O Estado de São Paulo (2020-05-13)

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O ESTADO DE S. PAULO QUARTA-FEIRA, 13 DE MAIO DE 2020 Especial H5


Dave Itzkoff
THE NEW YORK TIMES


Nestes dias, muitos se pergun-
tam o que Jerry Seinfeld, o perso-
nagem de sitcom, estaria fazen-
do nessa era de quarentena e dis-
tanciamento social: como seu té-
dio, egocentrismo e constante
escrutínio dos detalhes cotidia-
nos (para não falar nos traços
hiperbólicos de seus amigos e vi-
zinhos fictícios) chegariam a ex-
tremos hilariantes num ambien-
te de isolamento e ansiedade.
No entanto, o verdadeiro
Jerry Seinfeld – aquele que há
muito tempo desistiu do sit-
com para se concentrar num
talk-show ocasional e numa car-
reira inigualável no stand-up –
já não é o mesmo cara. Fechado
em casa com sua mulher, Jessi-
ca, e seus três filhos, ele está
mais devotado do que nunca a
seus rituais e hábitos diários e,
inevitavelmente, continua pro-
penso a observações micros-
cópicas sobre o comportamen-
to humano. Mas também está
consciente de uma maneira que
você nunca vê nas apresenta-
ções: ele faz a piada e depois se
pergunta se ela é apropriada e
se as pessoas querem mesmo
rir nos dias de hoje. São pergun-
tas difíceis de encarar quando
você é comediante e, assim co-
mo todo mundo, Seinfeld está
tentando descobrir quem ele é
e o que deve fazer agora.
Embora prefira se apresentar


publicamente no seu clássico
traje de stand-up – terno e grava-
ta –, no dia 29 de abril apareceu
com um velho moletom em que
se lia a palavra “Garage”, numa
sessão de Zoom de sua casa nos
Hamptons. Era seu aniversário
de 66 anos, e a chamada de ví-
deo levou alguns minutos para
entrar no ar, o que exigiu a inter-
venção de Sascha, a filha mais
ligada em tecnologia, que tem
19 anos. (“A juventude da
América”, disse Seinfeld, ra-
diante de orgulho paternal.)
Sentado numa sala decorada
com fotos de família, livros, mi-
niaturas de carros e uma cópia
do álbum de comédia de Allan
Sherman, My Son, the Nut , Sein-
feld falou sobre a evolução de
seus sentimentos em relação à
comédia, sua força e suas defi-
ciências durante esse período.
Nessa perspectiva, também
refletiu sobre seu novo espe-
cial, 23 Hours to Kill (23 Horas
para Matar) , que a Netflix lan-
çou em 5 de maio. Seinfeld sabe
que suas piadas sobre as peque-
nas indignidades dos eventos
sociais, da comunicação via in-
ternet e do Serviço Postal agora
podem soar bem diferente do
que soavam quando o show foi
gravado em outubro, no Bea-
con Theatre, em Manhattan.
Seinfeld disse não ter certeza
se o especial será sua despedida
da comédia filmada, mas descre-
veu sua perspectiva profissio-
nal como um “pós-show busi-
ness”: “Agora estou no estado
mais puro da arte”, explicou.
“Só o set, a plateia e o momen-

to. Mais do que nunca, estou
muito interessado nisso e pou-
co interessado no resto.”
Seinfeld falou mais sobre
suas reflexões de quarentena,
sua necessidade de rotina e so-
bre o que ele espera da comédia
e da cidade de Nova York quan-
do tudo isso acabar. Aqui vão
alguns trechos dessa conversa.

lQuando você sentiu que a pan-
demia era séria mesmo?
Foi logo no começo. Liguei pa-
ra o produtor da turnê e disse:
“Pode se preparar para cance-
lar os shows”. Parecia que a
gente estava correndo na fren-
te do tsunami. Vamos para as
colinas! Mas parte do segredo
dessa profis-
são é adapta-
ção. Então é
só mais uma
coisa a que vo-
cê tem de se
adaptar.

lÉ mais difícil
por não sabermos quando vai
acabar?
Mas a gente sabe quando vai
acabar.

lQuando?
Bom, eu vou assumir o poder
( risos ). Mas estou apostando
no vírus. Dá para imaginar a in-
veja que as outras doenças de-
vem estar dessa ideia de não
apresentar nenhum sintoma
por duas semanas? A poliomie-
lite agora deve estar falando:
“Como não pensei nisso an-
tes?!”. E a varíola: “Eu podia

ter sido muito maior!”.

lEntão você acha que ainda dá
para fazer piada agora?
Não, para dizer a verdade, não.
Não é engraçado. A doença es-
tá fazendo mal a muita gente,
de um jeito brutal. Não estou
no clima para fazer graça. É co-
mo se você fosse um pássaro e,
de repente, alguém mudasse
sua gaiola. Você não sabe mais
quem você é.

lVocê tem a reputação de ma-
níaco por limpeza e arrumação.
Estão lhe dando razão agora?
Não sou germofóbico. Sou
mais ligado nas rotinas organi-
zadas. Sim, eu sempre ponho
minha pasta
de dente no
mesmo lugar.
Não tenho
TOC, mas
adoro rotina.
Sou um ani-
mal treinado
no circo.

lTem vontade de voltar ao palco
após semanas sem poder se
apresentar?
Ainda faço uma sessão de escri-
ta todo dia. É mais uma coisa
que organiza a mente. O café fi-
ca aqui. O bloco de notas fica
lá. As palavras vão ali. Minha
técnica de escrita é bem sim-
ples: você não pode fazer mais
nada. Não precisa escrever,
mas não pode fazer mais nada.
Escrever é uma provação.

lAcha que a comédia de stand-

up vai voltar a ser o que era? E
se o público não voltar?
Sem chance. As pessoas vão vol-
tar. Primeiro porque rir é o
maior sentimento de liberta-
ção que existe. E segundo por-
que os comediantes vão se
adaptar muito mais rápido que
todo mundo. A TV e o cinema
não vão saber muito bem o que
fazer. Os comediantes, em três
noites, vão saber o que fazer.

lVocê tem um material especial
sobre as pessoas que amam No-
va York exatamente porque ela é
lotada e desconfortável. Não soa
mordaz agora?
Não, se você ama a cidade vai
continuar amando. Sinto falta
da vibração da cidade.

lVocê se arrepende do tanto de
tempo que passou tirando sarro
do Serviço Postal?
Um pouco. Mas todo o conceito
do Serviço Postal se baseia em
caminhadas, lambidas, números
estranhos e moedas de um cen-
tavo. Isso ainda é engraçado.

lSua comédia se constrói em
torno de observações sobre a
maneira como as pessoas intera-
gem umas com as outras. E ago-
ra o nosso modo de interagir mu-
dou drasticamente. Você tem um
material sobre aperto de mão.
Será que ainda vai usá-lo?
Filmei o trailer do especial no
começo de março. Ainda não
estávamos mantendo a distân-
cia de 2 metros, mas foi a pri-
meira vez em que encontrei vá-
rias pessoas e ninguém aper-

tou a mão de ninguém. Depois
de passar um dia inteiro traba-
lhando com um monte de gen-
te, quando saí, senti que tinha
alguma coisa errada.

lO que o inspirou a começar o
especial com uma sequência de
ação na qual você pula de um
helicóptero no Rio Hudson?
Sessenta e cinco anos! Quem
faz isso aos 65 anos? Foi legal e
assustador. E de uma coragem
impressionante ( risos ). A brin-
cadeira com o helicóptero veio
do título. Quando pensei em 23
Hours to Kill , parecia um filme
de James Bond. Aí resolvemos
fazer uma sequência de filme
de 007. Fizemos a filmagem no
final de agosto e lá estava eu no
helicóptero. Estou sentado na
porta, me preparando para pu-
lar. Aí falo para o cara: “Você já
viu um ator fazer uma coisa
dessas?”. E ele diz: “Trabalho
nesse negócio há 30 anos e nun-
ca vi um dublê precisar fazer
uma coisa dessas”. Mas um du-
blê pulou antes de mim. Pensei
que seria fácil. Que estupidez.
Não é nada fácil.

lVocê acha que pode ser seu
último especial de stand-up?
Não sei. Gosto de caras como
Cary Grant, que não quiseram
passar de certo ponto nas te-
las. Ao vivo é diferente. Vou
me apresentar ao vivo para
sempre. Mas, na tela, existe
um ponto em que... não sei.
Vou saber quando chegar lá. /
TRADUÇÃO DE RENATO
PRELORENTZOU

Caderno 2


Roberto DaMatta


Com novo stand-up no


ar, ele reflete sobre a


comédia pós-pandemia


l]


F


osse essa crônica publicada
no último final de ano, mui-
tos leitores iriam pensar que
eu estava antecipando o clima da fes-
ta da vida: o carnaval brasileiro. Es-
se rito afim das fantasias, nas quais
as máscaras davam licença para to-
do tipo de comportamento impró-
prio. Já se disse que mascarar-se é a
coisa mais próxima da invisibilida-
de e do anonimato.
Uma experiência, aliás, difícil de
ser vivida neste país onde ser famo-
so, conhecido ou autoridade (obvia-
mente uma máscara) faz com que
se tenha licença para ignorar re-
gras. Se eu não sabia com quem fala-
va, agora – com a obrigatoriedade
de usar a máscara contra o vírus –
existe um anonimato contrário ao
nosso estilo de vida. Um estilo que,
conforme adiantei em minha obra e
nesta coluna, faz com que o abraço,
o cheiro, o contato corporal, seja

uma prova de reconhecimento, cari-
nho, afeto e consideração.
Agora, ninguém deve mesmo saber
com quem está falando porque nossas
“caras” (que só mamãe botaria a mão)
estão encobertas e escondidas. Além
disso, a semi-invisibilidade social cria
uma semelhança oculta entre o vírus e
um dos seus remédios mais eficazes.
Estamos todos vivendo num mundo
um tanto incômodo e obrigatoriamen-
te anônimo com suas drásticas e dra-
máticas consequências. A mais pun-
gente delas talvez seja a de não poder-
mos nos despedir dos nossos entes
queridos quando eles confirmam a sua
transitoriedade e seguem para o túmu-
lo; sobretudo a vala comum numa bru-
tal e imerecida equanimidade.
É triste demais não estar com um
ente amado na sua hora final (que é
também um pedaço da nossa). Esse
que vimos nascer ou que nos trouxe
ao mundo, demandando lágrimas de

felicidade ou de dor, pois tanto as en-
tradas quanto as saídas são inevitavel-
mente marcadas, tal como a primeira
e a última vez.
A pandemia nos apresenta e atrope-
la com a presença da passagem, do
episódico e da transitoriedade. Com
um horrível detalhe: o vírus, logo a
doença, não tem propósito ou inten-
ção. Ele produz tanto a imensa dor
quanto uma prova desagradável de
que somos permanentemente ronda-
dos pelo infortúnio e pelo aleatório.
Apesar dos anúncios de uma superin-
teligência artificial, nossa capacida-
de de previsão, mesmo as mais técni-
cas, está sempre sujeita ao imprevis-
to e nada do que traz plenitude emo-
cional – amor, felicidade, dinheiro,
poder, fama, beleza, inteligência e
energia – é permanente. Somos to-
dos, conforme ensinou Freud pelos
idos de 1915, sensíveis à severa ausên-
cia do permanente e do eterno.

Perdemos a nossa inocência e fica-
mos cínicos e velhos. Nossos entes
amados morrem vitimados por um ví-
rus não previsto ou num acidente. De
um lado, é uma irreparável perda, mas,
como remarca Freud, todo luto engen-
dra uma oportunidade de descobrir no-
vos caminhos e outros objetos e sujei-
tos preciosos. Graças à transitorieda-
de, a vida e a saúde acabam sendo maio-
res do que a doença e a morte.
Talvez o nosso dever, como diz ou-
tro mestre – Thomas Mann –, seja o de
compreender que sem a passagem e a
transitoriedade (essa relativização da
eternidade) jamais seríamos huma-
nos. Mais: todas as vezes que deseja-
mos superar o humano, criando uma
fórmula ou um sistema definitivo, abra-
çamos o vírus da intolerância, do orgu-
lho, da morte e, sobretudo, da injustiça
porque negamos aquilo que só nós, hu-
manos, possuímos: a consciência dolo-
rosa e benfazeja de que, se a beleza pas-
sa, o mal, a burrice, a intolerância e a
doença também se vão no inevitável
desenrolar do tempo, o senhor da vida.
A “mascarada” defensiva não é festi-
va. É um sinal de perigo, guerra, morte

e contágio. Uma espécie de respeito
desagradável ao poder inexorável
da morte, que é o marco definitivo
da igualdade neste mundo. E hoje
símbolo da doença mortal que – es-
peramos – seja como a dor e o pra-
zer, episódica. Como todos nós, co-
muns ou famosos, fracos ou fortes,
com ou sem máscaras, diante da
pandemia, que obriga a usar másca-
ras, resta buscar a tarefa de vestir e,
tanto quanto possível, diminuir a
crueza dessa imensa desigualdade
constitutiva do Brasil.
O que fazer quando morrem tan-
tos ao mesmo tempo? Quando per-
demos gigantes da literatura, da
música, do jornalismo e da drama-
turgia ao lado de pessoas comuns
que, no entanto, viveram suas epo-
peias e sofreram o humano desequi-
líbrio de felicidade e infortúnio. É
dolorosa essa experiência de ver a
morte, que deveria ser exceção, vi-
rar uma pavorosa rotina. Quando os
mortos ultrapassam a capacidade
dos cemitérios, sabemos que a pan-
demia é, num plano profundo, uma
mascarada fúnebre.

Entrevista*


AS PESSOAS


QUEREM


RIR HOJE


EM DIA?


ESCREVE ÀS QUARTAS-FEIRAS

Jerry Seinfeld, humorista americano

Seinfeld. Descreveu
sua perspectiva
profissional como um
‘pós-show business’

DANIEL ARNOLD/NYT

Mascaradas


AOS 65 ANOS, SALTOU
DE HELICÓPTERO PARA
SEU PROGRAMA
‘23 HOURS TO KILL’
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