O Estado de São Paulo (2020-05-12)

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O ESTADO DE S. PAULO TERÇA-FEIRA, 12 DE MAIO DE 2020 Especial H3


Maria Luiza Tucci Carneiro
ESPECIAL PARA O ESTADO


Hoje em dia, possivelmente,
são raras as crianças que ouvi-
ram falar do Bicho-Papão que,
se ainda estiver habitando o
imaginário coletivo, deve provo-
car risadas e gerar novos aplica-
tivos. Mas, com certeza, as no-
vas gerações terão pesadelos e
medos reais da covid-19, figura
mutante com DNA que estraça-
lha os pulmões e deixa preto o
sangue dos contaminados. Por
enquanto, ela tem luz própria e
não teme nenhuma escuridão.
Dizia-se, nos séculos 14 e 15,
que negra era a cor da Peste Bu-
bônica que matou milhões de
pessoas na Europa durante a
Baixa Idade Média. Visível, pro-
vocava inchaços infecciosos no
sistema linfático, principalmen-
te nas regiões das axilas, virilha
e pescoço. Basta ler um dos con-
tos do Decameron (1348-1353),
de Giovanni Boccaccio que des-
creveu a peste em Florença, dis-
tinta da que já havia sido regis-
trada no Oriente. Coincidência
ou não, durante o pico daquela
doença, a contaminação ocor-
ria por meio de espirros ou tos-
se, sendo transmitida pelo ar.
Com uma diferença: no rosto
dos pestilentos cresciam bu-
bões no formato de um ovo, que
em seguida tomavam conta do
corpo, transformavam-se em
tumores mortais.
O desconhecimento científi-
co sobre a Peste Bubônica ou
Peste Negra favoreceu a caça às
bruxas cujos poderes sobrena-
turais colocavam em descrédi-
to as ações milagrosas da Igreja
Católica. Centenas de foguei-
ras foram acesas por toda a Eu-
ropa para purificar a sociedade
das heresias, seitas e ritos pa-
gãos, interpretados como peri-
gosos à ordem imposta pela
Igreja e assegurada pelos impé-
rios. Fica evidente – ao longo da
história, desde a antiguidade
aos dias atuais – que alguém de-
ve responder pelos “males que
afligem a nação”, expressão apli-
cada pela Inquisição ibérica e
pela Alemanha nazista que acu-
savam os judeus pela tragédia
que acometia seus povos.
Sempre tivemos medo das
doenças, pois optamos por vi-
ver no reino da saúde, cujas
fronteiras são frágeis, circunda-
das por armadilhas escancara-
das. Daí a necessidade emergen-
cial de rece-
bermos infor-
mações preci-
sas sobre as
trajetórias, os
diagnósticos
e as conse-
quências da
covid-19, que
assim como
as epidemias
históricas, ge-
ra medo e favo-
rece a circula-
ção de precon-
ceitos contra
grupos étni-
cos vulneráveis, carentes da
proteção do Estado. A ausência
de medidas preventivas para a
preservação da saúde da popula-
ção abre espaço para as prega-
ções religiosas que invocam a
Bíblia para anunciar que um
dos cavaleiros do Apocalipse –
o Pandemia – já está à espreita
para participar do Juízo Final.
Atualmente, o processo de ins-


talação do medo é ainda mais
rápido e impactante, favoreci-
do pela universalização da co-
municação midiática que ali-
menta o nosso imaginário, alte-
rando o nosso cotidiano e afe-
tando a nossa saúde mental.
Daí as situações epidêmicas fa-
vorecerem a circulação de per-
sonagens-símbolo como, por
exemplo, a Morte Ceifadora, fi-
gura tenebro-
sa cujas ori-
gens passam
pelo Apocalip-
se bíblico, o
Kronos, divin-
dade da mito-
logia grega e
Ankou, esque-
lética criatura
que os celtas
considera-
vam o “guia
das almas”.
Ao longo
dos séculos, a
atmosfera ca-
tastrófica gerada pela prolifera-
ção das doenças, impactou a ar-
te e a literatura europeias que,
em maior ou menor grau, regis-
traram o potencial destrutivo
da Senhora Morte. Neste con-
texto da luta entre a Vida e a
Morte, retomo aqui a figura
icônica do “Il Dottore” que,
com sua máscara de bico longo
recheada com ervas aromáti-

cas, surgiu na Europa durante
os surtos da praga negra e, nos
séculos 15 ao 18, inspirou perso-
nagens do teatro renascentista
na Itália e França e, ainda hoje,
veste os foliões do carnaval de
Veneza. Lembro também o
tríptico de Hieronymus Bosch
que, por volta de 1492, expôs o
medo do julgamento final; a fan-
tástica pintura de Viktor Vas-
netsov que, em 1887, colocou
em cena os quatro cavaleiros do
Apocalipse: Peste, Guerra, Fo-
me e Morte, posteriormente
reinterpretados por Cândido
Portinari nas suas obras Os Reti-
rantes (1944), Criança Morta
(1944) e nos seus painéis Guer-
ra e Paz (1952 e 1956).
Nesse mesmo ano de 1956, a
Senhora Morte foi protagonista
no filme sueco O Sétimo Selo, de
Ingmar Bergman, baseado no
seu conto O Retábulo da Peste.
Ao som da sinfonia de Carl Orff,
Carmina Burana, a Senhora
Morte, que não perde nunca, jo-
ga xadrez. Ambientado no obs-
curo mundo medieval, o filme
expõe os traumas e os medos do
nosso mundo abalado pela Se-
gunda Guerra Mundial, o Holo-
causto, a bomba atômica e, a
partir de agora, a covid-19.
Considerando que os cená-
rios das grandes epidemias e
pandemias marcam, há sécu-
los, a história da humanidade, é

possível traçarmos a cartogra-
fia das pestes, a começar pela
Peste Negra, cujo bactéria Yersi-
nia pestis vinha da Ásia Central.
O Brasil, como tantos outros
países do Terceiro Mundo, não
ficou incólume às pestes e aos
medos nas suas múltiplas ver-
sões. Basta retroceder ao ano
de 1856 quando a Província do
Grão-Pará, idealizada como “o
paraíso na terra”, ganhou ares
infernais. Os médicos higienis-
tas afirmavam que, no ano ante-
rior, a Senhora Morte desem-
barcara em Belém com um gru-
po de portugueses que viaja-
vam a bordo da galera Defen-
sor, foco da propagação da en-
fermidade. Um ano depois,
mais de mil óbitos foram conta-
bilizados em Belém espalhando
terror e desconfianças. Os jor-
nais criticavam a falta de uma
política de saúde pública, o uso
de água insalubre pelas popula-
ções pobres, além de alertarem
para o perigo dos corpos sepul-
tados nos fundo dos quintais,
em valas ou abandonados ao
longo dos caminhos ribeiri-
nhos, servindo de comida para
os animais indiferentes à vin-
gança divina. As benzedeiras, re-
zadores, ervateiros e curadores
ofereciam seus remédios de pro-
teção para curar qualquer doen-
ça; os clérigos reforçavam que a
doença persistia como uma pu-
nição, exigindo muitas procis-
sões e vigílias para aplacar o cas-
tigo supremo.
Depois de tudo isso, milhares
de mortos foram contabiliza-
dos durante outras tantas doen-
ças recicladas de tempos em
tempos: gripe espanhola, tuber-
culose, tifo, cólera, mal de Cha-
gas, malária, a aids, chikun-
gunya, dengue, afetando (como
ainda afetam) os mais pobres.
Em pleno século 21, apesar dos
avanços da ciência, o mundo
surtou novamente diante de
um novo “bicho” chamado co-
vid-19, detectado em dezembro
de 2019, em Wuhan, na China. A
ameaça real transformou-se
em um pesadelo que, por sua
vez, alimenta medos coletivos,
expondo temores diante do des-
conhecido. Sob o impacto gera-
do pela Senhora Morte, o mun-
do surtou, o bicho viralizou!
Estamos diante de um novo
divisor de águas, símbolo da
ruptura que marcará as frontei-
ras entre o antes e o durante,
pois a extensão do depois ainda
é uma incógnita. Certamente,
não seremos os mesmos após a
covid-19, um “bicho-extermina-
dor” de vidas. O morcego, por
enquanto, desponta como o
principal “bode expiatório”,
acobertando o colapso mundial
dos sistemas de saúde incapa-
zes de acudir os vivos e enterrar
os mortos. Esta nova peste colo-
ca em xeque a capacidade do Es-
tado que, neste momento, está
despreparado para combater es-
te ser estranho, mutante, redon-
do, invisível a olho nu. Da mes-
ma forma como o isolamento
social proposto pelos profissio-
nais da saúde garante a vida, a
negligência estatal pode multi-
plicar os óbitos. Deixamos em
aberto o debate sobre o papel
do Estado na vida dos cidadãos
pautado nos princípios da digni-
dade da pessoa humana, no
equilíbrio social e no respeito
ao conhecimento científico.

] MARIA LUIZA TUCCI CARNEIRO
É HISTORIADORA E DOCENTE
SENIOR DO DEPARTAMENTO
DE HISTÓRIA, FFLCH-USP

Caderno 2


1000 filmes do Merten


AS PANDEMIAS


J


á imaginou ver a jovem Jeanne
Moreau ao som da trilha de jazz
improvisada por Miles Davis
num clássico que antecipou a nou-
velle vague? Corre para o serviço de
streaming da Mube.
Quer uma intrigante discussão so-
bre lendas urbanas da cidade de São
Paulo? É só ir para o Spcine Play,
cujo catálogo também oferece fil-
mes da Mostra de São Paulo, da Mos-
tra do Audiovisual Negro, do É Tu-
do Verdade e do Festival Entreto-

dos, e muito mais.
Em tempos de pandemia, existem
outros serviços de streaming que não
os da Netflix e da Amazon, com uma
cartela mais alternativa. É só escolher,
pagar por mês – ou desfrutar de uma
semana de experiência – e você poderá
desfrutar de muita coisa boa e até rara
para ver em casa.

O Estranho Caso de Angélica
O português Manoel de Oliveira vi-
rou um dos autores preferidos do pú-

blico da Mostra. Morreu centenário,
cultuado por filmes como esse, sobre
fotógrafo que se apaixona por noiva
morta, e ela ganha vida através da len-
te de sua câmera. O neto do diretor,
Ricardo Trêpa, a bela espanhola Pilar
López de Ayala, a trilha de Chopin.
Espiritismo, ou uma sutil indagação
sobre o cinema enquanto linguagem?
Spcine Play.

Nasceu o Bebê Diabo em São Paulo
Esse é para quem gosta de bizarri-

ces. Muitas lendas urbanas viraram te-
mas de reportagens na mídia sensacio-
nalista. O Bebê Diabo, a Loira do Ba-
nheiro, a Gangue do Palhaço. A direto-
ra Renata Druck investiga todos esses
casos num documentário que passou
no É Tudo Verdade de 2002. É mais do
que tempo de ganhar o público de uma
nova geração, atraído por terror. Spci-
ne Play.

Ascensor para o Cadafalso
O clássico de Louis Malle precursor
da nouvelle vague francesa. Jeanne Mo-
reau convence o amante a matar seu
marido e, para ter um álibi, anda por
Paris – ao som da trilha que Miles Da-
vis improvisou no estúdio vendo o fil-

me. O plano de assassinato seria per-
feito, se não fosse o elevador. Mube.

Anjos da Cara Suja
O clássico da Warner nos anos
1930, com direção de Michael Cur-
tiz e interpretações de James Cag-
ney, Pat O’Brien e Humphrey Bo-
gart. Esse é para admiradores de fil-
mes antigos. Cagney e O’Brien cres-
ceram na mesma vizinhança, o pri-
meiro virou gângster, o segundo, pa-
dre. Bogart faz o comparsa de Cag-
ney e o filme encontra-se na Oldflix,
que tem a maior variedade de clássi-
cos do cinema e da TV do passado,
para (re)ver no streaming. Entre lá e
vai ver que são muitas atrações.

Assim como epidemias históricas, a covid-19 gera temor e favorece a circulação


de preconceitos contra grupos étnicos vulneráveis, carentes da proteção do Estado


E OS MEDOS SOCIAIS


‘Doutor Schnabel’. Quadro de Paul Fürst, do século 17

EUGEN HOLLÄNDER

NOVA PESTE COLOCA EM
XEQUE A CAPACIDADE
DO ESTADO EM
COMBATER A DOENÇA

HOUVE UMA RUPTURA
TOTAL E A EXTENSÃO DO
DEPOIS AINDA É UMA
INCÓGNITA

‘O Triunfo da Morte’. De 1562, tela de Pieter Bruegel, o Velho: a morte ceifa vidas e não deixa que ninguém escape

REPRODUÇÃO

Na Mube, um clássico de Malle

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