O Estado de São Paulo (2020-05-13)

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O ESTADO DE S. PAULO QUARTA-FEIRA, 13 DE MAIO DE 2020 Especial H7


André Cáceres


A série Sankofa – A África que te
Habita
, que estreou este mês no
canal Prime Box Brazil, narra
em formato documental a via-
gem do fotógrafo César Fraga e
do professor de história da Uni-
versidade do Estado do Rio de
Janeiro (UERJ) Maurício Bar-
ros de Castro por nove países
da África em busca das relações
culturais, ancestrais, religiosas
e até culinárias entre os dois la-
dos do Atlântico Sul. Hoje, 13, a
Lei Áurea completa 122 anos,
ocasião propícia para ir ao ar
uma série com essa proposta.
“Nosso projeto volta mais de
150 anos para resgatar as ori-
gens do povo brasileiro na Áfri-
ca. Cresci estudando a história
do povo negro a partir de um
tumbeiro e me perguntando:
‘Como viviam meus ancestrais
antes de embarcarem para cá?’”,
relembrou Fraga ao Estado em
uma entrevista por e-mail.
“É fundamental discutir o le-
gado da escravidão no século 21,
principalmente neste momen-
to em que se pretende uma visa-
da decolonial destes processos
que foram resultado da violên-
cia da empreitada colonial euro-
peia”, reflete Castro. “Os luga-
res de memória da escravidão,
na África e no Brasil, são espa-
ços de reflexão sobre a memó-
ria da dor, mas também da supe-
ração dos africanos e seus des-
cendentes, que por meio de mui-


ta luta conseguiram alcançar
sua liberdade. É preciso reco-
nhecê-los como protagonistas
deste processo de libertação.
Além disso, a partir desta discus-
são podemos pensar em políti-
cas públicas de reparação aos so-
frimentos e danos causados pe-
la escravidão à população afro-
descendente no Brasil.”
Ilustrada pelas imagens de
Fraga, a série traz, além dos rela-
tos de viagem dos dois, entrevis-
tas com intelectuais como o his-
toriador e imortal da Academia
Brasileira de Letras (ABL) Alber-
to da Costa e Silva, o antropólo-
go Milton Guran e o sociólogo
Muniz Sodré, a respeito do trân-
sito de ideias e costumes entre
Brasil e África. Mas é claro que a
experiência presencial da traves-
sia pelo continente é fundamen-
tal ao longo dos episódios de
Sankofa. “Sem dúvida, ter tido a
oportunidade de visitar estes no-
ve países em busca dos lugares
de memória da escravidão na
África é um divisor de águas pa-
ra quem estuda a diáspora africa-
na. Além disso, me trouxe uma
experiência marcada por uma
profunda emoção, como eu falo
no documentário, difícil de ver-
balizar”, afirma Castro.
Fraga revela que se surpreen-
deu com o tratamento irrefleti-
do acerca da memória da escravi-
dão em alguns lugares pelos
quais passou. “Percebi na África,
em alguns momentos, uma me-
mória esquisita do tráfico de es-
cravizados para o Brasil. Algo
amoral, sem culpa ou dor. Lem-
bro, em especial, de um depoi-
mento: ‘Ah, mas aquelas pessoas

já eram prisioneiras de guerra,
que mal havia de serem vendi-
das?’ Ouvir isso no século 21 me
causou espanto”, admite.
O critério de seleção dos paí-
ses retratados na série foi sua
relevância para o comércio tran-
satlântico de escravos. Por
meio de suas andanças pelos
portos das rotas do tráfico ne-
greiro, as fotos de Fraga e a con-
textualização histórica de Cas-
tro guiam o espectador por uma
parte relevante da história brasi-
leira, que molda a sociedade até
os dias de hoje.
“O filósofo, psiquiatra e guerri-
lheiro martinicano Franz Fanon,
que lutou pela libertação da Argé-
lia, escreveu um livro emblemáti-
co chamado Pele Negra, Máscaras
Brancas. Resumidamente, ele
mostra como a representação co-
lonial do negro do Caribe e da
África, por meio de uma produ-
ção de imagens e textos, fez com
que ele negasse a sua pele e sua
cultura em busca de uma ‘másca-
ra branca’ europeia. O problema
é que você nunca vai ultrapassar
a condição de alguém que usa
uma máscara de uma cultura que
nunca vai te reconhecer como
um igual, porque se coloca como
superior”, medita Castro, que en-
xerga esse paralelo na formação
da sociedade brasileira. “Nossa
construção de um povo mestiço
resultou predominantemente
no padrão branco, em que a mis-
tura é hierarquizada e as ascen-
dências negras e indígenas, além
de outras minoritárias, são subal-
ternizadas. A construção desta
identidade única, deslumbrada
com o norte, dá suporte ao racis-
mo estrutural da nossa socieda-
de e às suas máscaras brancas”,
acrescenta o professor.
A herança da escravidão afri-
cana no Brasil é sempre uma te-
mática recorrente para artistas,
músicos, cineastas e escritores,
mas é interessante perceber co-
mo os dez episódios de Sankofa
enfatizam também o impacto
da escravidão na África e o mo-
do pelo qual a cultura brasileira
influenciou países como Ango-
la, Nigéria e Benim, com o re-
gresso de descendentes de es-
cravos brasileiros para o conti-
nente de seus ancestrais.
“Houve um movimento de re-
torno da cultura afrodescen-
dente do Brasil para África, o

que reconfigurou e influenciou
muitas culturas africanas, des-
de o período da escravidão até o
momento contemporâneo, des-
de a época em que os africanos
livres e seus descendentes deci-
diram voltar para África até o
período em que a música, a lite-
ratura e até mesmo as novelas
brasileiras influenciaram, prin-
cipalmente, os países africanos
colonizados pelos portugue-
ses”, informa Castro.
O professor ressalta o papel
dos retornados, chamados de
Agudás em Benin e Togo, e Ta-
bons, em Gana, na dissemina-
ção da cultura brasileira pela
África. “Vimos o Brasil na Áfri-
ca por muitos
meios, desde o le-
gado cultural e ar-
quitetônico dos
retornados até às
reinvenções da
cultura brasilei-
ra em solo africa-
no. O carnaval de
Lagos, na Nigéria, levado pelos
Agudás, e o impacto do samba e
da cultura de entretenimento
do Brasil em Angola são alguns
exemplos.”
Fraga acredita que a série po-
de contribuir muito para o deba-
te social no Brasil contemporâ-
neo. “Vivemos em uma das so-
ciedades mais ricas do planeta,
em se tratando de cultura e di-
versidade racial. Mas é nesta
mesma sociedade que ainda per-
siste o ambiente discriminató-
rio contra os afrodescendentes,

legado de um doloroso passado
escravagista. Este cenário se tor-
na um entrave ao progresso da
sociedade brasileira.”
Ele se lembra ainda de uma pa-
lestra que fez para estudantes
do ensino médio em Heliópolis,
uma das maiores favelas de São
Paulo, logo depois de seu retor-
no. “Ao final, perguntei aos pre-
sentes quem se considerava afro-
descendente. Para minha sur-
presa, poucos tiveram a convic-
ção de levantar o braço.” Depois
do ocorrido, uma professora des-
sa escola propôs uma pesquisa
sobre o tema e enviou o resulta-
do ao fotógrafo: “Haviam monta-
do sua própria exposição e passa-
do a ter orgulho
de suas origens
africanas”, come-
mora ele.
Nesta sexta-fei-
ra, 15, o terceiro
capítulo da série
retrata o Senegal,
país que forne-
ceu escravos ao Maranhão. Ca-
da episódio de Sankofa – A África
que te Habita é dedicado majori-
tariamente a um dos países visi-
tados e, entre uma história e ou-
tra, a série exibe animações de
contos mitológicos africanos
narrados pela atriz Zezé Motta.
Dirigida por Rozane Braga, pro-
duzida pela FBL e roteirizada
por Zil Ribas, Sankofa começou
a ser transmitida este mês e vai
ao ar todas as sextas-feiras, às
20h30, até o dia 3 de julho, no
canal Prime Box Brazil.

Aliás,


ÁFRICA


História*


Nos 122 anos da Lei Áurea, ‘Sankofa’ mostra trânsito


cultural entre Brasil e antigas rotas do tráfico negreiro


Contraste.
Mulher
coberta com
máscara
facial
branca em
Moçambique,
país visitado
no último
episódio de
‘Sankofa’

‘É FUNDAMENTAL
DISCUTIR O LEGADO
DA ESCRAVIDÃO NO
SÉCULO 21’

FOTOS CÉSAR FRAGA/PRIME BOX BRAZIL

SÉRIE DESCOBRE O


BRASIL NO CONTINENTE


Benim.
Cerimônia
de culto aos
Egunguns,
entidades
antigas que
representam
os espíritos
dos mortos

Esporte.
Criança joga
futebol em
praia do
Cabo Verde,
localizado
em um
arquipélago
no oeste do
continente
africano
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