O Estado de São Paulo (2020-05-13)

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H8 Especial QUARTA-FEIRA, 13 DE MAIO DE 2020 O ESTADO DE S. PAULO


Caderno 2


Leandro Karnal


l]


SONHO, MEIO


PESADELO


Luiz Carlos Merten


Sílvio Guindane trabalhava na
nova temporada de A Divisão
quando a pandemia interrom-
peu as gravações. O Brasil desa-
celerou, senão parou. Há seis se-
manas – esta é a sétima – ele
cumpre o isolamento social.
Tem aproveitado para tocar um
novo projeto, ao qual está entre-
gue completamente – a adapta-
ção, para o teatro, de Tempo de
Despertar
, o livro do Dr. Oliver
Sacks que virou filme com Ro-
bin Williams e Robert De Niro.
Não é o único experimento do
gênero de Guindane. Ele já
transformou Perfume de Mulher
em peça de sucesso. Está cheio
de expectativa.
“Você conhece O Perfume me-
lhor do que eu. O original italia-
no ( de Dino Risi, com Vittorio
Gassman, que venceu como me-
lhor ator no Festival de Cannes
),
o remake com Al Pacino ( que
ganhou o Oscar
). Viajamos o
Brasil inteiro com a peça, foi
uma loucura, ainda estávamos
em cartaz.” O “estávamos” in-
clui Pedro Brício e Walter Lima
Jr., que adaptaram com ele (e o
segundo dirigiu), mais Gabrie-
la Duarte e Eduardo Melo.
Guindane brinca que pensava
em fazer o garoto, mas demo-
rou tanto para levantar a produ-
ção que terminou fazendo o mi-
litar, Fausto.
Tempo de Despertar será ago-
ra ainda maior, e mais abrangen-
te. O filme inspira-se no livro
em que Dr. Sacks narra seu expe-
rimento humano e social. Neu-
rologista, ele usou uma nova
droga para reanimar pacientes
de encefalite letárgica que so-
friam de uma doença do sono.
“O filme é muito forte e o livro é
ainda mais. Essas pessoas vi-
viam presas a um mundo inte-
rior onírico, meio sonho, meio
pesadelo. Os raros momentos
de vigília vinham acompanha-
dos de aflição, de angústia.” O
filme centra-se na relação do
médico com um paciente. “Mas
eu penso numa coisa bem ambi-
ciosa, quero reconstruir no pal-
co a clínica com seus pacientes,
cada um com sua singularida-
de. Vai ser um espetáculo com
muitos atores.”
Guindane conseguiu viajar
com Perfume de Mulher porque
era um espetáculo com elenco
reduzido. Outro elenco assim
extenso, com 18 pessoas em ce-
na, será mais complicado, vai
exigir recursos, logística, mas is-
so será depois. Por enquanto
ele revisa o texto. “Não me can-
so de tentar aprimorar, penso
no elenco. Já tinha parcerias en-
gatilhadas, mas agora atrasou
tudo, vamos ter os problemas
de agenda.” Guindane sepa-
rou-se da cineasta Júlia Rezen-
de, com quem viveu mais de
dez anos. “Mas continuamos


melhores amigos. A Júlia vai ser
sempre superimportante para
mim. É a mãe do meu filho.”
Ele destacou-se garoto no fil-
me de Murilo Salles, Assim Nas-
cem os Anjos , de 1996. Cresceu
aos olhos do público, virou ho-
mem, pai – do João, de 2 anos.
Admite que a paternidade lhe
deu outra perspectiva. “Me deu
maturidade, hoje sinto que sou
outro cara.” A mudança trans-
parece na própria interpreta-
ção. O delegado Mendonça de
A Divisão é produto dessa nova
fase. O filme e a temporada es-
tão disponíveis no GloboPlay.
A divisão antissequestro da

polícia. Dois policiais antagôni-
cos. O que transgride com a cor-
rupção mas se redime, Santia-
go, interpretado por Erom Cor-
deiro. O íntegro, Mendonça,
que pisa na bola ao se colocar
acima da lei. O filme é bom, os
atores excepcionais. “Ganha-
mos críticas ótimas, o público
aprovou.” É uma pegada dife-
rente da de Tropa de Elite. “Com
certeza. Vicente Amorim ( o di-
retor ) trabalhou sempre com
dois produtos, para TV e cine-
ma. Sempre quis humanizar os
personagens, mas nunca fez de
nós heróis aos olhos do públi-
co. A nova temporada prosse-

gue do final do filme, o Santiago
preso, Mendonça tendo de li-
dar com o mundo da política,
que abomina.”
Guindane tem outra série na
Globo, Segunda Chamada , em
que faz um professor da rede
pública. Professor, delegado –
Guindane tem conseguido fu-
gir ao estereótipo da represen-
tação do negro no audiovisual
brasileiro, mas em mais de 20
anos de carreira ele sabe bem
como é o racismo cotidiano.
“Não tenho problema, mas gos-
to muito quando a raça não é
determinante, e o papel pode-
ria ser feito por um ator bran-

co. É raro o protagonismo do
ator preto, e em personagem
que não seja pobre ou favela-
do”, reflete.
Seu ritmo é intenso. Traba-
lha muito, até pequenos papéis
em comédias. Por quê? “Acho
que faço para me testar. Recuso
muita coisa, muito mais do que
você imagina, mas gosto de tra-
balhar as minhas ferramentas
de ator, ver até onde consigo ir.
Comédia é coisa séria, é como
fazer tragédia. E me atrai por-
que é difícil, tem ali um timing
que não é mole, brô. Ou você
acerta o tom, ou lascou. Não
tem nada pior que a comédia

sem graça.” Nesses anos todos,
Guindane tem sido amigo de
Murilo Salles. “Brinco que ele é
um dos meus pais do cinema,
com o ( José ) Joffily, o ( Antônio )
Pitanga. Sempre conversamos
sobre ele adaptar o ( Luiz Alfre-
do ) Garcia-Roza, até que o Muri-
lo me disse, num jantar: ‘Só fa-
ço se for com você’. Pois vamos
fazer. Um policial, mas não
com o Espinosa, mas com o au-
xiliar dele, o Welber, que não é
de Copacabana, mas da perife-
ria, como eu, que nasci na Baixa-
da Fluminense. É uma história
bacana, e o Murilo é um grande
diretor. Coloco a maior fé.”

ESCREVE ÀS QUARTAS-FEIRAS E AOS DOMINGOS

O


mês de maio tem inúmeras
qualidades. O céu é claro
com frequência, as tempera-
turas não estão elevadíssimas e es-
casseiam frios rigorosos. Algumas
despesas fortes (IPVA, IPTU, Im-
posto de Renda, matrícula, material
escolar, etc.) já foram pagas ou, se
parceladas, deixaram de causar im-
pacto psicológico da novidade. Um
elemento subjetivo importante: es-
tamos mais ou menos equidistantes
das festas que dissolvem decisões
de reflexão ou trabalho: Natal, Ano-
Novo e carnaval. Mesmo a Páscoa,
mais neutra, já passou. Temperatu-
ras convidativas, depressão finan-
ceira parcialmente superada e sem
blocos passando ou cheiro de pane-
tone no ar, floresce uma boa alterna-
tiva de outono: ler mais.
Ler é uma decisão e insistir em
textos pode produzir um hábito. Pa-
ra voar no mundo das letras, é impor-
tante saber a força das asas de cada
um. Ambições elevadas demais po-
dem estragar o projeto. Metas bai-
xas induzem ao tédio. Se o seu dese-

jo/hábito por livros for pequeno, come-
ce de forma mais simples. Estabeleça
uma meta menos ousada: cinco pági-
nas por dia, por exemplo. Mantenha-
se firme e, em uma semana, você pode
ter conseguido ler dois contos ou um
pequeno romance. Se os próximos me-
ses confirmarem que você atende
bem ao estipulado, vá aumentando
mensalmente. Como eu digo aos alu-
nos, decisões ambiciosas demais nos
aproximam dos atletas amadores da
prova de São Silvestre: saem em dispa-
rada e, poucos quarteirões após a lar-
gada, estão sentados no meio-fio,
exaustos e fora da disputa. Corredo-
res profissionais sabem da importân-
cia do ritmo constante. Fora as leitu-
ras obrigatórias de cada ramo, um rit-
mo acima do fraco e bem abaixo do
perfeito seria de dois livros por mês.
Esse “combustível” permite que você
reflita, atualize e mantenha seu cére-
bro funcionando. Como eu disse, é
abaixo do perfeito, mas quem traba-
lha com a ideia da perfeição nunca lê
e, provavelmente, jamais casará.
Um exemplo banal de como a leitura

muda nossa visão de mundo. As pes-
soas comentam em casa ou no bar que
o tempo está passando rápido demais?
Dizem coisas de senso comum como
“daqui a pouco estaremos no final do
ano novamente”? Bem, Allan Burdick
fez uma investigação sobre o tema em
Por Que o Tempo Voa (São Paulo, ed.
Todavia, 2020). A escrita é excelente
(tradução de Paulo Geiger) e sua no-
ção sobre o tempo e sua aceleração (e
seu uso prático) darão uma reviravolta
em seu entendimento do assunto.
Aqui você começa a se separar do sen-
so comum e a perceber argumentos

muito inovadores para sua cabeça e,
eventualmente, suas conversas.
Santo Agostinho citou, Shakespeare
conheceu e quase todos os intelec-
tuais clássicos leram. Refiro-me a um
livro fundamental: O Asno de Ouro , de
Apuleio. A nova edição bilíngue da 34
está ótima (tradução, prefácio e no-
tas de Ruth Guimarães, apresentação
e notas adicionais de Adriane da Silva
Duarte). O autor (segundo século da
nossa era) nasceu na região romani-
zada da atual Argélia. Culto, foi in-

fluenciado/guiado pela obra de Oví-
dio, As Metamorfoses. O modelo é tão
forte que a obra, originalmente, apre-
sentava o mesmo título. Foi um autor
cristão, o já citado Agostinho, que ba-
tizou a obra de Asinus Aureus ( O Asno
de Ouro ). O texto picaresco conhe-
ceu enorme difusão, dos já citados ao
nosso Machado de Assis, de Montei-
ro Lobato a Ricardo Azevedo, como
nos informa Adriane da Silva Duarte
na apresentação. É uma obra seminal
e de referência.
Por que ler um clássico? Porque ele
transforma nossa maneira de pensar,
fornece vocabulário, mostra raízes,
disseca influências e faz um upgrade
poderoso na caixa encefálica. Lem-
bre-se ao encarar o Asno de Ouro : não
é um best-seller que facilite tudo ao
leitor para cativar audiência.
Um livro que ganhei e gostei mui-
to, ainda sem tradução: Life 3.0 –
Being Human in the Age of Artificial
Intelligence (Penguin, 2017). Max Teg-
mark passa por temas como a defini-
ção da inteligência e uma análise dos
próximos... dez mil anos. O livro abre
a imaginação, analisa um mundo no-
vo e sempre admirável no que o futu-
ro apresenta de terrível e fascinante.
Talvez muitos gostem de uma ques-
tão em particular: como ficarão os
empregos no brave new world?

O tema da felicidade foi tratado
por Aristóteles, Epicuro, Epicteto e
Shakespeare. Porém, hoje parece
que a simples menção ao conceito
já faz todo mundo dizer que é autoa-
juda. Nada mais enganador. Dois li-
vros recentes dialogam com pesqui-
sas, filosofia e reflexão distinta de
fórmulas prontas. Um é sucesso de
um professor de Harvard: Shawn
Achor. O livro saiu pela Saraiva/Ben-
virá: O Jeito Harvard de Ser Feliz (tra-
dução de Cristina Yamagami do ori-
ginal The Happiness Advantage ). O
outro é do escritor brasileiro que
estuda pesquisas científicas sobre
realização e felicidade: Luiz Gaziri.
Tive o privilégio de fazer o prefácio
da obra mais recente: Os Sete Princí-
pios da Felicidade (Faro Editorial).
Clássicos, temas ligados à exis-
tência e à felicidade, romances, poe-
sias: um livro é uma alavanca e possi-
bilita erguer o mundo, ao menos o
seu mundo. Um pequeno conto de
Machado, um texto de Clarice Lis-
pector, uma peça de teatro de Nel-
son Rodrigues: ninguém sai igual da
imersão na inteligência. Sem ler,
não existe esperança de melhora.
Você odeia o político A ou B? Am-
bos têm uma característica em co-
mum: a falta de leitura. Boa pista
para hoje. Ler é esperança pura!

EDUARDO VIANA

CARLOS FOFINHO

Diretor. Ritmo intenso inclui plano para adaptar Garcia-Roza

MEIO


Agenda de outono


Uma boa alternativa
da estação: ler mais.
Ler é esperança pura!

É assim que o roteirista Sílvio Guindane pensa a peça


inspirada em ‘Tempo de Despertar’, de Oliver Sacks


‘A Divisão’. Guindane ( E )
como delegado Mendonça
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