O Estado de São Paulo (2020-05-13)

(Antfer) #1

POESIA X


Poeta contador de


histórias, Mia Couto


avalia a dura realidade


criada pela quarentena


Ubiratan Brasil

O escritor moçambicano Mia
Couto jamais duvidou da força
da literatura para, especialmen-
te em um país tão marcado
por problemas como o seu, per-
mitir que o povo não abando-
ne sua capacidade de sonhar.
Mia comunga da ideia de que a
escrita pode ajudar a inventar
(e revisitar) um tempo. Movi-
do por tal convicção, escreveu
livros cuja prosa poética encan-
ta por se aproximar da oralida-
de, como Terra Sonâmbula e O
Outro Pé da Sereia (editados pe-
la Companhia das Letras).
A pandemia do novo corona-
vírus, no entanto, obrigou o es-
critor Mia a recolher a exuberân-
cia de sua prosa para liberar o
cientificismo social do biólogo
Eugênio (seu verdadeiro no-
me) e sua visão mais realista.
Passando a maior parte do tem-
po em sua casa, em Maputo, ele
acompanha a evolução da doen-
ça com um olhar de cientista,
como se observam nessas res-
postas, enviadas por e-mail.

lO isolamento social já foi trata-
do de diversas formas pela litera-
tura. Em Moby Dick , por exem-
plo, a aventura de Ishmael reve-
la a fragilidade humana diante do
inesperado, do desconhecido.
Você acredita que a literatura
pode preencher vazios como os
que agora surgem?
Na verdade, reli no mês passa-
do A Peste , de Albert Camus.
Mas a leitura foi dolorosa de-
mais. O mais que leio agora é li-
teratura científica. Sou biólogo
e não me conformo com a igno-

rância que mantemos sobre os
vírus e as bactérias. Essa igno-
rância está muito ligada a uma
visão antropocêntrica que man-
temos do mundo e da vida. Sa-
bemos mais sobre o urso pan-
da do que sobre os vírus ou so-
bre os morcegos que são os
hospedeiros da maior parte
dos coronavírus. E, no entan-
to, os morcegos foram capazes
de desenvolver mecanismos
imunológicos de modo a que
não adoeçam mesmo com gran-
de cargas virais. Encapsulam
os vírus e não chegam a criar
as respostas imunes agressivas
que, no caso deste coronaví-
rus, nos acabam por matar por
via desse fenômeno chamado a
cascata imunológica.

lComo assim?
Os vírus não podem ser enten-
didos como os maus da histó-
ria, os vilões que merecem ser
estudados apenas por motivos
médicos. Há ainda dúvidas na
comunidade científica sobre se
considerar essas criaturas co-
mo seres vivos ou partículas
inorgânicas. Seja o que forem,
os vírus são os grandes maes-
tros da orquestra da Vida, são
os mensageiros e agentes de
troca entre o mais diverso patri-
mônio genético. Eles não estão
“fora” nem “longe”, não vivem
nos laboratórios. Eles estão on-
de está a vida, estão dentro de
nós. O nosso genoma incorpo-
ra elementos virais. Nós somos
feitos a partir deles. Os mamífe-
ros não seriam capazes de de-
senvolver placenta se não tivés-
semos incorporado genetica-
mente esses elementos virais.

Falo de tudo isso porque essa
pandemia não será a última. Já
estávamos avisados que viria al-
go parecido. E ficamos à espe-
ra, embevecidos com o nosso
poderio tecnológico e com a
ilusão da nossa onisciência.

lMais de uma vez, um fenôme-
no real inspirou fortemente sua
escrita. Seria o caso novamente,
com a covid-19?
Não creio. Tenho quase pudor
por pensar nesses termos com
essa tragédia. Aconteceu o
mesmo com a guerra. Esse
tempo era demasiado cruel, de-
masiado próximo para que eu
pensasse nesse
drama em ter-
mos literários.
Depois, suce-
deu. Mas veio
por via das histó-
rias, do relato de
pessoas. Não era
a guerra em si
mesma que me
interessava, mas
o que ela negava
em termos da
preservação da
nossa humanida-
de. Pode ser que
relatos dessa
pandemia venham a funcionar
como inspiração. Mas agora
sou apenas um cidadão que se
junta à luta pela prevenção da
epidemia. Faço parte da Co-
missão Técnica e Científica de
Assessoria ao governo (de Mo-
çambique) para a covid-19. Tra-
balho com os meios de comu-
nicação social e com as lideran-
ças comunitárias para difundir
mensagens educativas para a

contenção da doença. O modo
de fazer poesia, agora, é estar
na luta pela defesa da vida e da
verdade, junto com os demais
colegas jornalistas, regressan-
do à condição de jornalista co-
mo já fui durante 12 anos.

lHá muita expectativa sobre o
que está por vir – do ponto de
vista emocional, o que mudará
na humanidade depois da pande-
mia: a solidariedade será maior?
Haverá mais transcendentalismo
ou materialismo?
Não sou muito otimista em re-
lação a uma mudança total.
Não iremos despertar amanhã,
no final desse
surto epidêmi-
co, com uma
mentalidade co-
letiva nova. Te-
nho dúvidas das
mudanças que
se alcançam por
via do medo.
Gostaria, no en-
tanto, de acredi-
tar que haverá li-
ções importan-
tes: por exem-
plo, uma percep-
ção mais clara
da importância
do Estado, dos sistemas públi-
cos de saúde e de educação, do
ideal da cooperação solidária
em vez da competição e da ex-
clusão. Gostaria que ficasse
mais clara a falência das recei-
tas neoliberais que, em países
como Moçambique, acabaram
destruindo as conquistas so-
ciais dos primeiros anos da In-
dependência. Se for verdade
que a vacina da BCG ajuda a

proteger contra o coronavírus,
os moçambicanos só podem
agradecer esse período de po-
der popular em que a totalida-
de da população se beneficiava
de campanhas de vacinação e
de cuidados médicos básicos.
Não será por causa da medici-
na privada, inspirada no capita-
lismo selvagem, que nos ire-
mos proteger nem nesta pan-
demia nem em nenhuma outra
situação de sofrimento.

lDo ponto de vista político, acre-
dita que haverá alguma mudança
na forma de condução dos gran-
des mandatários?
Receio que não. Veja como os
seguidores de Trump conti-
nuam apoiando a sua lideran-
ça, mesmo depois das suas pos-
turas e declarações completa-
mente imbecis e criminosas.
Não quero falar do Brasil, mas
receio que seja ainda pior. Os
mandatários, conforme refere
a pergunta, mandam porque
há quem lhes obedeça cega-
mente. No final de tudo, have-
rá ainda quem celebre o popu-
lismo criminoso em troca de
uma falsa promessa de salva-
ção. Tenho, apesar de tudo, es-
perança que a máscara caia pa-
ra alguns que não usaram más-
cara quando era um dever cívi-
co e de respeito pela vida.

lComo biólogo, é surpreenden-
te acompanhar pesquisadores de
várias partes do mundo trocando
informações em busca da vacina,
algo até então inimaginável em
um setor tão competitivo?
Num caso extremo como esse,
não vejo um conflito insuperá-

vel entre pessoas e empresas,
entre interesses públicos e pri-
vados. Acredito que, quando
se encontrar a vacina, ela será
distribuída de forma bastante
acessível. Os lucros virão de-
pois, porque este vírus veio pa-
ra ficar e vai ser preciso vaci-
nar durante anos. E muito pro-
vavelmente as vacinas terão
que ser ajustadas em função
das mutações e das estirpes no-
vas dos vírus. Nessa fase, sim,
a descoberta cumprirá a sua vo-
cação de fazer lucro. O mundo
não vai mudar a ponto de dei-
xar de ser conduzido pelas ra-
zões de mercado. Devia aconte-
cer agora um momento de rup-
tura, com a imposição dos valo-
res sociais e dos sistemas na-
cionais de saúde sobrepondo-
se à medicina como um meio
de negócio privado. Há uma
criatura tão invisível como o
coronavírus que vai teimar em
ficar. Chama-se mercado.

lVocê mantém alguma rotina de
escrita ou a reclusão forçada não
oferece a mesma comodidade
intelectual do habitual?
Não creio que este seja o me-
lhor ambiente para a criação.
Primeiro, porque é forçada. De-
pois, porque não posso esque-
cer que, apesar de tudo, vivo
uma quarentena de luxo. Não
é possível pensar que, para a
maioria dos moçambicanos, es-
se confinamento tem implica-
ções de sobrevivência muito
graves. O sofrimento dessa
gente não pode ficar fora das
nossas casas por muito que
nos fechemos dentro de qua-
tro paredes.

NA


CIÊNCIA

Vidas em Quarentena


Os desafios do ensino a distância para crianças surdas PÁG. H3


QUARENTENA


Mia Couto, escritor moçambicano

‘O SOFRIMENTO DAS
PESSOAS NÃO PODE

FICAR FORA DAS
NOSSAS CASAS’

Entrevista*


‘OS VÍRUS NÃO
PODEM SER
ENTENDIDOS COMO

VILÕES DA HISTÓRIA’

RAFAEL ARBEX/ESTADÃO – 9/4/2018

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