Dossiê Superinteressante - Edição 415-A (2020-05)

(Antfer) #1

24 FREUD


Considerado um dos
maiores psicanalistas de
todos os tempos, Sandor
Ferenczi (1873-1933),
colaborador íntimo de
Freud, inventou em 1919 o
princípio da técnica ativa:
em vez de apenas inter-
pretar o que o paciente

diz, o terapeuta deveria
intervir bastante ao longo
da consulta, dando ordens
e fazendo proibições.
Até aí, aos olhos de um
leigo, nada demais. Só
que Ferenczi radicalizou.
Querendo permitir a iden-
tificação do analisando

com um genitor amoroso,
que eventualmente
tivesse sido ausente na in-
fância da pessoa, Ferenczi
incentivava alguns pa-
cientes a lhe dar abraços
e beijos. É... E suas ideias
extremas não pararam
por aí. Em 1932, ele surgiu

com o conceito de análise
mútua, uma verdadeira
troca de papéis: era o ana-
lisando quem conduziria a
terapia. O terapeuta podia
inclusive deitar no divã
no lugar do paciente e,
dependendo do caso, até
lhe pagar pela sessão.

As regras do divã
Para Freud, a psicanálise só dava os
melhores resultados em pessoas in-
teligentes, de boa índole e que esti-
vessem plenamente de acordo com
o tratamento, dispostas do fundo do
coração a colaborar com a terapia. O
método da associação livre não seria
adequado a gente com má vontade para
falar ou incapaz intelectualmente de
fazer as relações que o analista esti-
mula. “Freud sempre considerava o
tratamento psicanalítico inapropria-
do para pessoas estúpidas, incultas,
muito idosas, melancólicas, maníacas,
anoréxicas ou em estado episódico de
confusão histérica”, revela Elisabeth
Roudinesco. Mas Freud não era, de
maneira alguma, um estrito seguidor
dessas regras. “Poderíamos pensar, a
crer em seu fundador, que a psicanálise
se destina exclusivamente a sujeitos
cultos, capazes de sonhar ou fantasiar,
conscientes de seu estado, preocupa-
dos com a melhora de seu bem-estar,
detentores de uma moralidade acima
de qualquer suspeita e curáveis em
poucas semanas ou meses. Ora, sabe-
mos perfeitamente que a maioria dos
pacientes que iam à Berggasse [a rua
onde ficava o consultório de Freud] não
correspondia a esse perfil.”
Sim, teve muita gente perturbada en-
tre os 170 indivíduos que se trataram
com Freud – pessoas que tinham como
denominador comum uma origem na
burguesia endinheirada. A maioria era
de judeus, como ele próprio. E muitas
dessas pessoas não chegaram a Freud
por livre e espontânea vontade, mas
forçadas por parentes; tinham neuroses
às vezes suaves, mas havia também
casos graves, que chamaríamos hoje em
dia de psicoses. Sim, loucos.
Se Freud não obedecia às próprias

regras, muito menos tinha qualquer
compromisso com as diretrizes técni-
cas que se consolidaram entre os psi-
canalistas do mundo todo. Sabe-se que
esses profissionais não devem analisar
pessoas próximas, uma vez que esse
conhecimento prévio pode influenciar
a interpretação do que é dito pelo in-
divíduo. Mas Freud analisou por mui-
to tempo sua filha Anna – que se tor-
naria uma das psicanalistas mais co-
nhecidas da história – e também outros
parentes, amigos, discípulos e os côn-
juges dessas pessoas todas.
Além disso, hoje em dia, quem quer
se tornar psicanalista precisa também
se submeter à terapia e depois passar
por uma supervisão. Freud não apenas
nunca se deitou no divã de outro psi-
canalista como ainda admitiu ter ana-
lisado a si próprio. E isso vai contra um
dos pontos de partida da psicanálise: a
necessidade de um interlocutor. Porque
o mecanismo da terapia reside no espe-
lhamento: mostrar para o analisando
aquilo que ele está mostrando para o
terapeuta. Se a análise de uma pessoa
conhecida já envolve o risco de influen-
ciar as interpretações, imagine o quanto
há de distorção numa autoanálise...
Mas vá dizer isso a Freud – foi ele
quem inventou a coisa toda.
O fato é que a psicoterapia praticada
por seu inventor não era parecida com
o que os especialistas chamariam ho-
je de uma consulta adequada. Para se
ter uma ideia, Freud fumava charuto
nas sessões – e não oferecia aos pa-
cientes, o que deixava alguns chatea-
dos. Ele também falava muito mais
durante a sessão do que um terapeu-
ta freudiano falaria atualmente. Ex-
plicava muito sobre o processo da
psicanálise, interpretava bastante du-
rante a sessão e, pior, falava da sua

própria vida e expunha suas preferên-
cias políticas, entre outras opiniões.
Dessa forma, atendia oito pacientes
por dia, 50 minutos por sessão. E o
tratamento era intenso: cada paciente
comparecia em média seis vezes por
semana. (Hoje mesmo, na psicanálise
clássica, dificilmente um terapeuta acei-
tará um analisando que não se subme-
ta a, pelo menos, três sessões semanais,
o que demanda disposição e dinheiro
por parte da pessoa interessada.)
Embora uns raros pacientes tivessem
tratamentos muito longos, de idas e
vindas, Freud não costumava passar de
uns meses com a mesma pessoa em
seu divã. Se não conseguia algum tipo
de sucesso nesse período, desanimava
e acabava desistindo.

O fim da histeria
Hoje, é difícil encontrar alguém que
chame alguma doença de histeria. Na
primeira versão do Manual Diagnóstico
e Estatístico de Transtornos Mentais
(DSM), de 1952, a palavra histeria apare-
ce 16 vezes, sem descrições minuciosas,
em exemplos como “surdez histérica”,
“paralisia histérica da laringe”, “inconti-
nência histérica”, “histeria de angústia”...
A partir da terceira edição do manual,
de 1980, o distúrbio que levou o pai da
psicanálise à investigação do incons-
ciente desapareceu de vez desse guia
dos psiquiatras.
Mas o estudo de Sigmund Freud so-
bre as profundezas da mente foi muito
além da construção de um método te-
rapêutico visando às histéricas. O ter-
mo psicanálise serve tanto para desig-
nar a psicoterapia que abordamos
agora quanto, num sentido mais amplo,
para dar nome à disciplina que ele fun-
dou e que abrange as suas teorias.

Dá um abraço?


imagem: Getty Images

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