
tornando-se assim universais.
Incansável, o escritor sempre
buscou novos caminhos, man-
tendo em sua obra a coerência
de um universo particular.
Sua tendência à experimenta-
ção formal é facilmente detecta-
da no trânsito que sua obra man-
tinha com diversos gêneros, em-
bora ele mesmo reconhecesse
no conto o seu métier principal.
“Me dou melhor com formas
mais breves”, disse o escritor
num encontro com leitores em
Curitiba, há 10 anos. “Tenho
muito mais tendência à narrati-
va curta do que ao romance. No
romance, existe uma vocação.
Tem gente que é romancista qua-
se que nato. Tem gente que cria,
que puxa aqueles fios da meada,
por exemplo, a saga de uma famí-
lia inteira, que encontra persona-
gens secundários desenvolvi-
dos. Comigo é o contrário, te-
nho uma tendência à concentra-
ção. Inclusive, tem uma coisa
que eu sei explicar: o conto me
permite experimentar mais. Eu
gosto de ser lido — não é experi-
mentação no sentido de tornar o
livro absolutamente ilegível. É
experimentação no sentido de
procurar formas novas para ca-
da livro.” Mais recentemente,
porém, ele demonstrava inquie-
tação com a definição “conto”,
preferindo em seu lugar a pala-
vra “narrativas”.
Seus narradores, seguindo a
coerência, têm plena consciên-
cia da própria condição de nar-
rar, estabelecendo assim desde
o primeiro plano narrativo uma
metalinguagem que coloca em
jogo sempre as representações
da realidade, e não a realidade
em si, atribuindo sofisticação à
sua literatura.
Um dos exemplos dessa cons-
tatação é Um Crime Delicado
(1997, vencedor do Jabuti de
98), romance em formato de de-


sabafo, escrito por um crítico de
teatro, encenado como peça, tra-
balhado como crítica. Antonio
Martins é um crítico que se en-
volve em um processo criminal
após o seu envolvimento com
Inês, uma mulher manca que
causa nele uma profunda im-
pressão. O seu desabafo, que é
então a narrativa, é a sua versão
dos fatos. Ao colocar o narrador
no papel do crítico, Sant’Anna
cria um romance em que o críti-
co, no lugar de avaliar, é avalia-
do, gerando um curto circuito
de alta voltagem narrativa.
Torcedor dedicado do Flumi-
nense, o escritor também foi um
dos responsáveis por inserir o fu-
tebol no contexto da literatura
brasileira, em diversos contos,
como Páginas Sem Glória , do li-
vro de mesmo nome em 2012.
O escritor gostava de citar, em
textos ficcionais e nas entrevis-
tas, sua “experiência mineira”,
quando ele viveu 12 anos em Be-
lo Horizonte, mas o Rio de Janei-
ro acabou sendo sua principal
morada, real e literária. Em um
dos contos do seu último livro pu-
blicado em vida, Anjo Noturno
(2017), o narrador lê Proust ao
som dos “tiros de grosso calibre”.
“O Rio é mesmo o meu cená-
rio, pois nasci e vivi aqui”, disse
ele ao Estado na ocasião do lan-
çamento do livro. “Mas também
morei em Belo Horizonte por 12
anos, estada que, pela convivên-
cia com muitos artistas, foi fun-
damental na minha formação li-
terária. E, por incrível que possa

parecer, durante um certo tem-
po eu ouvia, constantemente, os
tiroteios, com armas de alto cali-
bre, vindo dos morros mais
próximos. E houve momentos,
sim, que me vi lendo alta literatu-
ra, ou escrevendo, ao som des-
ses tiroteios. Mas é também por-
que as balas não chegam a atin-
gir o prédio onde moro. E no con-
to mencionado há um episódio
em que um bandido adolescente
faz amor com sua namorada nu-
ma situação de alto risco. É im-
perdoável que o País não tenha
criado perspectivas para as crian-
ças e adolescentes das comuni-
dades mais pobres.”
Suas obras foram traduzidas
para alemão, italiano, francês, es-
panhol e tcheco, e ele venceu, en-
tre uma lista enorme de outros
prêmios, quatro vezes o Jabuti
(que ele dizia “que todo mundo
já ganhou”), três vezes o APCA e

o prêmio da Biblioteca Nacio-
nal. Diversos de seus trabalhos
foram adaptados para o cinema
e para o teatro.
Sant’Anna começou na litera-
tura em 1967, realizando enfim o
sonho de escrever. Inscreveu
um conto num concurso para
alunos da Faculdade de Direito
da UFMG, onde estudava, e fi-
cou em segundo lugar, receben-
do elogios da comissão julgado-
ra, liderada por Murilo Rubião
(o primeiro lugar ficou com
Humberto Werneck, seu amigo
e primo em segundo grau). Ele
passou a publicar na revista Estó-
ria , editada por Luiz Gonzaga
Vieira, e também no Suplemento
Literário de Minas Gerais, condu-
zido pelo próprio Rubião.
Começou em livro com os con-
tos de Sobrevivente , em 1969 (nas-
cido no contexto da ditadura mi-
litar, ferida histórica que seus li-

vros nunca perderam de vista,
sem, porém, nenhuma deriva-
ção moralizante), que ele mais
tarde renegou. Ao longo das dé-
cadas, dezenas de títulos aclama-
dos ajudaram a consolidar sua
obra no panteão da literatura
brasileira, como O Concerto de
João Gilberto no Rio de Janeiro
(1983), A Tragédia Brasileira
(1984), O Monstro (1994), Voo da
Madrugada (2003), O Livro de
Praga (2011) e Anjo Noturno
(2017), seu último livro publica-
do até agora.
Quando questionado qual era
o seu livro preferido (no podcast
da Companhia das Letras, a edi-
tora de seus livros, que comemo-
rou os seus 50 anos na literatura,
em 2019), Sérgio Sant’Anna res-
pondeu sem pensar muito: era A
Tragédia Brasileira (1987). “Eu
contei uma história muito cheia
de acidentes de percurso, há vá-
rias linguagens mas ao mesmo
tempo é uma história que me se-
duz muito, a história de uma mo-
cinha atropelada no Rio de Janei-
ro. Por várias circunstâncias que
estão no texto, ela é considerada
uma virgem santa. A partir daí
pego toda uma religiosidade, o
cemitério... Ela morre, mas fica
com o corpo tão intacto que vira
uma morta bonita. Por uma es-
tranha coincidência, escrevi es-
se livro ao mesmo tempo em que
o Amazona , um de ação, passado
num Brasil moderno, a Dionísia
é uma amazona que vai ascen-
dendo ao poder. Por uma razão:
cansava de um e pegava outro.”

Sérgio Andrade Sant'Anna e
Silva nasceu no Rio de Janeiro,
em 1941, e foi na biblioteca da
casa dos pais onde adquiriu o
gosto pela leitura, driblando a se-
veridade da mãe em bloquear o
acesso a títulos supostamente
não adequados à sua idade (ele
falava com humor sobre o Index
católico depositado em uma das
estantes da casa). Ele citava
Monteiro Lobato como primei-
ro interesse. Quando tinha 12
anos, mudou-se para a família pa-
ra a Inglaterra, onde aprendeu a
ler em inglês, língua em que leu
autores beat ainda na adolescên-
cia; Franz Kafka e Machado de
Assis também sempre estavam
no seu imaginário de escritor.
Quando volta ao Brasil, al-
guns anos depois se muda para
Belo Horizonte, onde cursa a fa-
culdade de Direito da UFMG, e
em seguida volta para a Europa
para concluir sua formação. Pas-
sa o 1968 em Praga, onde teste-
munha as revoluções sociais, e
entre idas e vindas volta a viver
no Rio de Janeiro, em 1977, quan-
do se torna professor da Escola
de Comunicação da UFRJ, onde
permanece até 1990. Antes dis-
so, também trabalhou na Petro-
bras e na Justiça do Trabalho. De-
pois, se dedica exclusivamente à
literatura, contribuindo para os
principais jornais do País (inclu-
sive o Estadão ).
Além das influências literá-
rias, Sant’Anna sempre colocou
em sua obra elementos de artes
plásticas e do teatro, presença
que ele justificava como provo-
cadora dos sentidos sem a tenta-
ção da imitação que os escrito-
res provocavam. Quadros fre-
quentemente se tornavam o
ponto de partida de textos, seja pe-
lo tema, seja pelo ambiente. Um de
seus ídolos era Marcel Duchamp, e
mais recentemente ele adorou a ex-
posição do artista chinês Li Zhang
Yang, no CCBB do Rio.
Em entrevista ao Estado em
2011, ele se indignava, bem hu-
morado, de estar chegando aos


  1. “Acho inacreditável. Acho
    um absurdo. Ninguém acha que
    vai chegar a uma idade dessas.
    Você sabe disso. Quando a gente
    tem 15 anos, não acha que vai che-
    gar aos 30, acha que 30 é velho
    pra burro. Isso me chateia.”


REPERCUSSÃO

Luiz Carlos Merten


Há quem reclame da tristeza do
Superman de Henry Cavill – An-
dré Azenha em Batman e Super-
man no Cinema: Histórias
, um li-
vro de resto muito interessante
sobre adaptações de HQs. Essa


tristeza é essencial na constru-
ção do personagem pelo diretor
Zach Snyder. Está presente em
Batman vs. Superman – A Origem

da Justiça , nesta segunda, 11, na
Globo, às 22h40.
O filme começa pela morte
dos pais de Batman, o que pode
parecer mera repetição do Ho-
mem-Morcego de Christopher
Nolan. Snyder tem outra agen-
da. Busca o mito grego. As tragé-
dias de pais e filhos, de filhos e
mães, de irmãos nutrem seu ci-
nema. Batman questiona a legi-
timidade de Superman perante
a humanidade. Lex Luthor tira
proveito.
Os super-heróis brigam entre
si, mas só até reverberar o pedi-
do de Superman para que o Mor-

cego o ajude a salvar sua mãe.
Batman, que já perdeu a dele
(e o pai), não resiste ao ape-
lo. Batman vs. Superman é pu-
ra tragédia grega, um filme
sobre a mãe. Tem Ben Af-
fleck como Batman e Gal Ga-
dot como uma certa comer-
ciante de antiguidades, Dia-
na Prince. Tem Cavill, miste-
rioso como a Garbo. Em seu
rosto hierático pode-se ler tu-
do, depende do espectador.
Snyder não serve o Universo
Marvel. Serve-se dele para
criar o próprio universo de
dor.

Sem intervalo


Rio Grande
(EUA, 1950.) Dir. de John Ford, com
John Wayne, Maureen O'Hara, Ben
Johnson, Claude Jarman Jr., Victor
McLaglen, Harry Carey Jr.

Luiz Carlos Merten

Fecho da trilogia da Cavalaria de
Ford. Num forte no território dos
apaches, John Wayne é o oficial
que tem de lidar com a ex-mulher
(Maureen O' Hara), que segue o
filho que se alistou para servir no
regimento do pai. Tem o proble-
ma dos índios, que só atacam,
mas Ford redimiu-se ao dar-lhes
grandeza em Crepúsculo de Uma
Raça , de 1964.

TEL. CULT, 20H05., P&B., 105 MIN.

QUATRO OBRAS

SÉRGIO SANT’ANNA H 1941 = 2020


Contos e narrativas.
Sant’Anna era atuante
também no Facebook

A melancolia


essencial de


‘Batman Vs


Superman’


DESTAQUE
TELECINE

Filmes na TV


l Amazona (1986)
Foi recebido com espanto pelo
público por ser uma espécie de
retrato transgressor sobre a li-
bertação da mulher

l A Senhorita Simpson
(1989)
Nesta fábula cheia de engenhosi-
dade, personagens de um livro
didático de um curso de inglês se
misturam aos alunos.

l O Monstro (1994)
Três narrativas, uma feita de
uma prisão do Rio de Janeiro,
outra em um hotel 5 estrelas em
Chicago e outra em uma cidade
no interior do Brasil

l O Voo da Madrugada
(2003)
Obra traz 16 contos marcados
pela experimentação formal e
pela psicologização do sexo

FABIO MOTTA/ESTADÃO

%HermesFileInfo:C-5:20200511:
O ESTADO DE S. PAULO SEGUNDA-FEIRA, 11 DE MAIO DE 2020 Especial H5

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