DOSSIÊ SUPER 23
pensamento que é um ponto de partida
para a emoção buscada, ou mesmo um
elo dessa corrente de associações que
vai chegar à chave do enigma – como
se, de um filme surrealista, você tivesse
só algumas cenas do meio.
É também no exercício da interpre-
tação que o analista identifica a repres-
são agindo. Desde o momento em que
o indivíduo conta para o terapeuta por
que buscou a psicanálise, eventos reais
são esquecidos, a ordem cronológica
pode ser alterada e nexos causais são
rompidos. Há uma verdadeira resistên-
cia contra a recuperação de certas lem-
branças. “Não existe caso clínico neu-
rótico sem amnésia de alguma espécie”,
apontou Freud.
A interpretação nada mais é que uma
intervenção com o objetivo de fazer o
analisando compreender significados
inconscientes manifestos na sua fala.
Mas isso não quer dizer que o psica-
nalista vá ficar explicando tudo a toda
hora para o paciente – embora, só para
contrariar a linha da boa psicanálise,
Freud gostasse de ficar explicando. O
processo de interpretação busca con-
firmar o entendimento do terapeuta,
trazendo de volta à sessão algumas
falas do analisando, incitando-o a falar
mais sobre o assunto. Na psicanálise
clássica, não espere respostas do ana-
lista para as suas dúvidas existenciais.
Ele não vai explicar nada. Vai apenas
agir como um facilitador para que vo-
cê chegue sozinho às suas conclusões.
(Em outras psicoterapias, porém, há
conversas sobre o sentido das coisas.)
Um exemplo dessa intervenção que
pode acontecer na psicanálise: o rumo
das associações livres dá sinais de que
uma mulher adulta tem hostilidade em
relação à sua irmã dois anos mais nova,
quer excluí-la de tudo o que faz parte
da sua vida – e talvez tenha um desejo
inconsciente de que a irmã morra. En-
tão o terapeuta, nesse sentido de con-
firmar uma impressão e ajudar a pessoa
a chegar às suas próprias verdades,
pode questionar: “Você acha que, quan-
do sua irmã nasceu, você se sentiu
preterida já que sua mãe ganhou um
bebê para cuidar e transferiu parte da
atenção que tinha com você para essa
criancinha? E agora, que ela é tão adul-
ta quanto você, qual é o seu sentimen-
to em relação a ela?”.
Outro equívoco, para o qual Freud
não cansava de alertar, são os exageros.
Um clichê dos estereótipos ligados à
psicanálise é ficar querendo interpretar
tudo: a “mania de interpretação”, pela
qual se tenta fazer brotar uma verdade
oculta onde não existe nada. Discípulos
de Freud viam símbolos sexuais em
todo discurso, de forma até delirante
- “às vezes, um charuto é só um cha-
ruto” é uma frase atribuída a Freud, e
que faz todo o sentido aqui.
O problema de muitos desses exage-
ros é que a finalidade da interpretação
parece que fica sendo... a interpretação
em si. Mas não. O objetivo da boa in-
terpretação, ao fazer com que conflitos
inconscientes se tornem conscientes,
é contribuir para o autoconhecimento
do indivíduo e melhorar a sua vida. E
isso não quer dizer que a psicanálise
vai mandar para o espaço um conflito,
um trauma, uma lembrança dolorosa.
A ideia é que, descobrindo a questão
que o incomoda, você possa lidar me-
lhor com ela. Ponto.
“O que você sabe de ruim sobre você,
você controla. O que você não sabe
pode te controlar”, explica o psicana-
lista Pedro de Santi, que ministra cur-
sos sobre Freud na Casa do Saber, de
São Paulo. “A psicanálise é o avesso da
autoajuda porque mostra que é impor-
tante ter contato com aquilo que dói.”
Ou seja, nunca vai chegar aquele mo-
mento transcendental em que o psica-
nalista vai virar para você e dizer “pa-
rabéns, você está curado”. A psicanáli-
se não foi inventada para isso. O pró-
prio Freud era questionado por pacien-
tes sobre a validade da terapia, já que
nunca seria capaz de eliminar as cir-
cunstâncias que provocam os conflitos
internos das pessoas. A isso, Freud
respondia desta forma: “De fato, não
duvido que seja mais fácil para o des-
tino do que para mim eliminar seu
sofrimento. Mas você se convencerá de
que muito se ganha se conseguirmos
transformar a sua miséria histérica em
uma infelicidade comum. Desta última
você poderá se defender melhor com
uma vida psíquica restabelecida”.
CONTRAINDICAÇÕES
Em um texto de 1905, Psicoterapia, escrito originalmente para uma
conferência no Colégio Médico de Viena, Sigmund Freud relacionou
algumas contraindicações – situações (e pessoas) que deveriam ser
evitadas na prática clínica pelos psicanalistas. Vamos às quatro principais.
A psicAnálise não é
pronto-socorro, não
funcionA pArA cAsos
de urgênciA.
se o pAciente não
for gente boA, o
trAtAmento não
vAi prestAr.
“Recusem-se os
doentes que não
têm certo grau
de educação
e um caráter
razoavelmente
confiável.”
dos cinquentA
pArA cimA não
têm mAis jeito.
“A massa de material psíquico
[dos mais velhos] já não pode ser
dominada, o tempo necessário
para a recuperação se torna
muito longo, e a capacidade de
desfazer os processos psíquicos
começa a fraquejar”.
d escArtAr
cAsos muito
grAves.
“Psicoses, estados
de confusão e
de abatimento
profundo (tóxico,
poderia dizer)
também são
inadequados.”
“Não se deve
recorrer à
psicanálise quando
se trata de eliminar
rapidamente
manifestações
ameaçadoras.”
imagem: Getty Images
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