O Estado de São Paulo (2020-05-11)

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A6 Política SEGUNDA-FEIRA, 11 DE MAIO DE 2020 O ESTADO DE S. PAULO


Mateus Vargas / BRASÍLIA
Renato Vansconselos


O presidente Jair Bolsonaro mi-
nimizou ontem gastos com car-
tões corporativos da Presidên-
cia. Para apoiadores, mesmo
sem ser questionado, ele disse
que as despesas subiram por-
que teve de enviar aviões à Chi-
na para repatriação de brasilei-
ros que estavam isolados em
Wuhan, em razão do surto da
covid-19. “Teve quatro aviões
para China para buscar gente lá.
Daí gastou mesmo”, disse.
O Estadão mostrou, na edi-
ção de ontem, que gastos com
cartão corporativo da Presidên-
cia da República, usado para
bancar despesas sigilosas do
presidente, dobraram nos qua-
tro primeiros meses de 2020,
na comparação com a média do
mesmo período nos últimos cin-
co anos. A fatura entre janeiro e
abril foi de R$ 3,76 milhões, va-
lor que é lançado mensalmente
no Portal da Transparência do
governo, mas cujo detalhamen-
to é escondido pelo Planalto.
As declarações foram feitas
no fim da tarde de ontem, quan-


do Bolsonaro parou em frente à
residência oficial para conver-
sar com apoiadores. Ele retorna-
va de uma cerimônia de “chá re-
velação” na casa de deputado fe-
deral Eduardo Bolsonaro (PSL-
SP), seu filho, que será pai de
uma menina.
Confrontado por um cida-
dão, que afirmou que “a demo-
cracia pede sua renúncia ou im-
peachment”, o presidente res-
pondeu que fica no comando do
País até 1.º de janeiro de 2027.
Para seguir no cargo até essa da-
ta, Bolsonaro precisa vencer a
eleição presidencial de 2022 e
cumprir um segundo mandato
inteiro. “Vou sair em 1.º de janei-
ro de 27”, disse Bolsonaro.
Quando o homem mencio-
nou renúncia ou impeachment
do presidente, ele foi vaiado por
apoiadores de Bolsonaro que
vão diariamente ao Palácio do
Alvorada. Mais de 30 pedidos
de impeachment contra Bolso-
naro foram apresentados ao Le-
gislativo em cerca de 16 meses.
O presidente da Câmara, Rodri-
go Maia (DEM-RJ), já afirmou
que não é o momento de colo-
car o tema em pauta.

Vídeo. Nas redes sociais, Bolso-
naro, voltou a criticar medidas
de isolamento social aplicadas
por governos estaduais e fez re-
clamações sobre a imprensa.
Em duas publicações, Bolsona-
ro compartilhou vídeos em que

presta conta de ações desenvol-
vidas pelo governo federal, fala
mal da imprensa e dos governa-
dores e compila declarações fei-
tas por ele e sua equipe – sem
citar os momentos em que mini-
mizou a pandemia, quando a
chamou de “gripezinha”.
Assinado pela Secretaria de
Comunicação, a peça publicitá-
ria tem 4 minutos de duração e

começa com uma mensagem
criticando a imprensa.
Após apresentar uma série de
manchetes de jornais nacionais
e internacionais criticando a
postura do presidente na condu-
ção da pandemia, o vídeo lista
medidas do governo federal, in-
tercalando com declarações de
Bolsonaro e dos ministros Pau-
lo Guedes (Economia), Onyx
Lorenzoni (Cidadania) e Nel-
son Teich (Saúde).
O vídeo também foi comparti-
lhado pela conta oficial da Se-
com ontem à tarde. Na mensa-
gem, o perfil oficial do governo
escreveu a seguinte mensagem:
“Parte da imprensa insiste em
virar as costas aos fatos, ao Bra-
sil e aos brasileiros. Mas o gover-

no, por determinação de seu
chefe, seguirá trabalhando para
salvar vidas e preservar o empre-
go e a dignidade dos brasileiros.
O trabalho, a união e a verdade
libertarão o Brasil.”
O texto foi rapidamente criti-
cado por internautas, que vi-
ram semelhanças entre a parte
final do texto e o slogan nazista
“O trabalho liberta”, famoso
por ter sido afixado na entrada
do campo de concentração de
Auschwitz, na Polônia, onde se
estima que mais de 1 milhão de
judeus foram mortos.
Em outra publicação, Bolso-
naro criticou o governo do Mara-
nhão. O governador Flávio Di-
no (PCdoB) respondeu citando
passeio de jet-ski do presidente.

Matheus Lara


O dinamarquês Salah Sulai-
man, de 46 anos, disse em
seu canal no YouTube que a
polícia de Kuala Lumpur, ca-
pital da Malásia, demorou
cerca de uma hora para aten-
der uma ocorrência que ele
havia denunciado. Os ofi-
ciais provaram que o atendi-
mento, na verdade, demorou
só oito minutos. Com isso,
ele se tornou o primeiro pre-
so no âmbito da lei contra
fake news que começava a va-
ler no país asiático.

Isso aconteceu em 2018 e, dois
anos depois, as tentativas de pu-
nir a produção e disseminação
de informações falsas se intensi-
ficaram, sobretudo em meio à
pandemia do novo coronavírus.
No Brasil, ao menos três Estados
já aprovaram leis para punir
quem divulga fake news. A deci-
são mais recente é do Acre, onde
quem for flagrado distribuindo
desinformação na internet so-
bre a pandemia terá que pagar
multa de R$ 7,4 mil. A punição
pode chegar a R$ 2,2 mil no Cea-
rá e R$ 10,2 mil na Paraíba, onde
também foram aprovadas leis.
Segundo analistas, porém, o
discurso de proteger a saúde do
cidadão pode trazer riscos à liber-
dade de expressão e de impren-
sa. As leis aprovadas até agora
nos Estados têm informações
gerais sobre quem pode ser pu-
nido. Para a presidente da Co-
missão de Estudos Constitucio-
nais da Ordem dos Advogados
do Brasil (OAB) no Ceará, Arse-
nia Breckenfeld, que analisou a
regra aprovada em seu Estado,
a lei é dúbia por citar “meios ele-
trônicos ou similares”, o que
não representa clareza sobre
qual é plataforma.
A descrição é semelhante nas
leis aprovadas nos outros dois
Estados. Além disso, a falta de
critério sobre quem vai atestar
se a informação é falsa pode
abrir brechas para o cerceamen-
to da liberdade de imprensa,
avalia Marcelo Träsel, presiden-
te da Associação Brasileira de
Jornalismo Investigativo (Abra-
ji). “A imprensa é quem mais
produz informação sobre a pan-
demia. E muitas autoridades
são negacionistas. Se alguma de-


las receber o vídeo de um epide-
miologista defendendo a qua-
rentena, vai considerar ‘fake
news’?”, questiona. “Como as
leis são vagas, fica a critério das
autoridades decidir o que se en-
quadra e o que não”, afirma.
O Estadão levantou medidas
como essas em discussão já em
pelo menos mais cinco assem-

bleias legislativas do País. Em
São Paulo, o deputado estadual
Thiago Auricchio (PL) propõe
multa de até R$ 5,5 mil a quem
divulgar fake news sobre o coro-
navírus. “A desinformação é pe-
rigosa em qualquer momento,
mas, no quadro atual se torna
mais grave pois pode custar vi-
das”, diz o parlamentar. Proje-
tos similares tramitam nas as-
sembleias do Piauí, Amazonas,
Espírito Santo e Bahia.

Imprensa. O governador do Pa-
rá, Helder Barbalho (MDB) re-
vogou horas depois de sancio-
nar, na sexta-feira passada, uma
lei aprovada pelos deputados
que permitiria ao Estado mul-
tar quem divulgasse informa-
ções e opiniões “sem comprova-
ção de veracidade” com o objeti-
vo de provocar desinformação
ou para “manchar a honra pes-
soal de autoridades”.
A regra valeria inclusive para
a imprensa. “O texto aprovado
implica em vício forma e mate-
rial de inconstitucionalidade”,
explicou o governador após o
veto. Ele promete enviar um

projeto com nova redação para
a assembleia.
O movimento acontece após
uma sequência de casos de fake
news envolvendo a ação dos Esta-
dos frente à crise de coronavírus.
No Ceará, antes da aprovação da
multa, a administração de Cami-
lo Santana (PT) foi alvo de um
boato que utilizava áudio falso
para sugerir que o governador es-
taria usando a pandemia para de-
sestabilizar o governo do presi-
dente Jair Bolsonaro.
O áudio era atribuído a um su-
posto assessor do governo cha-
mado Ricardo Certi, mas ele não
consta da lista de servidores esta-
duais. De acordo com a Secreta-
ria da Casa Civil do Ceará, o caso
foi informado às autoridades pa-
ra que seja investigado.
Na Bahia, o governo estadual
apresentou, na terça-feira pas-
sada, projeto sugerindo multa
que pode chegar a R$ 18,8 mil a
quem divulgar informações fal-
sas sobre pandemias.
O projeto do governador Rui
Costa (PT) ressalva que textos
produzidos por jornalistas e tex-
tos opinativos não podem ser

considerados ilícitos. “Desco-
nheço a polêmica criada de que
nosso projeto para combater as
fake news iria cercear a liberda-
de de expressão. Jamais existiu
essa intenção. Mais do que nun-
ca, o momento é da sociedade
de unir para combater essa milí-
cia digital que tanto mal tem fei-
to ao nosso País”, diz Costa.

Risco. Para Cristina Tardágui-
la, diretora adjunta da Interna-
tional Fact-Checking Network,
entidade ligada ao Instituto
Poynter que reúne mais de 80
organizações de checagem de
informações, é um risco que o
Estado faça regulamentação de
um conceito que ainda não tem

uma definição clara. Ela relata
que experiências de regulamen-
tação em países como Tailân-
dia, Índia e Cingapura abriram
brechas para violação de direi-
tos humanos.
Para Cristina, os projetos e
multas contra fake news po-
dem levar a regulamentações
com consequências graves, co-
mo o caso de Sulaiman, citado
no início desta reportagem. “Já
estivemos em países onde legis-
lações foram aprovadas e que
passaram a vivenciar situações
de autocensura e de censura. É
enorme a possibilidade de a
América Latina replicar as fa-
lhas no combate à desinforma-
ção que aconteceram na Ásia.”
“É uma pena que essa discus-
são, que merece um enorme de-
bate democrático, esteja acon-
tecendo num momento em que
a conversa não está fluindo nor-
malmente (por causa da pande-
mia do coronavírus). Qualquer
tentativa de legislar sobre isso,
neste momento, é oportunis-
mo”, diz a diretora da Interna-
tional Fact-Checking Network.
/ COLABOROU PEDRO PRATA.

Estados buscam alternativas para combater a desinformação na internet; iniciativas esbarram na liberdade de imprensa, dizem analistas


PANDEMIA DO CORONAVÍRUS


Segundo presidente,


aumento nas despesas,


revelado pelo ‘Estadão’,


se deve a voo para buscar


brasileiros na China


AL/PB–9/5/

l Contraponto

l Gravação
O ministro do Supremo Tribunal
Federal Celso de Mello autorizou
PGR, AGU e o Sérgio Moro a te-
rem acesso integral ao vídeo da
reunião em que Bolsonaro teria
cobrado substituição na PF.

lNa Câmara dos Deputados, ao
menos seis projetos sobre puni-
ção a fake news foram apresenta-
dos desde 18 de março. Em cin-
co deles, deputados pedem a tipi-
ficação da disseminação de fake
news relacionadas a pandemias
ou a riscos à segurança sanitária
do País como crime no Código
Penal. Dois projetos pedem a cri-
minalização apenas para a disse-
minação de informações falsas
por parte de ocupantes de car-
gos públicos. / M.L.

Homens mexem


em lixo de sala


de imprensa


Com dois assessores infectados, Trump enfrenta vírus dentro da Casa Branca. Pág. A8 }


GABRIELA BILO/ ESTADÃO

Bolsonaro minimiza


gasto recorde de


cartão corporativo


Avô. Presidente deixou Alvorada para ir a ‘chá de revelação’ de filha de Eduardo Bolsonaro

“Qualquer tentativa de
legislar sobre isso (fake
news) , neste momento (de
pandemia) , é
oportunismo.”
Cristina Tardáguila
DIRETORA DA INTERNATIONAL
FACT-CHECKING NETWORK

Multa por fake news chega a R$ 10 mil


João Pessoa. Sessão plenária da Assembleia Legislativa da Paraíba, que aprovou lei com multa para quem disseminar notícias falsas sobre pandemias

Câmara discute


seis projetos


Marlla Sabino / BRASÍLIA

Apoiadores do presidente Jair
Bolsonaro reviraram o lixo em
frente à sala em que ficam jorna-
listas no Palácio da Alvorada, on-
tem, e gravaram um vídeo para
expor repórteres, cinegrafistas
e fotógrafos que permanecem
diariamente na residência ofi-
cial da Presidência da Repúbli-
ca, local onde Bolsonaro costu-
ma cumprimentar apoiadores e
conceder entrevistas coletivas.
Dois homens mexeram nas li-
xeiras para encontrar as notas
fiscais das refeições pedidas pe-
los jornalistas por meio de apli-
cativos de entrega de comida
durante o fim de semana. Vesti-
dos com camisetas com os dize-
res “direita raiz”, eles procura-
ram os nomes dos profissionais
e gravaram um vídeo para ata-
car a imprensa, comparando o
trabalho dos jornalistas com o
lixo deixado pelos profissionais
de imprensa no local.
A equipe de segurança do Pa-
lácio da Alvorada consultou os
jornalistas para saber o que ha-
via ocorrido, após ver que as li-
xeiras estavam reviradas. Em se-
guida, abordou os homens e pe-
diu a eles que apagassem o ví-
deo que haviam gravado. De-
pois disso, a dupla deixou a resi-
dência oficial.
Procurada, a assessoria de im-
prensa da Presidência da Repú-
blica afirmou que deve se mani-
festar por nota oficial, mas a res-
posta não foi enviada até a con-
clusão desta edição.
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