Dossiê Superinteressante - Edição 415-A (2020-05)

(Antfer) #1

Para Freud, um sonho é o choque


entre um desejo inconsciente que


quer se manifestar e uma censura


que quer poupar a gente de um trauma.


O resultado é arte surrealista.


Foi na casa da atriz Jane Asher, sua
namorada na época, que Paul McCartney
teve um sonho que entraria para a histó-
ria da música pop. O ano era 1964. Em vez
de sonhar que havia saído de casa pelado
ou que voava sobre Liverpool – sonhos tí-
picos, como você verá a seguir –, o beatle
sonhou com uma melodia. E não qualquer
melodia. Era uma música tão doce e delicada
que Paul tratou de não esquecer – o que
acontece com a maioria dos sonhos pouco
depois que abrimos os olhos. Já que havia
um piano ao lado da cama, começou a tocar
e ligou o gravador. Então, para sua surpresa,
percebeu que havia sonhado com a melodia
completa de uma canção. Pensou que deveria
ter ouvido a música em algum lugar, mas,
por mais que tentasse, não conseguia lembrar
onde ou quando. No livro The Beatles – A
história por trás de todas as canções, Paul
recorda: “Por cerca de um mês fui atrás das
pessoas no mercado musical e perguntei se já
tinham ouvido a música antes. Acabou sendo
como entregar algo à polícia. Achei que, se
ninguém desse falta em algumas semanas,
eu poderia ficar com ela”. E ficou. A melodia
era original mesmo.
A música ouvida num sonho enfim ganha-
ria letra definitiva, e Yes te rda y se tornaria
uma das canções mais populares de todos
os tempos, a mais tocada e regravada da his-
tória segundo o Guinness Book – com versões
cantadas por artistas tão diferentes quanto
Elvis Presley, Elis Regina, Frank Sinatra e
Katy Perry.

Sigmund Freud não estranharia o fenôme-
no onírico que deu de bandeja a Paul Mc-
Cartney sua obra mais conhecida. “Tendemos
por demais a superestimar o caráter cons-
ciente da produção intelectual e artística”,
ele afirmou, ainda na virada do século 19
para o 20. Segundo o pai da psicanálise, não
é que os sonhos fossem uma fábrica de no-
vidades. As ideias – sejam para canções pop,
projetos de vida ou burradas colossais – vêm
da labuta diária do inconsciente, cujo turno
é sempre no esquema 24 horas.
Para quem estuda o assunto hoje em dia,
essas afirmações de Freud fazem sentido, e
a ciência já sabe que o sonho não sai jogan-
do ideias geniais para o alto sem critério. Se
você é engenheiro automotivo ou designer
de joias, é muito improvável que acorde de
um sonho com uma música pronta na cabe-
ça. Talvez surja uma ótima ideia para um
carro-conceito ou para um par de brincos
digno de um casamento real. “O sonho – tal
como outras formas de pensamento desor-
denado – pode ajudar no processo de indu-
ção de uma ideia original, mas somente
sobre a base firme de um grande conheci-
mento daquilo em que se pretende ser cria-
tivo”, explica o argentino Mariano Sigman,
diretor do Human Brain Project e autor do
livro A Vida Secreta da Mente. Ou seja, pa-
ra sonhar com um novo tipo de rede social
que vá torná-lo milionário, será preciso an-
tes ser um gênio da programação como Mark
Zuckerberg, o criador do Facebook.
Entre essas descobertas recentes da ciência,
também estão detalhes sobre os mecanismos
do sono, com uma especificidade que Freud

F


imagem: Getty Images DOSSIÊ SUPER 27

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