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o presidente dos EUA foi à
França participar da Conferên-
cia de Paz que estabeleceria as
condições aos derrotados, e o
que se viu foi uma recepção
calorosa e vibrante dos pari-
sienses. Ainda com a propa-
ganda americana reverberando,
Wilson foi aclamado como o
grande libertador do povo eu-
ropeu – o líder de um novo
mundo, democrático e de livre
comércio, salvo da ameaça dos
impérios totalitários.
Quem viu toda essa empol-
gação de perto foi Edward
Bernays (1891-1995), que tinha
feito parte da engenharia de
convencimento, e por isso foi
convidado pelo governo ame-
ricano para ir à França na oca-
sião. Aos 28 anos, esse jorna-
lista – que se tornaria pioneiro
da função de relações públicas
no mundo – ficou maravilhado
com o poder da propaganda de
mexer com as emoções das
massas. E então chegou a uma
reflexão que mudaria o seu
destino dali para a frente: se é
possível introduzir uma suges-
tão na cabeça de milhões de
pessoas num período tão com-
plicado como a guerra, com
certeza dá para fazer em tem-
pos de paz. Mas como?
Uma vez em Paris, Bernays
- filho de imigrantes austríacos
- aproveitou a estada na Euro-
pa para se conectar com a fa-
mília que tinha ficado no con-
tinente. E mandou um presen-
te para um tio querido, irmão
de sua mãe: uma caixa de cha-
rutos cubanos. Em retribuição,
recebeu do tio uma cópia de
um livro escrito por ele: Con-
ferências Introdutórias à Psi-
canálise. Bernays de cara ficou
fascinado pela obra, especial-
mente pela ideia desse seu tio,
Sigmund Freud, de que o ser
humano é dominado por de-
sejos irracionais – que perma-
necem numa parte obscura da
mente, respondem pelos nos-
sos comportamentos e, mais
importante ainda, por nossas
escolhas. Foi aí que Bernays
teve a grande ideia de sua vida:
fazer dinheiro explorando as
descobertas do seu parente
amante de charutos, influen-
ciando operações mentais que
a maioria das pessoas nem
tinha noção de que existem.
Outro grande teórico das
relações públicas, o america-
no Scott Cutlip (1915-2000),
escreveu: “Quando alguém se
encontrava com Bernays, não
demorava nada até que seu tio
fosse trazido à conversa. A
relação dele com Freud esta-
va sempre na vanguarda do
seu pensamento”.
Agindo assim, Edward Ber-
nays tornou-se figura-chave
por trás do impulso ao consu-
mismo nos EUA na primeira
metade do século 20. E foi
logo chamando a atenção da
indústria com uma campanha
revolucionária – curiosamente,
relacionada ao hábito de fumar,
tão caro ao tio Sigmund.
Contratado por George Hill,
presidente da corporação ame-
ricana de tabaco, Bernays re-
cebeu uma missão que parecia
impossível à época: quebrar o
tabu de que mulheres fuman-
do em público era uma coisa
grotesca, um atentado à moral
e à decência. Empolgadíssimo
com as ideias de Freud, Ber-
nays pediu ajuda a um dos
primeiros psicanalistas dos
EUA, Abraham Arden Brill
(1874-1948) – porque seu tio
mesmo nunca quis se envolver
com a mercantilização das pró-
prias teorias. O que o sobrinho
queria descobrir, via psicaná-
lise, era o que o cigarro signi-
ficava para as mulheres, e o que
poderia vir a significar. Brill,
que foi tradutor de obras de
Freud, do alemão para o inglês,
respondeu com um simbolis-
mo que hoje é clássico, mas na
época podia ser tão surpreen-
dente quanto ultrajante: o ci-
garro simbolizava o pênis e,
consequentemente, o poder
masculino sobre a mulher. Ber-
nays entendeu, então, que o
desafio estava em mostrar às
consumidoras que fumar re-
presentaria se contrapor ao
domínio do homem, porque “a
mulher teria seu próprio pênis”.
Para chamar atenção do país
inteiro a essa ideia, Bernays
organizou um manifesto fake,
em 1929, durante um dos even-
tos mais midiáticos daqueles
tempos nos EUA: a Parada de
Páscoa em Nova York. Pegan-
do carona no movimento su-
fragista, que tinha recém-con-
quistado o direito de voto às
mulheres, ele convenceu um
grupo de debutantes ricas a
esconder cigarros sob as rou-
pas. Elas deviam juntar-se ao
desfile e, num determinado
momento, sob o comando de
Bernays, acender seus cigarros
Lucky Strike todas ao mesmo
tempo, e da maneira mais tea-
tral possível.
Sim, era um flash mob.
Mas antes ele havia prepa-
rado a imprensa: espalhou que
um grupo de feministas es-
taria armando um escândalo
bem no meio da parada. Um
protesto chamado “Tochas da
Liberdade”.
A encenação, claro, foi um
sucesso. Avisados sobre o “pro-
testo”, os fotógrafos ficaram a
postos, de modo que não fal-
taram registros daquelas mu-
lheres jovens e bonitas fuman-
do. E a notícia viralizou – tan-
to quanto seria possível com
os meios de comunicação da
época. Os nova-iorquinos ha-
viam testemunhado um grito
impactante de igualdade entre
os gêneros, e os costumes nun-
ca mais seriam os mesmos.
A partir daquele ato históri-
co, mais e mais mulheres co-
meçaram a fumar sem disfarces
nos EUA, e a publicidade do
cigarro passou a ser dirigida
para elas também. Assim, o
público-alvo da indústria taba-
gista dobrou de tamanho. E o
sobrinho de Freud se consa-
grou. Tanto que não parou mais
de usar as teorias do tio para
aquecer o comércio – associan-
do mercadorias e serviços aos
Recorrendo
às ideias de
Freud, seu
sobrinho foi
pioneiro da
“psicanálise
do consumo”,
nos Estados
Unidos,
explorando
os desejos
ocultos das
pessoas.
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