O Estado de São Paulo (2020-05-12)

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O ESTADO DE S. PAULO TERÇA-FEIRA, 12 DE MAIO DE 2020 A


Internacional


WASHINGTON


A China ameaçou ontem reta-
liar os EUA, a menos que Do-
nald Trump reverta sua deci-
são de limitar vistos para jor-
nalistas chineses. O atrito é
mais um capítulo da disputa
diplomática entre Washing-
ton e Pequim, uma rivalidade
que Jean-Pierre Cabestan,
cientista político da Universi-
dade Batista de Hong Kong,
chama de “nova guerra fria” –
termo que vem sendo cada
vez mais usado por outros
analistas.
A última fricção é resultado
de uma queda de braço que co-
meçou em fevereiro, quando os
EUA impuseram restrições às
ações da imprensa estatal da
China no país, descrevendo o
trabalho dos jornalistas chine-
ses como “propaganda”. Em
março, Pequim expulsou 13 jor-
nalistas americanos, todos cor-
respondentes do New York Ti-
mes, do Washington Post e do
Wall Street Journal.
“Lamentamos a decisão erra-
da dos EUA, que é uma escalada
da supressão política da mídia
chinesa”, disse ontem o porta-
voz da chancelaria da China,
Zhao Lijian. “Os EUA estão en-
trincheirados em uma mentali-
dade da Guerra Fria e em pre-
conceitos ideológicos.” Mas a
disputa entre as duas maiores
economias do mundo não está
restrita ao jornalismo.
EUA e China vinham em rota
de colisão antes do coronavírus
aparecer. Desde que Trump as-
sumiu, em 2017, a Casa Branca
declarou uma guerra comercial
ao governo chinês, acusado de
manipular a moeda e de jogar
baixo, impondo aos america-
nos um déficit comercial de
US$ 419 bilhões com a China.
Trump colocou tarifas sobre
produtos chineses. A China res-
pondeu, taxando importações
dos Estados Unidos. E a relação
se deteriorou. “O nível de con-
fiança entre os dois países che-
gou ao ponto mais baixo desde
que as relações diplomáticas fo-
ram estabelecidas, em 1979”,
disse Wang Huiyao, diretor do
Center for China and Globaliza-
tion, de Pequim.
A pandemia, em vez de criar
um clima de cooperação, dei-
xou o afastamento mais eviden-
te. A briga sobre a origem do
vírus é um reflexo dessa dispu-
ta. Em janeiro, Trump elogiava
o esforço do presidente Xi Jin-
ping contra o surto. “A China
vem trabalhando duro para
conter o coronavírus. Os EUA


agradecem o esforço e a trans-
parência (dos chineses)”, dis-
se Trump.
A boa vontade da Casa Bran-
ca durou até que a pandemia
chegasse aos EUA. Criticado
por ter minimizado a força do
coronavírus, a popularidade de
Trump caiu e seu rival democra-
ta Joe Biden consolidou sua li-
derança nas pesquisas, dificul-
tando o caminho para a reelei-
ção na disputa de novembro.

Nas últimas semanas, a cam-
panha de Trump elegeu a China
como bode expiatório. Agora, o
presidente e os seus aliados sus-
tentam que o vírus foi criado
em um laboratório chinês – e o
governo comunista da China se-
ria responsável pela catástrofe
econômica mundial.
Ontem, 18 secretários de Jus-
tiça de Estados governados por
republicanos enviaram uma car-
ta ao Congresso dos EUA pedin-

do uma investigação sobre o pa-
pel da China na origem da pan-
demia. “Os erros deliberados
do governo chinês são responsá-
veis pela morte de 80 mil ameri-
canos”, escreveram.
O governo chinês afirmou
que as acusações de Trump são
uma tentativa de desviar a aten-
ção da incompetência do presi-
dente e melhorar suas chances
de reeleição. A divulgação da
teoria de que o vírus foi criado
em um laboratório evocou com-
parações com as informações
de que o Iraque tinha armas de
destruição em massa, que o go-
verno George W. Bush usou pa-
ra justificar a guerra, em 2003.
“A China não será o Iraque”, tui-
tou, no sábado, o porta-voz da
chancelaria, Hua Chunying.
Os últimos 40 anos haviam si-
do de relativa cooperação entre
os dois países. As diferenças
ideológicas foram deixadas de
lado em favor de uma relação
simbiótica que rendeu bons re-
sultados econômicos. Milhares
de empresas americanas se esta-
beleceram em território chinês


  • a GM, por exemplo, vende
    mais carros na China do que
    nos EUA. Quase 400 mil jovens
    chineses estudam em escolas e
    universidades americanas.


Analistas, no entanto, dizem
que o desenvolvimento econô-
mico – uma média de 9% ao ano
desde 1989 – tornou a China
mais ambiciosa e Pequim come-
çou a reivindicar seu espaço no
tabuleiro geopolítico global,
com investimentos na África,
Oriente Médio e na América La-
tina. Para Chen Zhiwu, profes-
sor da Universidade de Hong
Kong, o ponto de inflexão foi a
volta da ortodoxia comunista,
desde que Xi assumiu a presi-
dência, em 2013.
“Entre 1978 e 2012, o Partido
Comunista da China (PCCh)
deixou de lado suas raízes e se
concentrou no desenvolvimen-
to econômico. Depois que o
país se consolidou, o PCCh vol-
tou a priorizar o projeto inicial
de construção do socialismo”,
afirmou Zhiwu esta semana ao
jornal Financial Times.
Um sinal da mudança de ven-
tos foi dado por Xi, em 2016. De-
pois de ter garantido aos EUA
que não estava interessado em
montar bases militares em
ilhas artificiais no Mar do Sul da
China, ele enviou baterias an-
tiaéreas e outros sistemas de de-
fesa para a região, pegando de
surpresa o governo do então
presidente Barack Obama.

Outro indício de que as rela-
ções entre os dois países esfria-
ram é o nível de investimentos
chinês nos EUA, que caiu de
US$ 45 bilhões, em 2016, para
US$ 5 bilhões, no ano passado.
De acordo com analistas, a Chi-
na é hoje um dos poucos temas
capazes de unir democratas e
republicanos no Congresso.
Por isso, a previsão é de que
Trump e Biden travem uma
guerra durante a campanha, no
segundo semestre, para deter-
minar quem pode jogar mais du-
ro com a China.
Observadores mais cautelo-
sos, no entanto, dizem que é
preciso ter calma ao analisar as
disputas diplomáticas entre chi-
neses e americanos. Na semana
passada, Robert Lighthizer, re-
presentante comercial dos
EUA, e Steven Mnuchin, secre-
tário do Tesouro, participaram
de uma teleconferência com
Liu He, vice-premiê da China.
Depois da conversa, os dois la-
dos disseram que as negocia-
ções comerciais progrediram –
o que seria, segundo alguns ana-
listas, um sinal de que a retórica
agressiva pode não representar
a essência da relação entre
Washington e Pequim. / NYT, WP
e REUTERS

PANDEMIA DO CORONAVÍRUS


ALY SONG/REUTERS

O


coronavírus nos lembrou o quanto a
2.ª Guerra ocupa a imaginação do
Ocidente. Milhões de pessoas morre-
ram em seis anos de conflito, um horror que
serve de referência para grande parte do
mundo. O secretário-geral da ONU, António
Guterres, disse que o vírus representa “a cri-
se mais desafiadora desde a 2.ª Guerra”. Na
semana passada, Donald Trump descreveu o
“ataque” da doença como sendo “pior que
Pearl Harbor”, ação do Japão, em 1941, que
levou os EUA ao conflito. Boris Johnson,
sempre invocando seu herói Winston Chur-
chill, usou seu legado. “A luta contra o coro-
navírus exige o mesmo espírito que Chur-
chill teve há 75 anos”, disse.

Os historiadores olham para a experiência
da 2.ª Guerra em busca de lições úteis para o
momento atual. Na Europa, o trauma se es-
conde em apelos por unidade e solidarieda-
de. Nos EUA, a grande mobilização de recur-
sos e mão de obra em tempo de guerra refle-
te uma ameaça existencial parecida. Mas,
claro, há um limite para essas metáforas.
Em termos geopolíticos, Trump e os nacio-
nalistas do mundo todo estão mais interessa-
dos em romper do que preservar a ordem
política e econômica do pós-guerra. O euro-
ceticismo está tão forte quanto estava antes
do vírus. E, para grande parte da Ásia e da
África, a 2.ª Guerra não significou a paz, mas
o início da descolonização, outra história
impregnada de sangue e atrocidades.
Alguns especialistas otimistas buscam si-
nais de que a pandemia pode significar reno-
vação. “Podemos perdoar a linguagem egoís-
ta de nossos líderes se isso vier acompanha-

do do espírito da guerra, que redefiniu e ex-
pandiu os limites do possível”, escreveu Mar-
garet MacMillan, historiadora da Universi-
dade de Oxford. “O que parecia fantástico –
produzir penicilina em massa, dividir o áto-
mo, fabricar motores a jato – rapidamente
se tornou realidade. Essa inovação também
pode acontecer agora.”
Mas figuras como Trump e Johnson, cujos
partidos têm aversão a gastos sociais, não
são o tipo de estadistas que defendiam o
New Deal ou a criação do Serviço Nacional
de Saúde britânico. “Muitas das ações que
colocaram os EUA em pé de guerra, nos
anos 40, foram consequências da tentativa
de Franklin Roosevelt de equipar o governo
para superar a Grande Depressão”, escreveu
Charles Edel, da Universidade de Sydney. “A
criação de novas agências e organizações
importava menos do que a disposição de ex-
perimentar com ousadia, persistência e rapi-

dez para aliviar a vida de milhões de america-
nos. Esses hábitos foram esquecidos.”
Talvez a maior lição da 2.ª Guerra não seja
liderança, coragem ou sacrifício, mas algo
mais tectônico e imperceptível. “Do ponto
de vista do século 21, se existe uma grande
narrativa histórica que faz jus ao significado
de 1945, não é a de organizações internacio-
nais, como as instituições de Bretton Woods
ou os Estados de bem-estar social”, escre-
veu Adam Tooze, da Columbia University.
“É, antes de mais nada, o que os historiado-
res do século 21 chamam de ‘Grande Acelera-
ção’: a dramática apropriação da natureza
pela humanidade. A 2.ª Guerra, em suas di-
mensões globais e em sua intensidade violen-
ta, antecipou e impulsionou esse processo,
que continua até hoje.”

]
É COLUNISTA

l Donald Trump encerrou abrup-
tamente ontem sua tradicional
coletiva sobre o coronavírus após
brigar com uma repórter de ori-
gem chinesa da CBS. Weijia
Jiang perguntou ao presidente
por que ele insistia em dizer que
os EUA estavam se saindo me-
lhor do que qualquer outro país
na aplicação de testes contra a
doença.
“Por que isso importa? Por
que isso é uma competição glo-

bal para você, se todos os dias
os americanos ainda estão per-
dendo suas vidas?”, questionou a
repórter. “Talvez essa seja uma
pergunta que você deva fazer à
China”, retrucou Trump.
“Senhor, por que você está
dizendo isso especificamente
para mim?”, devolveu Jiang.
“Não estou dizendo isso especifi-
camente para ninguém. Venho
dizendo isso a qualquer pessoa
que faça uma pergunta desagra-
dável como essa”, disse Trump,
antes de tentar chamar outro
jornalista e encerrar a coletiva.
Jiang nasceu na China, mas che-
gou aos EUA quando tinha 2
anos. / WP

Disputas diplomáticas entre EUA e


China se intensificam durante epidemia


]
ANÁLISE: Ishaan Tharoor / THE WASHINGTON POST

Sombra da 2ª Guerra


paira sobre pandemia


Trump discute


com jornalista e


encerra coletiva


Brigas geopolíticas e comerciais se agravaram durante surto, principalmente após a ofensiva de Trump, culpando os chineses pela


disseminação do vírus; analistas já tratam atual momento como ‘uma nova guerra fria’ entre as duas maiores economias do mundo


Disney
reabre

em
Xangai

Chinesa faz
selfie na reaber-
tura de parque
em Xangai. On-
tem, os ingres-
sos se esgota-
ram rapidamen-
te. Na entrada,
funcionários
mediam a tem-
peratura e dis-
tribuíam álcool
em gel para os
visitantes.
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